O Mapa do Estágio no Rio Grande do Sul

Só entre julho e outubro de 2015 foram 26 recursos na Justiça envolvendo irregularidades

Marco Prass
Unisinos Investiga
15 min readNov 17, 2015

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Encarado como ferramenta para complementar o aprendizado e preparar o estudante para o mercado de trabalho, o estágio ainda possui tímida adesão no Brasil. Pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Estágios (Abres) aponta que, no ano passado, apenas 740 mil, ou seja, 10% do total dos universitários brasileiros estagiavam. No Rio Grande do Sul, levantamento feito em três das maiores universidades do estado — que reúnem mais de 78 mil estudantes universitários gaúchos –, mostra que o estágio tem sido uma opção para cerca de 11.600 alunos, representando 15% do total de estudantes.

O estágio é uma atividade pedagógica submetida à orientação e ao acompanhamento de profissionais habilitados, tendo em vista o projeto pedagógico de cada curso. Entre as universidades pesquisadas, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), de Porto Alegre, é a que tem mais alunos no mercado de estágios, apesar de não ser a com maior número de estudantes.

A secretária do EstágiosPUCRS, Sabrina Fernandes, conta que a universidade investe nos estágios como uma das principais modalidades acadêmicas, estreitando o diálogo da academia com o mundo do trabalho. “Esse diálogo realiza-se pela troca de experiências e fundamenta-se no compromisso com a formação de profissionais competentes, além de estimular o surgimento de talentos nas mais diversas áreas”, pontua. Ela avalia que a validade do estágio para o estudante está relacionada à possibilidade de promover a reflexão crítica entre teoria e prática, cabendo à universidade, pela regulamentação e supervisão qualificadas, garantir por meio dessa atividade seu propósito social com a construção do profissional cidadão.

A PUCRS conta com 20.429 alunos de graduação no segundo semestre de 2015.

A maioria dos estagiários das três universidades gaúchas está colocada em órgãos públicos. Somando todos, são 457 estudantes realizando estágio nos Tribunais de Justiça, 150 na Defensoria Pública e 862 nas prefeituras municipais da região metropolitana e Capital.As duas universidades particulares, PUCRS e Unisinos, também aparecem como importantes campos de estágio para seus estudantes.

A Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), de São Leopoldo, possui atualmente 25.345 alunos matriculados na graduação.

De acordo com o levantamento obtido junto às universidades, o Direito representa 22% dos estágios da PUCRS. Na Unisinos, o curso está em segundo lugar, vindo logo atrás das Engenharias. A Ufrgs apresenta resultado semelhante, como curso de Direito em primeiro lugar, seguido da Administração.

Na graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), de Porto Alegre, atualmente são 32.441 estudantes.

Esta relação entre mercado e academia é regulada pela Lei de Estágio. A autora do projeto foi a então deputada federal Manoela d’Ávila (PCdoB), que atualmente está no Legislativo estadual, encontra-se em licença maternidade. Porém, a chefe de gabineteda parlamentar, Titi Alvares, que colaborou na elaboração deste instrumento, respondeu a esta reportagem. Ela entende que sete anos após sua aprovação, a lei significou um grande salto de qualidade para os estagiários por vários motivos: “A determinação da carga horária máxima de seis horas, a comprovação de frequência escolar e a aprovação na atividade acadêmica são alguns dos avanços que a lei proporcionou”. Outro motivo que levou à criação da Lei de Estágio foi a falta de vínculo entre o que os estagiários faziam e a área que estudavam, o que acabava não servindo como experiência profissional. “Muitas vezes os estagiários eram apenas mão de obra mais barata sem direitos trabalhistas”, explica.

N ão são apenas os estudantes que se beneficiam da oportunidade. Para o professor de Finanças da ESPM, Marco Martins, outro ponto importante é que as empresas, ao contratarem estagiários, podem abrir espaço para futuras contratações, como uma espécie de seleção de talentos. Ele comenta que durante muito tempo, uma grande quantidade de empresas viu o estagiário como um empregado de baixo custo, despreocupando-secom a questão da complementação do estudo. Com a nova legislação, foi atribuída uma porção de direitos a esses aprendizes, como vale-transporte e férias.

Relação de trabalho nem sempre é tranquila

Em conversas informais nos corredores dos prédios universitários é comum ouvir reclamações de estudantes, mas esses problemas pouco chegam no setor responsável das universidades. Sabrina Fernandes, da PUCRS, explica que não há um levantamento sobre queixas de estagiários, mas destaca que, em comparação ao número de estágios regulares, a quantidade é pouco expressiva. “Sempre que ocorre alguma situação, tentamos ouvir todas as partes buscando sanar algum eventual problema”, afirma.

O mesmo ocorre na Unisinos, onde não existem muitas reclamações, assim como não há filtragem do total. A coordenadora do Unisinos Carreiras, Maricéia Machry, diz que os alunos precisam encaminhar ao setor as dificuldades ou irregularidades que surgirem no decorrer do estágio: “É o aluno quem vai sentir se está tendo algum problema, algum desvirtuamento dessas questões que estão previstas na lei em relação às atividades que ele está desempenhando, na questão do horário, alguns descumprimentos que estão previstos naquele termo de compromisso”.

Ela assegura que quando o estudante aponta alguma situação que não esteja apropriada, seja pelo relatório de atividades ou contato direto, a Unisinos faz a interlocução com os professores e o agendamento de um horário na gerência de atenção ao aluno para tentar uma aproximação com as empresas e poder identificar melhor o problema: “O aluno tem que relatar o que está errado. Nós vamos até o local, fazemos reuniões com essas instituições ou empresas que são campos de estágio para eles — inclusive já rescindimos contratos de estágio em função de achar que as condições não eram adequadas”.

Quando as queixas chegam até o setor, Sabrina garante que o professor responsável entra em contato com o estagiário para verificar a possibilidade de um entendimento, sugerindo estratégias ou alternativas que possam ser tomadas pelo aluno para tentar resolver a situação. Se o problema persiste, o professor também pode falar com a pessoa responsável no local de estágio e estabelecer um diálogo para conciliar a situação ou até mesmo deslocar-se até a empresa para essas tratativas. “Quando, mesmo assim, não se chega a um resultado satisfatório, o estagiário é aconselhado a buscar outro local para estágio, considerando-se a importância e a valorização do estágio como atividade acadêmica que contribui para a sua formação”, pontua.

MPT-RS registra em média 30 denúncias por ano

Apesar de poucos casos de irregularidades em estágios chegarem aos setores responsáveis das universidades, muitos vão parar na justiça. Levantamento solicitado à assessoria de imprensa do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul mostra que há uma média de 30 denúncias por ano sobre o tema “desvirtuamento de estágio”: foram 35 reclamações em 2013, 34 no ano passado e 24 até o final de agosto deste ano. Os denunciados são órgãos públicos, que contratam estagiários sem seleção pública, e empresas privadas que procuram estudantes para trabalhar no lugar de efetivos. Também há denúncias de irregularidades no pagamento (atraso de pagamento), no registro e de más condições no ambiente de trabalho.

Os casos são investigados pelos procuradores do MPT. A resolução pode ser o arquivamento por inexistência de irregularidade trabalhista, acordo extrajudicial, como termos de ajustamento de conduta, ou lide judicial, como ações civis públicas com pedido de indenização coletiva.

É possível pesquisar os acórdãos por palavras-chave e espaço de tempo no site do TRT. Crédito: site do TRT-4.

Filtragem feita pela reportagem junto ao site do Tribunal Regional do Trabalho da 4º Região (TRT-4), responsável por julgar os recursos trabalhistas de todo o Rio Grande do Sul, aponta 26 decisões referentes a desvirtuamento de estágio entre julho e outubro de 2015. Desses, 14 reconheceram vínculo de emprego decorrente de desvirtuamento do contrato de estágio; nove negaram o pedido de caracterizar a invalidade do contrato e o vínculo empregatício; e três julgaram haver o desvirtuamento da função de estágio, mas não o vínculo de emprego — casos de órgãos públicos ou de economia mista, pois a lei não permite declarar vínculo de emprego sem concurso público.

Banrisul é um dos órgãos públicos mais acionados

Uma das entidades com grande número de recursos julgados no Tribunal é o Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Nos últimos três anos — entre 25 de outubro de 2012 e 25 de outubro de 2015 –, foram 23 acórdãos envolvendo o Banrisul e desvirtuamento de contratos de estágio, dentre os quais 17 tiveram irregularidades reconhecidas. O maior motivo de reclamações (15) era sobre a inexistência de relatórios de atividade a cada seis meses, conforme determinado por lei, e de efetivo acompanhamento do estágio pela instituição de ensino e pelo supervisor designado pelo banco. Outra queixa recorrente de estagiários nas ações movidas contra a entidade (10) é de desvirtuamento das funções estabelecidas no Termo de Compromisso, tendo os estagiários que exercer a mesma função que funcionários efetivos. Outros quatro estagiários apontaram trabalhar mais que a carga horária máxima permitida pela legislação (seis horas diárias ou 30 semanais).

Solicitado a se posicionar sobre as ações, o Banrisul enviou nota afirmando que “sempre observou os princípios basilares que norteiam a administração pública, mais precisamente os da Publicidade, da Impessoalidade, da Moralidade e da Isonomia”. O banco também garante que a contratação de estagiários sempre seguiu critérios objetivos da Lei de Estágio, que estabelece as condições para a realização do contrato de estágio, e que entende não existir fundamento para ser abordado como caso particularizado do assunto proposto.

Sindicato dos Jornalistas move ação contra Band

A Comunicação é a quarta área com mais estagiários da Unisinos. Ao todo, são 392 alunos de Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas que realizam estágios em diversas empresas do setor de comunicação.

A má relação entre a sucursal da emissora Bandeirantes no Rio Grande do Sul e os estudantes de Comunicação não ficou somente nos boatos e na conversa boca a boca dentro das universidades. A denúncia de irregularidades ocorrendo na emissora chegou aos ouvidos do Sindicato dos Jornalistas (SINDJORS). Segundo o presidente da entidade, Milton Simas, a situaçãoveio por meio de um professor de jornalismo da PUCRS. “O mestre ElsonSempé nos relatou que havia alunos que chegavam na sua aula sem condições de estudar. Esses estudantes estavam sofrendo pressões psicológicas envolvendo o excesso de trabalho, de muitas horas realizadas durante o dia”, afirma.

O professor Elson Sempé confirma o estado nervoso que os alunos chegavam à universidade. “Lembro em alguns momentos de ter aluna chorando em sala, porque não estava aguentando a carga de trabalho e, consequentemente, a pressão. Não tinha mais tempo de estudar, nem de se dedicar realmente à aprendizagem. Era como se ela fosse uma funcionária contratada”, afirma o jornalista, que orientou, inclusive, os seus alunos a procurarem o Sindicato.

Definida por lei e pelo termo de compromisso assinado no momento de início do estágio, a carga horária é um dos motivos mais recorrentes de desrespeito à legislação. Ainda de acordo com o presidente do SINDJORS, as irregularidades se tornam ainda mais graves por determinar desvio de função e vínculo empregatício em grande parte dos casos.“A Band estava contratando os estagiários, pagando uma remuneração de R$ 400 por mês, e fazendo-os trabalhar mais de cinco ou seis horas diárias, participando de escala de trabalho no final de semana, feriado, enfim, fazendo edição, tendo desvio de função. Já que estavam fazendo isso, nós cobramos que a Band tenha que contratar todas essas pessoas como profissionais e pague o piso para todo mundo”, conta Milton Simas.

Os trâmites legais estão em ocorrência desde o final de 2013. Mas antes dos casos irem parar na justiça, a empresa de comunicação e o Sindicato tentaramchegar a um acordo por meio de diálogos e reuniões. Conforme o advogado do Sindicato dos Jornalistas, Antônio Carlos Porto, a relação com o grupo Bandeirantes foi diferenciada. “Raramente os estudantes vão a fundoe entram com processos judiciais, mas esse foi um caso distinto, porque partiu de denúncias de alunos, de estagiários que se revoltaram com a situação com a qual estavam passando.” Entretanto, não houve um retorno por parte do grupo de comunicação. “Então começamos a buscar elementos, provas, enfim, e com esses documentos levantados nós ingressamos com uma ação junto à justiça”, explica Porto. Na última audiência a emissora não compareceu. Atualmente, se aguarda a decisão do processo.

Reclamações também dos estudantes da Unisinos

Ex-estagiário da sucursal da Rede Bandeirantes no Rio Grande do Sul, Khael Santos é estudante de Jornalismo da Unisinos. Ele não denunciou a emissora de rádio para a justiça, nem questionou as condições de trabalho onde estagiava no relatório de atividades entregue para a Unisinos. Aluno do quarto semestre, ele cumpriu apenas os seis meses iniciais de contrato. De acordo com o estudante de Comunicação, apesar de ter sido incentivado por parentes a entrar com ação judicial, ele nunca pensou de fato em concretizar o processo.

Histórias envolvendo o trabalho excedente, ele possui várias. Por atuar como produtor no setor esportivo da emissora, trabalhar em finais de semana e feriados não era algo dado como excepcional. Pelo contrário. A rotina dos jogos fez o futuro jornalista ficar mais de 12 horas no estágio num mesmo dia. “Teve uma quarta-feira em que eu fiquei do meio-dia até uma e meia, duas da manhã”, relata. “Produzia o programa da tarde, então cheguei no meu horário normal, que era ao meio-dia. Tinha o programa Jornada naquele dia — ou seja, tinha jogo –, então tive que ficar pra acompanhar a partida. Depois de realizar todo o acompanhamento, no outro dia tinha que estar lá ao meio-dia de novo para trabalhar”, conta Khael.

No setor de jornalismo geral, a carga horária de seis horas normalmente é cumprida. “Em compensação, tinha que trabalhar no final de semana, em ritmo de escala. Tu estás lá num domingo, e eles diziam para pedir um ‘xis’porque tu sabias que não ia ter tempo de parar e comer”, afirma outro ex-estagiário de jornalismo da emissora. O estudante, que prefere não ser identificado e aqui será chamado de “A”, está no quinto semestre da faculdade e realizou estágio até o ano passado na rádio da BandAM e Band News FM. Apesar de haver uma determinação dentro da empresa de que estagiários não podem trabalhar nos finais de semana, eles não foram comunicados. “Se há uma norma dizendo que nós não podíamos trabalhar em final de semana, a gente tem, no mínimo, que saber”, reclama Khael, apontando que os estagiários tomaram conhecimento disso por meio de conversas no corredor.

J. atuou também no setor esportivo da Band até maio de 2015. Pedindo para não ser identificado, o estudante de jornalismo da ESPM confirma que as horas extras eram realizadas. “Quando entrei e fiz a entrevista com o coordenador da área, entendi que seria em casos extremos. Não pensei que seria mais seguido, mesmo compreendendo que a equipe é praticamente formada somente por estagiários”, relata. Ele afirma que cumpria escala nos finais de semana. “Em teoria, no contrato assinado, eu tinha que fazer 30 horas semanais, ou seja, ter dois dias de folga por semana, que normalmente são deixadas para o final de semana. Mas na prática eu só tinha direito a um dia”, recorda o estudante.

Conforme o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul (SINDJORS), Milton Simas, a prática de utilizar o estagiário como mão de obra profissional vem sendo recorrente, apesar de incorreta. “A Lei do Estágio é bem clara: é uma complementação curricular. Quatro horas diárias (recomendação do sindicato para os estagiários de jornalismo), de segunda a sexta-feira. E tem que ter um profissional ali orientando, e não um estagiário ocupando um serviço que é desempenhado por um profissional”. O Coordenador de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo, Edelberto Behs, concorda quanto à funcionalidade do estágio não obrigatório. “Ele não é para ser a substituição do profissional, é um processo de aprendizagem ao aluno e para a empresa serve como um apoio, não pode contratar pensando que vai ser mais barato e exigir a qualificação que somente alguém formado tem”, afirma.

A pesada rotina do estágio teve reflexos, inclusive, na saúde de J. Com crises de pressão alta, o jovem estudante diz que percebeu ser a hora de abandonar o estágio. “A pressão psicológica, de trabalho, de produzir programas em certos momentos sozinho, era demais. Ia para a aula sem vontade, desanimado. Quando atingiu minha saúde, vi que era hora de ir embora”, conta. Ele diz que não chegou a completar os primeiros seis meses de contrato.

Até o fechamento dessa publicação, a Bandeirantes não se pronunciou sobre o assunto.

Outras áreas também possuem queixas

O s problemas não envolvem somente a área de comunicação. B., que preferiu não se identificar para não sofrer represálias, atuou durante dois meses e uma semana em um escritório de advocacia localizado no centro de Porto Alegre. A situação vivenciada por ela foi semelhante à de J., que atuou no setor esportivo da Band. Segundo a atual técnica em administração, em poucos meses de estágio ela ficou presa a uma rotina de carga horária excessiva. O tempo de trabalho, que deveria ser de seis horas diárias — segundo estipulado pela lei e registrado em contrato — era frequentemente desrespeitado. “Muitas vezes, eu ficava hora, uma hora e meia a mais. Isso acontecia quase todos os dias porque eu tinha que ir ao Fórum, que fica mais de meia hora longe do centro só na viagem de ida”, explica.

Para muitos jovens, exceder o tempo limite de trabalho pode ser mais um obstáculo para lidar com a rotina de estudante, que exige empenho para estudar e deslocar-se à universidade. As viagens diárias à escola em que se formou, inclusive, contavam com mais um impedimento: atrasos no pagamento do salário e das passagens, um problema para a jovem, que precisava sair de Canoas e seguir até Porto Alegre para trabalhar. “Quando eu ainda estava lá, eles demoravam muito tempo para me pagar. Pelo contrato, eu deveria receber R$ 427, que era a minha bolsa auxílio, mais as passagens, R$ 160. Mas demoravam demais”, recorda.

Mas B. diz não ter enfrentado apenas esses problemas. “Eu não tinha horário para almoçar. Quando conseguia comer, tinha que ser rápido porque precisava entregar documentos no momento que eles queriam. Era sempre assim”, desabafa. Em função da impossibilidade de fazer as refeições diárias com tranquilidade, B. conta que passou a ter complicações de saúde. “Muitas vezes eu deveria ir a lugares distantes e passava muito mal porque tinha comido rápido. Também engordei demais por causa disso”, diz ela.

Vivendo tantas situações conflitantes, B. poderia ter desistido na primeira oportunidade, mas decidiu persistir para adquirir experiência em sua área. Para tal, também precisou enfrentar desvio de função, que se fazia presente no dia-a-dia do escritório. “Às vezes, eu tinha que recolher lixo, principalmente do banheiro. Também lavava a louça porque recebiam clientes”, conta. Ela “aguentou no osso tudo aquilo” porque precisava do dinheiro, justifica. Também deixou de denunciar a empresa porque não queria se incomodar.

O escritório em questão, que não é citado na reportagem por não haver qualquer registro formal contra a empresa, diz em resposta por e-mail, que “nenhuma das informações é verdadeira”. Também destaca que cumpre rigorosamente os deveres estabelecidos no contrato e exige apenas as tarefas informadas ao agente de integração. Contudo, ao fim do e-mail, pede identificação da estudante “para que possamos responsabilizá-la por meio da adoção das medidas necessárias junto aos órgãos competentes”, e finaliza: “ De qualquer sorte, estamos compartilhando as informações com o CIEE — Centro de Integração Empresa-Escola, que media o contrato de estágio — para que auxilie na identificação”.

Empresas devem enxergar como futuros funcionários

Diante das irregularidades que persistem, denunciadas ou não pelos estudantes, quais podem ser as perspectivas para o futuro? De acordo com o professor de Finanças da ESPM, Marco Martins, uma das mudanças necessárias é que o mercado enxergue a prática de outro modo. “O empresário precisa ver o estagiário de uma maneira diferente, como alguém que está ali para aprender e que pode contribuir ainda mais para a empresa como profissional efetivo depois”, diz. Para ele, a lei não resolveu esse problema e acabou fechando o mercado de trabalho para estudantes que procuram por estágios, pois o custo de contratar estagiários agora quase se equipara ao de funcionários, levando muitas empresas a preferir empregar profissionais efetivos.

A preocupação do professor vai ao encontro do resultado da pesquisa realizada no ano passado pela Associação Brasileira de Estágios (Abres) com agentes de integração e instituições de ensino. Até 2008, ano da aprovação da Lei de Estágio, havia 1,1 milhão de estagiários no país. Hoje, esse número diminuiu para 1 milhão, sendo 740 mil estagiários do ensino superior e 260 mil do ensino médio ou técnico — o que representa queda de 9,1% nas oportunidades.

Para a chefe de gabinete, Titi Alvares, que participou da elaboração do projeto da então deputada federal Manuela d’Ávila, a lei atinge os objetivos de melhorar o desenvolvimento e a qualidade de vida dos futuros profissionais se houver uma fiscalização efetiva. Porém, ela avalia que a legislação sempre pode ser aprimorada, pois a própria dinâmica do trabalho muda constantemente. “O que precisamos é estar sempre atentos às novas necessidades que possam surgir”, sentencia.

Reportagem: Fernanda Fauth, Manoela Petry, Marco Prass e Paola Oliveira

Supervisão: Prof. Luciana Kraemer

Fotos: Fernanda Fauth

Artes: Marco Prass

Ilustrações: Flaticon

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