Pode ser doença sim… e mata

Ignorado pela sociedade, o alcoolismo já atinge 11 milhões de brasileiros.

Leonardo Stürmer
Unisinos Investiga
8 min readJul 7, 2016

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Foto: Leonardo Stürmer

Os nomes indicados com asterisco (*) foram trocados para preservar a identidade das fontes

O percentual pode parecer baixo: pouco mais de cinco por cento da população brasileira é formada por dependentes químicos e consumidores abusivos de bebidas alcoólicas, segundo os últimos dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no Relatório Global sobre Álcool e Saúde, divulgado em 2014. Comparando, em números absolutos, é como se toda a população do Rio Grande do Sul estivesse com a doença.

A doença é classificada internacionalmente como CID 10 F10 pela Organização Mundial da Saúde e pode matar

Só no estado gaúcho, o alcoolismo tem matado mais do que a tuberculose respiratória. De acordo com dados do Datasus, foram seis mil pessoas mortas desde 1996, período em que os dados foram contabilizados. Para a vice-diretora do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do HCPA/UFRGS Lísia Von Diemen, a maior dificuldade no combate à doença é a identificação tardia. Segundo a médica, enquanto as consequências não repercutem na família, trabalho ou saúde de quem sofre com o problema, o paciente não procura ajuda.

Fonte: Datasus

No RS, Porto Alegre lidera o ranking com 861 óbitos, mas cidades como Caxias do Sul e Bagé têm altos índices de mortalidade, com 239 e 157 mortes, respectivamente.

Renato* foi uma das vítimas fatais do álcool. Com a aposentadoria veio o hábito de frequentar bares diariamente e a falta de controle para identificar quando devia parar: “Ele se viciou e continuou a beber, até o dia que foi parar no hospital. Foi o ultimato dele”, conta Fernanda*, com quem era casado na época. Nem a internação foi suficiente para conter a abstinência: “Quando Renato voltou a beber, eu decidi me separar, não aguentava mais a pressão e lidar com aquela situação, era difícil para todos nós”, continua. Após a separação, o ex-marido seguiu morando com os filhos mais velhos, que sustentavam a casa. Até o dia que eles o encontraram sem vida, aos 58 anos.

Falta informação sobre a doença

O tema do alcoolismo só entra em debate na sociedade quando é relacionado a acidentes de trânsito, afirma Lísia Von Diemen. Para a especialista, diferentemente das regras de veiculação publicitárias impostas ao cigarro, ainda há muito incentivo para consumir álcool: “As propagandas de álcool são permitidas, mas as de destilados só se vê na TV fechada e em horários específicos, e as de cerveja já estão começando a ter algumas restrições”, comenta. Além disso, as propagandas de cerveja — a bebida mais consumida no Brasil, segundo a OMS — geralmente são relacionadas com entretenimento, como o carnaval e o futebol.

Ela também explica sobre o transtorno por uso de álcool, que pode ser leve, moderado ou grave, e depende de muitas variáveis, como por exemplo, o biotipo da pessoa. Alguém com maior tolerância ao álcool pode acabar bebendo mais e desenvolvendo a doença mais cedo. “Geralmente, a dependência demora de 10 a 20 anos para evoluir”, explica Lísia.

Conforme mostram os dados da OMS, mais do que o dobro de homens são dependentes de álcool em relação ao número de mulheres. São 8 milhões entre eles e 3 milhões entre elas. Nos grupos de Alcoólicos Anônimos, o gênero masculino prevalece, enquanto os centros de tratamento tem as alas masculinas maiores do que as femininas, segundo a supervisora de estágios do Hospital Psiquiátrico São Pedro, Elga Lague.

Para a doutora Lísia Von Diemen, a quantidade de homens sofrendo o problema ser maior vêm de uma cultura machista. Enquanto muitos dos homens dependentes desenvolvem a doença em bares, bebendo na rua, a maioria das mulheres alcoólatras tem o costume de consumir em casa, por vergonha de admitir a fraqueza e o vício.

A reportagem tentou falar com o governo para saber sobre as medidas que podem ser tomadas para controlar os efeitos desta doença na sociedade e não obteve resposta. A Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul foi contatada diversas vezes e nenhuma autoridade quis falar sobre o assunto.

O diagnóstico de uma doença

Mariano* ainda era adolescente no interior do estado quando começou a beber, e o álibi era a timidez: “Eu bebia pra dançar, bebia pra namorar, bebia pra tudo”. Depois, quando se mudou para a região metropolitana para trabalhar, a desculpa eram as horas livres: “Soltava às 16h00 e tinha até a meia-noite pra beber”, recorda.

Foto: Joaquim Oresko

A mulher reclamava, mas foi das filhas, já adultas, que veio o ultimato: ou ele abandonava o vício ou era elas que o deixariam. “Eu alcoólatra sou o olho de um furacão. Um furacão destrói tudo que está a sua volta, e eu destruí a minha família”, conta.

Foi então que resolveu procurar o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde recebeu o diagnóstico de dependente químico de álcool, e a prescrição de internação. Foi um choque para a família. Apesar da gravidade do quadro, a esposa chegou a resistir em aceitar que ele passasse um tempo fora de casa para o processo de desintoxicação, mas acabou convencida pelo marido sobre a importância do tratamento. A internação ocorreu no Hospital Psiquiátrico São Pedro: “Poderia dizer que foram os 20 piores dias da minha vida, mas foram os melhores”.

Prestes a receber alta, o médico aconselhou: “Quando sair daqui, tu procura um grupo de mútua-ajuda. Sozinho tu não vai conseguir”. Mariano, então, começou a frequentar o grupo Alcoólicos Anônimos. “Foi muito vergonhoso vir aqui e admitir para um grupo de pessoas que não conhecia que eu era alcoólatra”, fala Mariano. “Me disseram que a troca de experiências era a cura para o alcoolismo”.

Com mais de 70 anos de atuação no Brasil, o AA, como é conhecido, tem 500 grupos na região sul do país

Se você for para o AA achando que vai encontrar um ambiente melancólico e depressivo, vai se surpreender. No grupo 14 de julho, em Canoas, um dos 283 AAs do Rio Grande do Sul, o clima é descontraído, às vezes chega a ser de extremo bom humor, apesar do sofrimento presente nas histórias narradas. Nas duas horas em que a reportagem acompanhou a reunião, todos pareciam à vontade para contar sobre como chegaram ao ponto de precisar de ajuda para escapar do álcool.

O AA não recebe incentivo do governo, sobrevive da autogestão a partir de doação dos participantes, que é espontânea. Entretanto, a organização prescinde do apoio e encaminhamento feito por médicos e psiquiatras, determinante para a procura por parte dos pacientes. O trabalho fundamental dos integrantes do grupo é acolher os que chegam para as reuniões: “Se uma pessoa entrar aqui, sair e beber, nós vamos aceitá-la novamente”, conta Gilmar, um dos membros. E afirma: “Nós somos fracos perante o álcool. O indivíduo tem que admitir”.

Ao final de suas falas, eles sempre agradecem por permanecerem sóbrios e pedem para que assim permaneçam por mais 24 horas. Este pedido é um dos lemas do AA: resistir ao álcool dia por dia.

O grupo 14 de Julho é um dos muitos AAs que funcionam nas dependências de uma igreja, neste caso, católica. A organização se intitula laica, apesar de estimular a crença num “poder supremo”. As palavras estão descritas no “livro azul”, uma espécie de Bíblia da organização que leva regras, ensinamentos, história e informações sobre o alcoolismo no mundo. Algumas lições foram tiradas a partir de diversas religiões e Deus é simbolizado de outra maneira. “Quando foram escritas as normas, a palavra Deus foi trocada por Poder Supremo”, explica Gilmar.

Foto: Leonardo Stürmer

Um contraste: 283 grupos de AA e apenas 5 CAPS AD no Estado

Quem sofre com a dependência do álcool, ao procurar ajuda, deve optar pelos Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), para ter o nível da doença avaliado. O problema nesta procura é a falta de CAPS AD no estado. Em Porto Alegre, são apenas duas unidades, enquanto o Alcoólicos Anônimos atende em mais de trinta lugares da capital. De acordo com cada transtorno, diagnosticado por especialistas, o alcoólatra deve ser direcionado para o tratamento ou internação. Muitos acabam buscando apoio nos postos de saúdes em seus bairros, enquanto outros, às vezes sem documentos, são encontrados pelas ruas após consumo extremo de álcool, conforme afirma Elga Lague.

Os tratamentos podem se dar de diversas formas, podendo ser em centros de reabilitação e internações, públicos ou particulares. Conforme explica a vice-diretora do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do HCPA/UFRGS, os tratamentos são realizados dentro dos ambulatórios de hospitais e clínicas. Dependendo do caso, o paciente pode ter reuniões diárias ou semanais. Estas reuniões sempre contam com a presença de algum psiquiatra, que auxilia a focar a reunião no que os membros realmente precisarão para resistir à doença.

Os dependentes de álcool devem estar cientes da sua condição, seja durante o tratamento ou durante a ajuda que recebem no AA. Muitos acabam tendo dificuldades em admitir que estejam doentes, pois já se encontram em estágios mais avançados do alcoolismo. Segundo os especialistas, os tratamentos seriam mais rápidos e eficazes se a dependência fosse detectada ainda em seu princípio. Alguns sintomas, como gastrite e dores de cabeça, poderiam fazer parte do diagnóstico de diversas pessoas quando fazem consultas rotineiras em postos de saúde, mas que geralmente acabam passando sem serem relacionadas com o abuso do álcool.

O Alcoólicos Anônimos está presente no Brasil há quase 70 anos e conta com mais de 5 mil grupos em atividade no país

“Sou portador de uma doença chamada alcoolismo, que não tem cura”, admite Cléber*, membro do grupo 14 de julho. Para ele, é um grande passo admitir que tem a doença e que, com ajuda de outros, consegue seguir em frente. O Alcoólicos Anônimos foi onde Cléber encontrou ajuda há 17 anos. No início, numa tentativa de satisfazer o pedido da esposa, frequentava o AA enquanto seguia bebendo escondido. Mas lembra que logo parou de beber: “A recepção e o tratamento que recebi por todos me fez continuar, me senti acolhido”.

A esposa e o filho são as pessoas mais importantes em sua vida: “O destino quis que eu conhecesse a minha esposa. Se ela não tivesse me intimado, eu não estaria no grupo”. O filho, com dois anos na época, foi o motivo que o fez procurar ajuda, após a advertência da companheira: “Ou eu parava de beber, ou ela levaria meu filho embora”. Foi ali que Cléber percebeu a importância em manter sua família unida, e foi o AA que os ajudou a se unirem ainda mais. Atualmente, Cléber encontra a felicidade no olhar da esposa e dos filhos todos os dias, e valoriza cada 24 horas de sobriedade.

Foto: Leonardo Stürmer

Reportagem: Henrique Kanitz, Joaquim Oresko e Leonardo Stürmer

Fotografias: Joaquim Oresko e Leonardo Stürmer

Orientação: Luciana Kraemer

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Leonardo Stürmer
Unisinos Investiga

Jornalista que ama escrever. Pensador contemporâneo criado pela internet brasileira. Sempre indo em frente, sempre tentando.