Texto: Juliane Quaresma, Karina Freitas, Rafael Bauer e Thiago Santos. / Fotos: Rafael Bauer e Thiago Santos.

O Poeta e a Rodovia

Unisinos Investiga
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9 min readJun 26, 2015

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Uma vez escreveu o poeta Mario Quintana:

Poeminha do Contra

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Mario Quintana fazia versos sobre as coisas simples do nosso dia a dia. Com humor, sabia encontrar caminhos para escapar daqueles sentimentos que não valhem a pena. O Poeminha do contra bem que poderia servir como pensamento guia para enfrentar a ERS-118, mas só quem passa por aqui sabe o quanto é difícil não perder a paciência.

Servindo de caminho para pelo menos 30 mil veículos diariamente, a ERS-118 é a principal estrada estadual cruzando a região metropolitana de Porto Alegre, onde vivem mais de 4 milhões de pessoas, quase metade da população gaúcha, segundo o IBGE.

Mas o que a história dessa estrada tem a ver com Mario Quintana? Aliás, o que essa história tem de interessante? Vamos começar por uma imagem:

Trecho da ERS-118, em Cachoeirinha, onde ocorre o afunilamento da pista duplicada para a antiga pista simples deteriorada.

Repare no que diz a placa na imagem “rodovia da vergonha buraco a frente”. A fotografia foi tirada em junho desse ano na ERS-118

A história da “rodovia da vergonha”

Em 12 de janeiro de 1996, era sancionada pelo governador Antônio Britto a Lei nº 10.700, que autorizava o governo do Rio Grande do Sul a conceder os serviços de melhoramentos e ampliação do complexo de obras da ERS-118. Ou seja, a duplicação da rodovia estava liberada.

Enquanto a duplicação virava lei, a frota de veículos circulando aumentava. Os buracos na Rodovia, que passa por seis cidades, Sapucaia do Sul, Esteio, Cachoeirinha, Gravataí, Alvorada e Viamão, aumentavam e a ERS- 118 , que interliga três rodovias federais: BR-116, BR-448, BR-290, ficava cada vez mais congestionada.

Em 2006, no governo de Germano Rigotto, com uma frota de quase 3,5 milhões de veículos, o Estado enfim começou as obras, 10 anos após a liberação por lei. Os buracos, já famosos entre os borracheiros da região, acompanhavam o tempo passar e o número de carros aumentar. Com a troca de governo em 2010, tudo parou, e os buracos, já com status de crateras, viravam celebridades na região, começando a dar fama à estrada, onde o show era protagonizado pelo para e arranca dos carros.

Em 2012, as obras haviam voltado, junto com uma das maiores dificuldades para a duplicação: a remoção de famílias e comércios instalados irregularmente às margens da estrada.

Em 2014, com quase metade da duplicação concluída, e uma frota estadual de mais de 6 milhões de veículos, as obras na ERS-118 voltaram a parar. Quase 70 milhões de reais já haviam sido gastos. Três empreiteiras realizavam o projeto. Mas a mudança de governo gerou novas paralisações, e aí entra a história de Dona Lia, Jorge Freitas e mais motivos para a vergonha.

Lia dos Santos, segurando o cartão de aluguel social, em frente ao pavilhão que alugou.

ERS-118 e a reintegração de posse

Lia dos Santos era proprietária de um desmanche de casas às margens da rodovia, dentro dos limite da estrada, em local proibido. Em dezembro de 2014, após notificação do Daer (Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem) e do Fórum de Sapucaia do Sul, teve que sair às pressas do terreno que ocupava. Seu negócio funcionava há 14 anos no local.

Saímos de lá às pressas, estavam nos pressionando a sair para começar a obra. Abriram os buracos para que não voltássemos e as obras até agora não começaram”.

Lia saiu do terreno e alugou um pavilhão bem próximo à rodovia, ao lado das valas abertos para a duplicação. Ela recebia 500 reais do aluguel social do Estado, destinado às famílias que foram deslocadas de suas moradias pela obra de ampliação da rodovia. Porém, só para alugar o pavilhão ela paga R$ 1,2 mil, fora água e luz.

Porém, Lia explica que tem pago há dois meses está tendo que arcar sozinha com o valor integral da locação, pois esclarece que o repasse do aluguel social está atrasado. Ela ainda conta que o espaço que conseguiu locar é menor que o ocupado no antigo terreno da estrada.

Preciso procurar um outro lugar para a demolição. Aqui não tem espaço suficiente para todo nosso material”.

A comerciante relembra que precisou alugar caminhões sozinha para fazer a mudança do terreno para o pavilhão.

Disseram que a prefeitura ia ajudar, mas não aconteceu nada”.

Jorge Freitas em frente à sua casa.

ERS-118 e os acidentes

Jorge Freitas mora há 40 anos em uma rua transversal a ERS-118 e conhece bem a história de duplicação da rodovia. Há três anos recebeu notificação para desocupar a área, apesar de ter contrato de compra e venda do local e o terreno não invadir os espaços delimitados pelo Daer para a obra.

Mas a história de Jorge com a rodovia ganhou um capítulo recentemente. Em maio deste ano, ele foi atropelado enquanto caminhava com a família pelo acostamento da estrada. Segundo o morador, a precariedade da sinalização e iluminação seria um dos motivos para o acidente envolvendo um caminhão, que fugiu sem prestar socorro.

Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística no Estado do Rio Grande do Sul (Setcergs), nos últimos cinco anos, no trecho de duplicação de 22 quilômetros entre Sapucaia do Sul e Gravataí, a ERS-118, registrou 34 mortes e 1.297 acidentes — média de um acidente a cada 33 horas.

O trecho também é considerado vital para o transporte de cargas, já que une cidades importantes da Grande Porto Alegre, como Sapucaia do Sul, Esteio, Cachoeirinha e Gravataí.

O motorista Paulo Ricardo Azevedo utiliza diariamente a rodovia há pelo menos 15 anos. Ele relembra dos transtornos gerados no início das obras de duplicação.

“Na parte inicial da obra tínhamos a esperança de que fosse concluída logo. Não parecia que se tornaria essa novela sem solução”.

A má conservação da pista e os grandes congestionamentos devido ao número de carros que trafega pela via são motivo de constantes problemas nos veículos.

“Desisti de ter um carro novo para andar na 118, é só para gastar dinheiro. Já perdi a conta de quantos pneus e amortecedores já gastei com meu veículo para vir ao trabalho”.

Nos dias em que precisa ir de Esteio para Gravataí de caminhão, Paulo prefere fazer a volta pela BR-116, para não precisar andar pela 118.

“Faço toda a volta, ando mais, gasto mais combustível, mas preservo o meu caminhão dos buracos e gastos maiores que essa pista má conservada e sinalizada ocasiona aos motoristas”.

De acordo com o secretário de Mobilidade Urbana de Gravataí, Adão de Castro, o atraso das obras da rodovia ERS-118 implicam em dois problemas principais: a segurança e os engarrafamentos.

Primeiramente, nós temos trechos muito mal sinalizados que contribuem diretamente no número de mortes, principalmente nos trechos com intersecções com vias urbanas. Nós tivemos 70% do número total de mortes em Gravataí por acidente de trânsito em 2014, nas rodovias. Depois, nós temos os engarrafamentos. Como são obras inacabadas, nos locais onde há o estreitamento de pista temos filas quilométricas de engarrafamento, bem onde existe o problema. Então somos prejudicados pelas vidas que perdemos e pela mobilidade na nossa cidade”.

A duplicação da ERS-118

A duplicação da ERS-118 é divida em três lotes, conforme imagem do mapa onde é realizada a obra. Cada lote está sob responsabilidade de uma construtora diferente.

Lote 1- Construtora Triunfo

Lote 2- Construtora Sultepa

Lote 3- Construtora Conterra

A duplicação do lote 3 passa por inúmeros problemas. Há desapropriações de terra que devem ser realizadas, além de postes nas margens da rodovia, que necessitam ser retirados pela concessionária de energia da cidade. É preciso ainda, realizar o recuo do cemitério de Sapucaia do Sul, localizado no quilômetro dois da rodovia, de responsabilidade da prefeitura da cidade.

Cemitério municipal de Sapucaia do Sul, as margens da rodovia.

O gasto

Através da Lei de Acesso à Informação, o governo informou que o gasto estimado para conclusão da obra é de R$ 300 milhões de reais, somando o que já foi pago, com o que ainda falta ser desembolsado.

O valor leva em consideração a duplicação, ruas laterais, pontes, viadutos, passarelas, contratos de remoção de entulhos e desapropriações.
Seguindo essa estimativa, cada quilômetro dos 22 que devem ser duplicados custará ao contribuinte mais de R$ 13 milhões.

Na ERS-118 o custo com a duplicação de cada quilômetro, segundo informações do governo, será superior a 3 vezes o custo da duplicação por quilômetro da rodovia federal BR-116 entre Porto Alegre e Pelotas.

Comparação: A duplicação de 211 quilômetros da BR-116, entre Porto Alegre e Pelotas, no Sul do Rio Grande do Sul, começou há dois anos e tem previsão de conclusão ainda para 2015, com orçamento em R$ 900 milhões. Aproximadamente 4,2 milhões de reais por km duplicado.

Aluguel Social

Entre dezembro de 2012 e maio de 2015 a Secretaria Estadual de Obras, Saneamento e Habitação informou ter pago R$ 8.100.801,52 em aluguéis sociais para famílias retiradas da ERS-118.

Ainda segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, o governo do Estado informou que 928 famílias recebem o aluguel social, recurso assistencial mensal destinado a atender famílias que se encontram sem moradia. A família beneficiada recebe uma quantia equivalente ao custo de um aluguel popular.

De acordo com a Secretaria de Obras Públicas Saneamento e Habitação do Rio Grande do Sul (SOP), foram retiradas no processo de reintegração de posse 706 famílias do município de Sapucaia do Sul, 64 em Cachoeirinha e 64 famílias em Gravataí. O aluguel social seguirá destinado para essas famílias até o reassentamento definitivo para seus municípios de origem. Ainda segundo a SOP, não consta nenhuma pendência relativa a retirada de famílias da ERS-118 para a secretaria. Entretanto, caso ainda ocorram eventuais situações de realocação, serão de responsabilidade do Daer.

A Vergonha

Quando questionados na reportagem sobre a ERS-118, a maioria dos moradores que vive próxima à rodovia usava termos como:

“Isso é uma pouca vergonha”

“Que estrada sem vergonha”

“Essa estrada é uma vergonha”

Os fatos parecem falar por si: demora na execução da obra, problemas nas desocupações, troca de governos. Acidentes. Buracos e desvios intermináveis. Um gasto pelo menos três vezes maior que o convencional.

O sentimento transmitido por alguns dos entrevistados era o mesmo, descrença em uma obra de duplicação de 22 quilômetros de estrada que já dura quase 20 anos e não tem previsão de acabar.

Passarela no trecho de Sapucaia do Sul da ERS-118.

Repare no que diz a placa embaixo da passarela (RS-118 Rodovia da Vergonha)

E o que o Poeta tem a ver com tudo isso?

Em outubro de 2006 o governador do Rio Grande do Sul assinava a Lei nº 12.611, nomeando a ERS-118 de Rodovia Mário Quintana. O artigo 2 da lei dizia: “Deverá ser divulgada, ao longo de sua extensão (extensão da rodovia), a denominação Mario Quintana”. Hoje, no lugar de placas em homenagem ao poeta, o que se vê, percorrendo a RS-118, são cartazes feitos a mão em tom de denúncia e apelo: “RS-118 Rodovia da Vergonha”.

O nosso poeta das coisas simples, amigo das crianças e da brincadeira com as palavras não merecia isto. Talvez os políticos que propuseram o nome de Mario Quintana para a rodovia, tenham pensado no Poeminha do Contra como inspiração…

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Mas na Rodovia Mario Quintana ERS-118, até agora não.

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Reportagens produzidas em aula pelos alunos de Jornalismo da Unisinos/RS para a disciplina de Jornalismo Investigativo