Histórias de constrangimento

Laíse Feijó
Unisinos Investiga
Published in
13 min readDec 7, 2015

O longo caminho dos transexuais em busca de nova identidade

Processos para a retificação do registro civil de transexuais podem levar anos (Foto: Luciano Del Sent)

Durante 43 anos Marina Reidel carregou uma identidade que não reconhecia como sua. Ela não se enxergava vivendo sob o sexo biológico masculino. O primeiro passo em direção à troca do seu registro civil foi dado quando aceitou a sugestão de uma amiga e escolheu um nome feminino para ser reconhecida. O Rio Grande Sul, estado pioneiro no Brasil no reconhecimento do nome social como documento para transexuais e travestis, beneficiou mais tarde a pedagoga.

Segundo a Secretaria de Segurança do Estado, 778 pessoas solicitaram este documento até novembro deste ano: “É uma maneira de evitar ou pelo menos diminuir vários constrangimentos até que a retificação na Justiça seja concedida”, diz Marina que também é coordenadora de políticas LGBT da Secretaria de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.

O documento evita constrangimentos em repartições públicas gaúchas, mas fora destes espaços não há garantia. Marina testemunhou a violência numa loja de Porto Alegre, onde o vendedor não percebeu que se tratava de uma transexual, e ao tentar efetuar o pagamento de uma compra, ela foi acusada de ter roubado seu próprio cartão de crédito pelo fato de nele ainda constar seu nome masculino.

Marina é coordenadora de políticas LGBT da Secretaria de Direitos Humanos do RS (Foto: Laíse Feijó)

Maria Berenice Dias, desembargadora aposentada, é referência por atuar em favor dos direitos da população LGBT. Ela tem relatos de clientes transexuais que não utilizam a carteira de nome social por ser muito diferente da identidade, principalmente na coloração e tamanho. A advogada acredita que a via judicial é mais eficiente, garantindo direitos concretos. Mas para tornar mais ágeis estes processos, ela defende uma legislação específica que garanta a troca de nome para transexuais. Hoje, o argumento mais utilizado por transexuais para solicitar a troca do nome é que aquela identificação que consta na certidão de nascimento e documentos oficiais o expõe ao ridículo.

É o que mostra uma pesquisa envolvendo 159 processos que a reportagem teve acesso a partir de um banco de dados mantido pela própria Maria Berenice, e de um levantamento feito pela equipe junto ao Tribunal de Justiça, e ao site do Jus Brasil, que reúne atos oficiais de todas as esferas administrativas judiciais. Os resultados além de provarem o constrangimento, mostram que a mudança de nome ainda é mais garantida quando o solicitante já realizou a cirurgia de readequação de gênero.

Ao longo da reportagem, talvez você encontre termos desconhecidos ou com significados confusos. Para isso, disponibilizamos este glossário, que contém as principais definições para uma boa leitura do texto.

A maioria dos pedidos parte de transexuais mulheres

Os dados de 159 casos que a reportagem levantou ao longo do processo de apuração, deixam claro que a maior parte dos pedidos para a troca de nome parte de transexuais mulheres. Isso em todas as cinco regiões brasileiras e 18 estados de onde vem estes registros. São Paulo e Rio Grande do Sul lideram a lista de estados que mais recebem estas demandas. E não por acaso, são os polos onde o Sistema Único de Saúde — SUS disponibiliza o Programa de Identidade de Gênero — Protig, espaço onde transexuais realizam acompanhamento psicossocial que pode resultar na cirurgia de readequação.

O caso mais antigo de troca de nome e sexo da pesquisa é de 1985, no Rio Grande do Sul, é de um homem que fez a cirurgia para troca de gênero, descrita no processo como “mutilação cirúrgica”, a partir da “retirada da genitália externa”. Confira o levantamento completo em https://goo.gl/ZWEaUW .

Maria Berenice Dias confirma que os primeiros casos de troca do registro civil aconteceram no Rio Grande do Sul. De acordo com nosso banco de dados, o índice dos que conquistaram a troca de nome sem realizar a cirurgia é de 43%. Porém, quando a adequação física é realizada, esse percentual sobe para 75%. Portanto, a realização da cirurgia sempre foi um reforço na tentativa da troca de nome e gênero. Em meio as apelações civis, embargos e pedidos de cassação de sentença, os recursos pleiteados pelo Ministério Público mostram a preocupação da instituição de fazer constar nos documentos o motivo da alteração. Em pelo menos 32 dos 159 casos, o MP apelou da sentença exigindo que constasse no documento a origem do gênero da pessoa, como suposta garantia para quem vier a se relacionar com o mesmo. Para a jurista, um equívoco que viola um direito básico da pessoa: “mandavam colocar na certidão de nascimento que houve a mudança: nome alterado por decisão judicial. Isto feria o princípio de intimidade das pessoas”, afirma.

Maria Berenice conta que com a elevação do número dessas ações o Estado começou a entender e a se sensibilizar com a causa. A Justiça passou então a permitir que o sexo fosse alterado, mas mediante a cirurgia de troca de gênero. Portanto, um dos motivos pelos quais é mais complicado para o trans-homem a troca do registro civil, modificando nome e sexo, ocorre porque a operação para readequação do gênero feminino para masculino ainda é experimental no Brasil.

Ela chegou a ser praticada pelo SUS, porém devido ao insucesso das tentativas, a cirurgia encontra-se suspensa. “O processo de construção de órgão sexual masculino é experimental e não tem sucesso garantido. No fundo o que os trans-homens querem mesmo é tirar os seios e parar de menstruar. A sexualidade não é estritamente ligada a genitália. Com o tratamento hormonal a maioria deles opta por não fazer. O que não pode é o Estado ou a Justiça obrigar o indivíduo a fazer uma cirurgia complicada contra a sua vontade para que tenham sua identidade preservada”, pondera Maria Berenice Dias.

Valéria Barcellos é cantora profissional desde 2006 (Foto: Laíse Feijó)

Valéria Barcellos é uma das primeiras transexuais a conseguir autorização para a troca de nome e sexo sem cirurgia. O nome dela consta no levantamento feito pela reportagem, sendo a solicitação deferida pelos desembargadores do TJ-RS em abril de 2015. Cantora por profissão, ela conta que entrou com o processo em 2013, solicitando que o gênero também fosse alterado. Foram dois anos e meio de espera e apelações. Tempo que Valéria considera normal.

“Eu não tenho o desejo de fazer a cirurgia, pois é um processo muito invasivo e dolorido. Por enquanto eu estou bem assim. Acredito que não preciso disso para me reconhecer como mulher”, disse Valéria.

Mutirão consegue reduzir o tempo do processo para 30 dias

A troca de nome civil de Marina Reidel ocorreu há dois anos na justiça e foi resultado do projeto “Direito à identidade: viva seu nome”. O trabalho envolve vários grupos e é organizado pelo G8-Generalizando — Grupo de Direitos Sexuais e de Gênero do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS, em parceria com a ONG Igualdade — Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, com o NUPSEX — Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero da UFRGS e com o IBRAT — Instituto Brasileiro de Transmasculinidade.

Registro do último mutirão realizado pelo G8-Generalizando (Foto: Laíse Feijó)

Desde 2013, o foco é auxiliar transexuais e travestis na luta pela troca de nome junto à Justiça, processo muitas vezes demorado e que exige uma série de documentações específicas que são levantadas pelos grupos organizadores juntamente com os solicitantes. A reportagem acompanhou a última edição que protocolou 118 pedidos, no dia 06 de novembro, no Foro Central de Porto Alegre.

Rafael Lima, trans-homem sem cirurgia, participou do mutirão e ingressou na Justiça com pedido de retificação de registro civil, solicitando apenas que seu nome feminino seja trocado pelo masculino, sem alterar o sexo. Aos 27 anos, ele conta que desde muito jovem percebeu que não se identificava com as características ditas de menina. A decisão pela mudança do nome surgiu depois de alguns anos e muitas descobertas. O mutirão foi a maneira mais fácil que ele encontrou para ter atendido o seu desejo de uma identidade que corresponda com quem realmente é.

Rafael na infância e atualmente (Foto: Acervo Pessoal)

De acordo com a advogada Luísa Stern, que atua no mutirão e também é transexual, o projeto cresce a cada ano. Um dos motivos é a agilidade. Marina participou do primeiro mutirão em 2013, foram 20 dias entre o protocolamento e a aprovação do pedido. Uma vitória para um grupo que tem penado para conseguir um direito que hoje se mostra cada vez mais urgente de ser atendido. Tamanha rapidez, acredita Marina, se dá por conta da pressão que os grupos exercem sobre o judiciário ao submeter uma quantidade tão grande de processos ao mesmo tempo e com a documentação correta.

A agente comunitária de saúde, Alessandra Greff, carrega na carteira o documento de identidade com data de expedição de fevereiro de 2014, já com o nome que escolheu e o gênero com o qual se identifica.

“Demorei a perder o receio de apresentar o documento e a entender que não precisava mais contar com a boa vontade das pessoas para ser chamada como quero, pois, agora está assegurado no meu RG e CPF.O que era uma vontade passou a ser garantido legalmente”, conta Alessandra.

O medo da burocracia fez com que ela entrasse com o pedido apenas em 2013. Apesar de conhecer ONGs que fazem ações coletivas, optou por solicitar ajuda da Defensoria Pública, já que não dispunha de tempo para participar dos encontros e das ações em grupo. “Foram aproximadamente três meses de espera entre a aprovação na justiça e a emissão dos novos documentos. Já com eles em mãos, passei em bancos, lojas e todos os lugares em que tinha cadastro com o nome masculino para que tudo fosse atualizado”, lembra a agente comunitária de saúde.

Alessandra fez questão também de ir na sua antiga escola para pedir a alteração do histórico escolar, o que permitiu que se matriculasse no curso técnico de Prótese Dentária, que frequenta na Escola Estadual Ernesto Dornelles, já com o novo nome e sem passar pelos constrangimentos que enfrentara a vida toda ao apresentar um documento com nome masculino. Ela destaca que outra vitória é não precisar mais contar com a compreensão dos professores na hora da chamada.

Ela é paciente do Programa de Identidade de Gênero do Hospital de Clínicas há três anos, mas a cirurgia para troca de sexo ainda não foi realizada. Uma data foi marcada para o início de 2015, entretanto, por motivo de doença na família, ela teve de adiar a operação. Portanto, a estudante também faz parte do grupo de transexuais que conseguiu trocar o nome sem passar pelo processo cirúrgico, fruto de um importante avanço.

Para evitar constrangimentos, pais de crianças trans estão ganhando o direito de trocar o nome dos filhos

Para a abertura do processo de retificação do nome civil alguns documentos são obrigatórios, como os laudos médicos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde é realizado o Protig, ou pareceres psicossociais feitos por psicólogos particulares ou militantes. Segundo a advogada Carla Jardim, especialista no assunto, a documentação é necessária para justificar ao Judiciário a transexualidade. “Alguns advogados demoram com o andamento do processo, pois encaminham os clientes para perícia judicial, o que leva até um ano. Contudo, os especializados neste tipo de demanda conseguem finalizar os processos de troca de nome em até seis meses”, comenta Carla.

Já para a cirurgia, o encaminhamento deve ser feito via posto de saúde, de preferência o mais perto da região onde a pessoa mora. “Ainda há preconceito na cidade, pois muitos transexuais não recebem as indicações certas ou são atendidos por profissionais de enfermagem despreparados”, lembra Luísa Stern, advogada e transexual, sobre os vários casos que precisou pedir ajuda da Secretária da Saúde para o encaminhamento de clientes.

Luísa Stern realizou a cirurgia para troca de gênero em 2013 (Foto: Leonardo Stürmer)

Um dos principais fatores que atrasam a marcação da cirurgia é o atestado de comprovação do acompanhamento do paciente nos encontros do Protig. Normalmente isso ocorre em seis meses, mas o preconceito e a falta de aceitação dos parentes dificultam o processo que, desta forma, pode durar até um ano.

“A participação de um familiar é obrigatória, o que impede o progresso do tratamento, já que maioria das pessoas trans se afasta da família exatamente porque a mesma não os aceita”, diz Luísa Stern.

A cirurgia para a troca de sexo só pode ser efetuada após os 21 anos, mas o nome pode ser alterado antes da maioridade. A advogada Carla Jardim, que trabalha com transexuais há 18 anos, lembra do primeiro caso de alteração de nome para crianças no qual atuou. A menina, que atualmente tem 11 anos, já começou o tratamento com hormônios para interromper o crescimento da barba e outras características masculinas. Após a criança enfrentar preconceito dentro da escola, os pais resolveram procurar ajuda. “A instituição não queria que ela fosse no banheiro das meninas, mas sim que ela usasse o dos professores e isso a incomodava e não ia ao banheiro a manhã inteira”, conta a advogada.

Atualmente, existe jurisprudência para troca de gênero nos registros oficiais sem a realização da cirurgia. Caso desta menina e também de B. T., de 19 anos. Após efetuada a troca de nome, o jovem está com o processo para retificação do gênero feminino para o masculino. Enquanto isso não ocorre ele prefere ficar no anonimato para evitar uma série de constrangimentos. “Como ainda não consegui a troca do gênero judicialmente, estou sem trabalhar e estudar. Vou esperar, pois sem o gênero é complicado. Como vou fazer a inscrição em uma instituição e lá ficar o gênero feminino sendo que não corresponde com a minha imagem? Prefiro ficar em casa a passar por isso”, explica sobre a insatisfação e os preconceitos que sofre quando necessitava mostrar os documentos antigos.

Valéria, 36 anos, coleciona uma série de histórias sobre situações desagradáveis que passou em decorrência da falta dos documentos retificados, ao longo de sua carreira como cantora. Um desses episódios ocorreu em um aeroporto, quando estava fazendo o check-in: “Por ser artista sempre carrego muita coisa comigo nas viagens e acabo pagando excesso de bagagem. Certo dia o moço do aeroporto que estava despachando as minhas malas ficou tão nervoso com o fato de a minha imagem ser totalmente diferente da que estava estampada nos documentos que acabou nem pesando as minhas coisas e muito menos cobrando o excedente. Se eu já estivesse portando meus novos documentos, acredito que nada disso teria acontecido”, conta.

A importância do nome vai além

Para os transexuais a importância do nome vai muito além de evitar constrangimentos. É a maneira concreta de mostrar para a sociedade aquilo que por muito tempo ficou escondido. O nome é identidade, dignidade. É ser quem realmente é. E ninguém melhor para falar sobre isso do que pessoas que conquistaram na justiça o direito ao nome:

Como funciona a cirurgia para mudança de sexo?

No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com o objetivo de acolher os pacientes interessados, uma equipe de psicólogos e psicoterapeutas, auxiliados por endócrinos e fonoaudiólogos, atua no Programa de Identidade de Gênero- Protig. Através de um processo de psicoterapia de dois anos, buscam manter os interessados cientes da opção de realizar a cirurgia de troca de sexo ou, simplesmente, usufruir do tratamento hormonal.

No início desse processo, a fim de entrar no grupo de acolhimento do hospital, os pacientes devem se deslocar até um posto de saúde para fazer uma triagem, recebendo um encaminhamento que permitirá a entrada no Protig. No Clínicas é realizada uma segunda triagem, que analisará possíveis variações psiquiátricas, desta maneira, corroborando com os interesses dos pacientes e diminuindo a taxa de desistência. Após essa nova análise, eles são separados no grupo dos que nasceram homens e desejam se tornar mulheres e os que nasceram mulheres e querem se tornar homens. Durante o processo, os profissionais do programa apresentam as opções menos invasivas para o tratamento do paciente. Com o auxílio de fonoaudiólogos, as aulas de técnica vocal são consideradas de grande eficácia para adequar a voz do paciente à sua nova identidade, sem necessitar de intervenção cirúrgica.

De acordo com a Psicóloga e pesquisadora do Protig, Bianca Soll, a média de idade dos pacientes do Clínicas é de 27 anos, sendo que cerca de 400 já passaram pelo atendimento do hospital. Em média 200 cirurgias já foram realizadas através desse programa. “A cirurgia de troca de sexo é complexa, irreversível e dura, aproximadamente, quatro horas. Em alguns casos, são necessárias cirurgias complementares”, afirma a psicóloga.

A Organização Mundial da Saúde ainda trata a disforia de gênero como uma doença, contudo, essa convenção será modificada. Conforme a especialista na área de avaliação diagnóstica e desenvolvimento de gênero em crianças e adolescentes, Bianca Soll, devemos considerar a transexualidade como algo que acompanha o indivíduo desde a infância.

No Hospital de Clínicas também são aceitas crianças e adolescentes que desejam ou precisam desse auxilio. O tratamento hormonal somente é permitido a partir dos 16 anos, com o consentimento dos pais. A demanda de pacientes é determinada pela proximidade do posto de saúde com as cidades de São Paulo e Porto Alegre. Caso haja crianças ou adolescentes interessados em realizar o acolhimento, os pais ou responsáveis podem entrar em contato com a Psicóloga, Bianca Soll, através do e-mail biancasoll@hcpa.edu.br.

Os encontros promovidos pelo Hospital de Clínicas ocorrem de 15 em 15 dias. Durante uma hora, os pacientes falam sobre as expectativas e dificuldades de ser um transexual. Depois dessas reuniões e da aprovação do grupo de psicólogos, o paciente entre na fila para a cirurgia, o que pode demorar muito, pois somente uma cirurgia é marcada por semana. “Normalmente a fila demora um ano, pois só há um cirurgião disponível para isso e dependemos da agenda particular dele”, explica Luísa Stern que foi paciente do programa e realizou a cirurgia em fevereiro de 2013. O pós-operatório tem duração de sete dias e um mês depois já é possível voltar às atividades normais.

Reportagem: Érika Ferraz, Laíse Feijó, Luciano Del Sent, Rebecca Rosa, Rodrigo Ávalos, Tainá Rios, Vanessa Vargas e Vinícius Ferrari

Supervisão: Prof. Luciana Kraemer

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