O medo como tema de casa

Histórias de insegurança e violência em uma escola pública do bairro líder em homicídios da capital

Renata Simmi
Unisinos Investiga
7 min readJul 11, 2017

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Foto: Renata Simmi

Eram 13h30, antes mesmo de se iniciarem as aulas no turno da tarde, o casal de pais, residentes do bairro Rubem Berta, aguardava para falar com a diretora da escola. De mãos dadas, como se apoiassem um ao outro, procuravam por pistas da filha adolescente. Na noite anterior, ela havia ido com outras colegas para a Praça México — grande parque da zona norte. A jovem chegou em casa só na manhã seguinte, sob efeito de álcool e drogas, e saiu novamente dizendo que iria para a escola. A preocupação desses pais era se iriam encontrar sua filha viva, afinal de contas, ela não estava presente no local.

Os medos são muito reais, e as estatísticas mostram que eles têm razões de sobra para isso. O bairro Rubem Berta é líder no ranking de homicídios em Porto Alegre há pelo menos três anos, segundo a Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP). De janeiro a março de 2017, 26 pessoas foram mortas no bairro. Só para ter uma ideia, a capital registrou 227 vítimas nesses três primeiros meses do ano. Ou seja, 11% das mortes ocorreram na região. Abaixo dele, no mesmo período, os bairros Sarandi e Restinga aparecem ocupando segundo e terceiro lugar.

O Rubem Berta, bairro mais populoso de Porto Alegre, com 87.367 habitantes, segundo dados do censo de 2010 do IBGE, apresentou uma taxa mensal de aproximadamente sete mortes em 2015, oito em 2016 e nove nos três primeiros meses de 2017. Esses dados, obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação, só comprovam o que os porto-alegrenses sentem diariamente: o descontrole da violência.

A situação relatada acontece diariamente nessa escola, que serve de suporte não só para os 750 alunos atendidos nas séries de ensino fundamental, mas também para os familiares, que muitas vezes não sabem como agir e veem na escola um espaço para orientação e acolhimento.

Um ex-aluno dessa mesma escola, com idade em torno dos 23 anos, foi cravejado com tiros nas costas enquanto saía de uma padaria no bairro. Relatos dão conta de que ele foi confundido. A morte havia sido encomendada para outra pessoa.

Por ano, a escola perde cerca de dois alunos assassinados.

Para o corpo docente, a perda de um aluno é um choque difícil de superar. “Quando algum aluno some por um período, a gente já imagina que algo ruim aconteceu. E quando de fato se confirma a morte, o clima fica extremamente pesado para todos nós”, desabafa uma pessoa ligada à escola, que preferiu não ser identificada.

A maior parte dos professores e funcionários não tem espaço para sentir medo, pois se assim fosse, não conseguiriam exercer suas atividades diárias e seguir com as aulas.

Numa idade em que os estudantes deveriam estar aproveitando a escola para fazer amigos e aprender, o maior desafio dos professores parece ser o de lidar com a morte como tema e imagem frequente. Na escola, nos contam que em outros locais do bairro o descontrole é ainda maior. Em outro colégio da zona norte da capital, ao chegarem de manhã para o turno escolar, os alunos já se depararam com uma cabeça decepada em frente ao portão. O horror costuma ser fotografo pelos alunos. Com seus celulares, eles registram partes de um corpo, como braços e pernas encontrados no trajeto até a escola.

Guerra do tráfico X forma de matar

Comparado com os demais bairros, o Rubem Berta, além de ter mais casos de homicídios, apresenta as mortes mais violentas. Para o Doutor em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Segurança Pública (Universidade de Oxford, UK) Marcos Rolim, a maneira como ocorrem as mortes é um dos componentes dessa guerra entre facções. “Na sequência de mortes em cada um dos lados dessa guerra particular, o horror cumpre o papel de afirmar uma conduta que não possui limites e que é capaz de infligir aos inimigos sofrimentos inimagináveis”, pontua. Segundo o especialista, as mortes se repetem por conta da impunidade em torno dos assassinos. No RS, apenas 3% dos presos respondem por homicídios, pois esse é o tipo de crime que demanda investigações complexas e muito esforço policial. “Como as vítimas dessa guerra são quase sempre muito pobres e envolvidas com o crime, não há interesse dos policiais nem pressão da opinião pública para que os autores sejam identificados e condenados. Pelo contrário, determinada mentalidade primitiva entende que essas mortes são um benefício para a sociedade”, analisa.

O diretor de investigações do Departamento de Homicídios, delegado Gabriel Bicca, observa que a zona norte contempla várias áreas não urbanizadas, que por serem ocupações irregulares não têm acesso aos requisitos básicos de vida. Essa situação de vulnerabilidade multiplica o potencial de violência. O delegado esclarece que a situação mais comum é da pessoa que não tem, muitas vezes, a instrução necessária para lutar por uma vaga de emprego formal, não consegue desenvolver um trabalho informal, e acaba buscando sua subsistência basicamente nessa circunstância do tráfico de drogas que acontece na rua da casa dela. A partir desse envolvimento, ela aumenta exponencialmente o risco de ser vítima de homicídio, seja atuando na venda de entorpecentes, seja fazendo qualquer atividade relacionada ao tráfico. “O tráfico não escreve no SPC, SERASA. A maneira do traficante cobrar é matando. Tá devendo, eles apagam. Ou seja, esses indivíduos (assassinos) que cobram as dívidas de hoje são as vítimas de amanhã”, compara.

Somente nessa região, há a presença de três facções criminosas: Manos, Bala na Cara e Antibala

O repórter do jornal Diário Gaúcho Eduardo Torres, encarregado das matérias policiais do veículo, analisa que essas facções não disputam território, mas poder. O jornalista conta que os Bala na Cara surgiram entre 2004, formado por um grupo de jovens do bairro Bom Jesus, com passagem pela Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase). Eles começaram a ganhar notoriedade com uma série de assaltos violentos às joalherias nos shoppings da cidade. “Eles são conhecidos por terem um estilo próprio, além do fato de terem surgido na rua e depois irem para a cadeia — diferentemente de outras facções, que costumam surgir na prisão com as lideranças e, então, passam a dominar as ruas”, destaca.

Os Antibalas costumam ser mais violentos na região do Rubem Berta por esse bairro fazer divisa com o bairro Mário Quintana, região limite entre Porto Alegre e Alvorada. Esses são espaços que compartilham a mesma realidade. O soldado da Brigada Militar Marcelo Proença destaca que a região do bairro está na mira dos bandidos por ser uma rota de fuga facilitada para as cidades da região metropolitana.

Para o especialista em Segurança Pública e professor de Criminologia da PUCRS, Dr. Rodrigo de Azevedo, a causa para o grande aumento da criminalidade é a falta de investimento em segurança. Isso fez com que a polícia fosse, aos poucos, perdendo a presença nos bairros, deixando, assim, o mercado aberto para as facções. “O surgimento de novas facções como os Bala na Cara são uma consequência da falta de atenção do Estado quanto às questões de Segurança Pública”, observa.

Mas afinal, quem são as pessoas assassinadas?

Segundo registros da Secretaria da Segurança Pública captados via Lei de Acesso, somente no Rubem Berta, 80% dos assassinatos ocorridos este ano tiveram como vítimas homens. Do total, 28% possuíam idades entre 20 e 24 anos. A maior parte das execuções acontece no sábado: 20% dos registros aconteceram no dia. Levantamento da Brigada Militar aponta que o instrumento mais utilizado nos homicídios é a arma de fogo (70%).

Em 2016 a escola sofreu diretamente com a criminalidade quando precisou readequar o horário dos turnos. “Com o toque de recolher, as mães vinham buscar os filhos às 15h. Teve uma mãe que tirou os filhos daqui porque ela disse que não havia uma manhã, na rua dela, em que não houvesse um corpo atirado no chão. E que o filho dela vinha sozinho para a escola. Como é que ela ia deixar o filho sair de manhã? Ela não sabia se o filho dela ia chegar aqui ou se ele ia sair daqui e chegar em casa”, relembra a funcionária da escola.

A fonte relata que a situação é ainda mais complicada porque os funcionários não têm contato com lideranças do tráfico, e que essa é uma realidade na maioria das escolas de periferias. “Geralmente as equipes escolares acabam sendo ‘protegidas’ por algumas facções. Os integrantes desses grupos criminosos conhecem o carro dos funcionários e ficam vigiando a escola. Não temos isso aqui. A gente nem sabe quem são essas pessoas”, salienta.

Transparência limitada

Para a elaboração da matéria, nossa equipe encontrou um problema grave: não há muitas informações disponíveis no site da SSP, ou seja, abertas ao público em geral sobre dados referentes à segurança. Os pedidos solicitados via Lei de Acesso foram respondidos em parte. Alguns dados não nos foram disponibilizados sob a justificativa de que, segundo a SSP, “podem comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”.

Em um momento tão delicado, onde cada vez mais o medo se instala, principalmente em Porto Alegre, omitir da sociedade o que acontece só fomenta a percepção da impunidade e do agravamento da violência. Não temos conhecimento sobre o andamento dessas investigações.

O especialista em Segurança Pública Marcos Rolim comenta que essa é a realidade encontrada por todos os pesquisadores da área no Brasil. Rolim ainda faz uma crítica. Diz que a base de dados disponibilizada pela Secretaria de Segurança Pública “é simplória, frágil e inconfiável”. Ele argumenta ser regra o fato das instituições policiais brasileiras não possuírem transparência e tampouco prestarem contas das suas atividades. Quem desejar coletar dados nesse meio enfrentará enormes dificuldades: “Na verdade, as informações não são fornecidas porque os gestores sabem que qualquer exame sobre eles irá constatar o baixo nível de profissionalismo e a ausência de um mínimo de qualificação na gestão das instituições. O segredo, aqui, cumpre o papel de impedir que o caos administrativo, os privilégios e o desperdício de recursos venham à tona. Polícias com alto grau de profissionalismo sabem que precisam de controle externo e da luz pública sobre as suas rotinas. Pesquisadores que estudam as polícias são muito bem tratados pelos gestores em países civilizados onde se descobriu, há muito, que a segurança pública precisa da ciência. Infelizmente, estamos muito longe disso, ainda na pré-história da segurança pública no Brasil”, enfatiza Marcos Rolim.

Reportagem: Arthur Marques, Eduardo Brandelli, Renata Simmi e Tina Borba (Jornalismo Unisinos — Porto Alegre)

Supervisão: prof. Luciana Kraemer

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