A ambiguidade da Lei que mais prende no Brasil

Johnny Oliveira
Unisinos Investiga
Published in
9 min readJul 11, 2016

A Lei 11.343— também conhecida como a Lei das Drogas é responsável por quase 30% das prisões no país. É a lei que mais encarcera no Brasil. O problema, segundo os próprios operadores do Direito, é que o instrumento é dúbio. Não há critérios claros para estabelecer a diferença entre usuário e traficante. Além disso, a Lei não dá liberdade ao usuário de assumir o risco pessoal de utilizar a droga.

A falha é apontada pela mais alta Corte Judicial do país. O ministro Gilmar Mendes é relator de um processo que se arrasta desde 2009, no STF, e que discute a subjetividade do artigo 28 da Lei. Em seu voto ele destacou a existência de “uma “zona cinzenta” entre o traficante e o usuário”, “produziu apenas o aumento da massa carcerária”.

O assunto chegou ao Supremo por conta de um pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, depois que um homem foi punido portando três gramas de maconha dentro de um presídio. A ação da Defensoria contesta a constitucionalidade do artigo 28 da Lei. “O porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada ‘saúde pública’, mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”, diz a ação.

O artigo 28 diz que será enquadrado quem “adquirir, guardar, tiver em depósito ou trouxer consigo para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar será submetido à advertência, prestação de serviços à comunidade, medida educativa”. As penas variam de cinco a 10 meses, dependendo da reincidência.

Segundo a Lei, quem determina o enquadramento é o juiz:

“2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

O ministro Gilmar Mendes ratificou o que organizações não governamentais como Eu Sou Da Paz, entidade que entende ser inconstitucional o crime de consumo de drogas para uso pessoal, já denunciam há algum tempo. A Lei é uma das grandes responsáveis pelo inchaço no sistema carcerário brasileiro. São 651.933 presos de acordo com o mais recente relatório do sistema carcerário brasileiro. Hoje só perdemos para os Estados Unidos, China e Rússia em número de presos. Desde 2006, com a Lei de Drogas, os 31 mil encarcerados subiram para 138 mil, um aumento de 339%. Sendo que cerca de quatro em cada 10 presos ainda não passaram por julgamento. O crime que mais encarcera é o tráfico de drogas (28%) seguido por roubo (25%) e furto (13%).

Na sessão de 10 de setembro de 2015, em longa explanação, o ministro Luís Roberto Barroso também defende a liberdade do usuário de optar pelo uso da droga, assim como ocorre com o álcool, que não é criminalizado.

“O usuário não deve ser tratado, a meu ver, como criminoso, mas sim, como alguém que se sujeita deliberadamente a um comportamento de risco. Risco da sua escolha e da qual ele é a principal vítima,” finaliza.

O julgamento foi, porém, interrompido por pedido de vista do ministro Teori Zavascki.

Voto do Ministro Barroso na sessão de 10 de setembro de 2015

Seletividade na hora da prisão

Para a Delegada Titular da Delegacia da Mulher, Tatiana Lopes, outro problema é a seletividade dos presos pela criminalização da droga.

“Temos um grande número de pessoas que não deveria estar presa. 60% da população carcerária é jovem, negro, pobre e usuário de droga, então, talvez, as pessoas que estão lá não são as que deveriam estar”.

E a Lei de drogas contribuiria para isso: “Não está tabulado o que é tráfico e o que é uso fica cargo do delegado, do juiz, enfim”. Existe o impasse se a porção apreendida é considerada tráfico ou uso, e acabam rotulando.

“Quem é que a gente consegue prender em flagrante na madrugada ou na rua? O jovem que mora nas comunidades periféricas, quem está na rua fazendo uso daquela droga. Quem é das classes mais altas, se trafica droga, não é nesse tipo de ambiente”, assevera. “Então o nosso sistema acaba por nos conduzir para essas pessoas que vivem em comunidades periféricas”.

Em contraponto, ela afere que “se eu pegar alguém dentro de uma rave, dentro da festa da medicina, com alta quantidade de droga sintética, aí bom, ele pegou para se divertir. Por isso que hoje as pessoas erradas estão segregadas. E isso se reflete também nos adolescentes infratores, o tipo de delito, de ato infracional, tem sido em cima da má aplicação da lei de drogas”.

O ministro Luís Roberto Barroso concorda, e entende que a Lei leva os jovens de baixa renda a superlotar as penitenciárias, “as cadeias estão ficando entupidas de jovens primários e pobres que são presos como traficantes e, consequentemente, passam a cursar essa escola do crime e o círculo vicioso de violência que se inicia com a primeira prisão”, afirma.

Uma pesquisa de 2015 sobre a origem social das pessoas que são enquadradas por tráfico no Brasil mostra que esta seletividade se inicia na abordagem policial. Trata-se da tese de doutorado do sociólogo Marcelo de Silveira Campos, defendida na USP.

Campos observou que o perfil das pessoas aprisionadas por conta da Lei 11.343 são “jovens entre 18 a 29 anos, com baixa escolaridade e do sexo masculino, embora seja crescente o número de mulheres participando do tráfico, com ocupações profissionais precárias, ou seja, transitando do trabalho informal para o trabalho formal.”

O delegado Rafael Soares Pereira do Departamento de Investigação do Narcotráfico (DENARC) e o Juiz da Vara de Execuções Criminais, Sidinei Brzuska, concordam que a Lei não tem critérios específicos sobre a quantidade que define o porte e o tráfico. No entanto, o delegado afirma que a polícia civil consegue diferenciar o tráfico, do uso, por meio da investigação, e elaborar as abordagens da maneira correta.

Presídio Central de Porto Alegre/Foto de Sidinei Brzuska

“Cumprimos muita abordagem em decorrência de busca que já nos aponta para uma situação de trafico ou de uso. Aí, com uso interceptações telefônicas, conversas com informantes para saber se a pessoa faz do tráfico seu meio de vida ou é um usuário”, explica o delegado do DENARC.

O maior problema, de acordo com Brzuska é que “os erros ocorrem, essencialmente, quando a polícia militar, que enfrenta apenas o crime aparente, de rua, tenta combater o tráfico”.

Na abordagem, a revista, e uma sentença: “isso não presta”

Letícia* estava saindo com mais quatro amigos de um protesto durante a Copa do Mundo de 2014 que teve jogos sediados em Porto Alegre. Entre a Avenida Borges de Medeiros e a Praia de Belas. Letícia estava com um pacote de tabaco e meio baseado (cigarro de maconha) quando começou a escutar os gritos ordenando que parassem e colocassem as mãos na cabeça.

“Daí a policial olhou e perguntou o que era aquilo e eu falei que ‘aqui é maconha, mas aqui é tabaco’. Ela recolheu e falou que eu iria ter que acompanhar eles até a delegacia que, no caso, era o 1º Batalhão da Polícia, que era na própria Praia de Belas. Ela perguntou se eu sabia que era ilegal ou não. E é tri confuso isso, porque sempre tem um monte de gente que diz que tu não és obrigado a mostrar as tuas coisas e abrir a tua mochila. Mas como que tu vai exercer esse direito numa situação de super opressão? Daí eles me encaminharam até o batalhão, não fui algemada, nem nada. Só entrei num micro-ônibus com uns três, quatro brigadianos.”

Na Delegacia, Letícia ouviu frases como “hoje tu estás aqui por causa da maconha, mas na próxima tu vais estar aqui atirada por causa de crack” e outras indagações em tom moralista como “o que tu tá fazendo com a tua vida? Isso não presta”.

Precisou, então, assinar dois papéis, um deles o boletim de ocorrência, outro era um atestado que certificava que não havia sido ferida e que sua integridade física estava intacta.

“Depois de um tempo, foi um oficial de justiça na minha casa me convocar pra minha audiência. A minha audiência era coletiva, com mais cinco pessoas e todas estavam lá pelo mesmo motivo. Todos eram réus primários de porte de drogas. Tinha uma pessoa que estava por cocaína e as outras todas eram por maconha. Acho que a gente teve bastante sorte de pegar um juiz bem esclarecido. Inclusive ele falou que sabia que era uma questão de tempo para a legalização da maconha e que hoje em dia ninguém mais é preso por posse de drogas. Não existe uma lei que garanta isso, mas tem a jurisprudência, que é a conduta dos juízes em relação a isso. E principalmente a dele, que ele não vai prender alguém por isso. É uma coisa que a pessoa faz contra si mesma. Claro, ignorando todo o fato do tráfico e da violência que é gerada com isso. É um atentado contra si mesmo e não faz sentido prender por isso.”

Durante a audiência coletiva, todos eram réus primários. O juiz informou que iria apenas arquivar o caso, e que suas fichas constariam como limpas perante a sociedade. Mas não perante a Justiça, pois caso acontecesse outro incidente, o juiz encarregado teria acesso ao banco de dados. Letícia não recebeu nenhuma pena, pois era ré primária. O magistrado informou que as penas, geralmente, são o serviço comunitário, reabilitação, dependendo da droga que tu fores pego. “Mas eles dão prioridade para serviço comunitário ou ir numa reunião de narcóticos anônimos”, disse.

Ainda na audiência, Letícia perguntou para o juiz o que constava no exame laboratorial que foi feito para analisar a substância apreendida. A resposta foi inexata: constava que era tudo maconha, mas segundo ela, mais da metade era tabaco. Ao questionar o juiz, a resposta foi que por ser um caso que não ia dar em nada, não tinha o que fazer. “Mas ele demonstrou um pouquinho de espanto em eu me contrapor. Mas talvez por eu estar sendo falastrona”.

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Mesmo o usuário é criminalizado

O Juiz Sandro Luz Portal, da 8ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre, afirma:

“Então, o juiz é que vai diante da prova, que se constrói o processo criminal, concluir se aquela quantidade trazida pelo agente caracterizava ou não o crime de trafico. Na hipótese de ele concluir negativamente ele vai desclassificar essa infração por delito de uso. Aí é importante até vocês terem bem clara essa noção de que o porte para uso continua criminalizado no Brasil”, Juiz Sandro Luz Portal, da 8ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre

A única diferença é que entre as medidas judiciais para a infração de porte da droga não está prevista a pena de prisão: “Elas não têm natureza coercitiva, ou seja, se a pessoa não comparece aos encontros de Narcóticos Anônimos, ela não pode ser punida. As medidas são de natureza propedêutica, no sentido que ela trate essa drogadição do ponto de vista médico, do ponto de vista clínico.”

O magistrado explica ainda que é só diante da produção da prova da inquirição das pessoas que assistiram a cena criminosa você vai poder definir se aquela droga trazida pelo sujeito era destinada ao fornecimento a terceiros, ao tráfico, ou não.

“Eu já tive casos em que condenei, com inteira convicção, uma pessoa como traficante que foi presa em poder de uma peteca de crack porque um usuário identificado pela guarnição policial veio a juízo e disse: “Não, essa peteca que foi apreendida eu tinha comprado daquela pessoa e eu já tinha comprado outras vezes” , Juiz Sandro Luz Portal, da 8ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre

Agora, em contraponto, o magistrado afirma que também já teve situações “em que o sujeito foi preso com 20 porções, 25 porções e também diante da prova que foi produzida, cheguei a conclusão que essas pessoas destinavam ao consumo próprio e assim desclassifiquei. Então esse raciocínio quantitativo ele pode ajudar mas não necessariamente vai determinar a conclusão a que o juiz chega. Depende do contexto.”

A SOLUÇÃO AINDA PODE DEMORAR…

Segundo o Juiz da Vara de Execuções Criminais, Sidinei Brzuska, o ideal seria tratar a questão do usuário apenas como problema de saúde. No entanto, “como o tráfico é um crime complexo, o seu combate tem que estar mais centrado na polícia civil/federal, que tem maiores condições na produção da prova”.

Segundo a colunista da Folha de São Paulo Mônica Bergamo, O ministro do STF que pediu vistas do processo, Teori Zavascki, pretende devolver o processo ao tribunal até o final do ano, e se não o fez porque seu gabinete está lotado com processo da Lava Jato.

Reportagem de Johnny Oliveira, Lua Kliar, Lucas Proença, Marina Lehmann e Sergio Trentini.
Supervisão de
Luciana Kraemer

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