Quando a música ocupa os espaços: das crianças do Porto Meira às detentas do Cresf

Ramon Fernandes Lourenço
Histórias da Extensão
7 min readFeb 22, 2017

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Histórias da Extensão 2 - Músicas da América Latina.

O projeto Músicas da América Latina, iniciado em 2016, tem por objetivo a criação de um grupo permanente de música com repertórios latino-americanos, mas não músicas tradicionais e já conhecidas, mas sim cantigas e outras obras vinculadas à tradição oral dos diversos povos de nosso continente. Coordenado pelo Professor Félix Eid, conta em sua formação com alunos e professores voluntários no desafio de pesquisar, vivenciar, criar, recriar e difundir gêneros e ritmos das expressões musicais tradicionais de todos os cantos da América Latina.

Participantes: @Alisson Pereira de Oliveira, Febe Aguirre, Jonathan Cumbicos Gómez, Thaís Montenegro, @Ladislao Vasquez, Svetka Nathaly Ramirez, Javier Salas, Félix Eid, @Sonia Inés Varela, @Jennifer Sofia Mideros Valencia, @Marcio Dias Gomes Pinheiro.

Desafio 01 – formar o grupo e repertório:

Um dos primeiros desafios assumidos pelo projeto foi a formação das pessoas que trabalham no grupo, pois nem todos são músicos ou alunos do curso de música. Por ter uma abordagem diferenciada em relação às músicas que serão estudadas pelo projeto, os voluntários têm acesso a uma formação diferenciada, conhecendo aspectos que não se estudam no curso de música, sendo as músicas de tradição oral, músicas andinas e instrumentos nativos alguns exemplos. Outro ponto ressaltado pelo projeto é a valorização da interculturalidade dos participantes, em que são aproveitados os conhecimentos dos alunos e compartilhados com todo o grupo. Por ser composto por pessoas da Argentina, Brasil, Perú, Bolívia e Equador, quando são trabalhadas algumas músicas destas regiões os alunos trazem histórias, apresentam as danças típicas e, por vezes, levam comidas tradicionais para os ensaios.

Desafio 02 – criar oficinas e conteúdos para materiais didáticos:

Para manter uma proposta de grupo musical diferenciado o projeto tem uma dinâmica interessante. Não basta somente aprender e criar arranjos para as músicas com foco em posterior apresentação ao público, é necessário conhecer o contexto de onde surgiram estas obras, dialogando com os conhecimentos da antropologia e da história para complementar o entendimento destas músicas. Desta forma o projeto Músicas da América-latina realiza pesquisas sobre os ritmos que estão sendo trabalhados, descrevendo as histórias de produção das músicas, os rituais em que são geralmente tocadas em seus povos de origem, com o intuito de vencer uma visão colonizada que se pode ter deste tipo de manifestação cultural.

Deste estudo e dos ensaios são preparadas as oficinas, ações com objetivo de envolver o público na apresentação, quebrando com aquela dinâmica tradicional de apresentações culturais em que o público assiste com certo distanciamento. Aqui no projeto o público é parte da apresentação, sendo convidado a compor o coro de vozes das músicas e realizando a percussão corporal. Assim, o público canta, dança e toca junto com o grupo do projeto.

Além das oficinas, a organização dos conteúdos produzidos serão organizadas em um material didático, estando em processo de produção com 9 gêneros musicais latino-americanos já compilados. A produção destes conteúdos ocorrem nos ensaios, momento em que são criadas as brincadeiras com as músicas e suas danças, criam-se também arranjos e outras formas de interagir com a música, além dos estudos sobre o contexto que a música é criada e reproduzida em suas comunidades de origem. O formato final do material, se será uma cartilha, um livro ou outra forma de publicação ainda está em processo de definição.

Desafio 03 – apresentar as oficinas:

O projeto realizou 5 apresentações em 2016, sendo no Sesc de Foz do Iguaçu, no Centro Cultural Esquina Cultural, no Bairro Porto Meira, no CRESF e na ESBA – Escola Superior de Belas Artes de Cidade do Leste. Dentre estes vamos destacar duas rápidas histórias:

Crianças do bairro Porto Meira:

“... estas crianças, muitas delas, nunca viram ou ouviram um violino, uma bateria, um charango”.*

A apresentação no Bairro do Porto Meira começou com a parceria com o Bookafé Cafeteria Foz de Iguaçu Marechal Floriano, um Café e uma entidade religiosa que realiza trabalhos sociais com crianças de escolas públicas do bairro Porto Meira e que convidou o projeto para realizar uma apresentação à adolescentes de 14 a 17 anos. Com isso o grupo preparou a oficina levando letras de músicas, em português e espanhol, para que os jovens participassem ativamente da oficina. Mas quando chegaram no local da oficina a comunidade havia mudado o plano, levando as crianças de 4 a 7 anos para a oficina. Esse é o desafio de se fazer extensão universitária, os planos e ideias de trabalho são orgânicos, e a comunidade é agente de decisão e transformação no curso das ações.

Em resposta a mudança o grupo mudou na hora a oficina, realizando atividades corporais e ensinando os pequenos e pequenas a cantar as músicas em português. A parte mais interessante da atividade foi após as músicas, quando o grupo do projeto identificou que a maioria das crianças nunca tiveram contato com instrumentos musicais, nem mesmo os mais comuns como o violão. Então foi feito uma ação de interação das crianças com os instrumentos em que as crianças puderam interagir com os instrumentos, com os membros do projeto ensinando algumas notas.

Apresentação no Centro de Reintegração Feminino – CRESF:

Esta foi uma importante apresentação realizada pelo projeto, pelo local de difícil acesso, pelas pessoas que estão ali e também pelas reflexões provocadas no próprio grupo do projeto.

Esta atividade foi realizada por meio da parceria com outro projeto de extensão, Direito à poesia — experiências latino-americanas de mediação de leitura com pessoas em privação de liberdade, coordenado pela Professora Cristiane Checchia. O acesso a uma unidade prisional é algo muito impactante, por ser um espaço muito hostil. De início a equipe do projeto ficou impressionada com o ambiente e as pessoas que ali estavam, também pudera, muitas das detentas tinham a mesma idade dos estudantes do projeto, 18 e 19 anos. Então, para que a apresentação pudesse ser vista pelo maior número de detentas possível, o grupo optou por se apresentar no corredor das celas. Levaram duas músicas curtas, de tradição oral: uma música venezuelana chamada Canto de Lavanderas e uma canção de capoeira chamada Mulher na roda, que fala sobre a conquista de espaços na capoeira da mulher.

O início foi complicado, vencer a inibição foi um desafio, mas logo após o início da primeira peça as detentas começaram a participar batendo palmas e cantando, mostrando a satisfação de ouvir músicas diferentes naquele espaço. Este foi o impulso necessário para que o grupo se soltasse, quem tocava instrumentos em pé ou cantava começou a circular pelo corredor. A participação foi tanta que as apresentações marcadas inicialmente para durar 30 minutos acabaram por se estender por 1 hora, isso em cada corredor da instituição. As detentas cantaram junto todas as músicas, em português e espanhol, pois como haviam também mulheres de outros países, o grupo percebeu certa identificação com algumas peças do repertório cantado em espanhol.

Este foi um momento muito rico para quem assistia e também para o grupo, pois puderam ver outras realidades, fora dos tradicionais espaços culturais que já estão habituados músicos e outros artistas.

Depois dessas apresentações realizadas em 2016 o próprio grupo do projeto optou por fazer mais apresentações em espaços não tradicionais, para públicos que não tem acesso facilitado à ações culturais e muito menos com o repertório latino-americano. Assim o projeto vai se modificando sozinho, a medida que suas ações vão ocorrendo o grupo se fortalece e em especial os alunos, que encontram oportunidades de dialogar com outras realidades e também de ensinar aquilo que aprendem durante os ensaios.

“Quando fizemos as oficinas a formação dos alunos ao longo do projeto se consolida, eles deixaram de ser participantes do projeto e viraram ministrantes das oficinas. Quando você tem que ensinar para alguém que nunca fez aquilo a tua formação se consolida”.*

* Trechos de fala retirados de entrevista realizada com Professor Felix Eid.

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Ramon Fernandes Lourenço
Histórias da Extensão

Relações públicas na UNILA, mestre em Ciência da Informação e curioso sobre as formas como estabelecemos relacionamentos mediados pelas tecnologias.