Formação sólida através dos trabalhos do lar

Fernanda Andrade
UNIV Inspire Br
Published in
7 min readOct 7, 2020

Como assim? Quer dizer que quando mãe fala: “Menina vai varrer a casa!” e eu vou (ou não), estou construindo uma formação sólida?!

Confere aí! E não deixe de ler o artigo.

Larissa Flameschi e Fernanda Andrade

Resumo/Abstract

Resumo: Para navegar num mundo líquido, é necessário um caráter bem formado. Para que isso seja real na vida de qualquer pessoa é preciso que se torne ação. Trouxemos como alternativa para a formação do caráter, a realização dos trabalhos do lar. O trabalho doméstico é a prática da virtude e da solidez do caráter. O vídeo apresentado traz testemunhos de pessoas perceberam mudanças significativas através desse trabalho.

Palavras-chave: Caráter.Trabalho. Família. Lar. Serviço. Trabalho doméstico.

Abstract: To navigate a liquid world, a well-formed character is needed. For this to be real in anyone’s life, it must become action. We propose the accomplishiment of household tasks as an alternative for the formation of the character. Housework can be used as a mean to practice virtues and to strenght the character. The video presented brings testimonies from people who noticed significant changes in their lifes through this work.

Keywords: Character.Work. Family. Home. Service. Housework.

Formação sólida através do trabalho do lar

Neste trabalho desenvolvemos uma alternativa para o tema proposto pelo Univ Inspire “Navegar: buscar uma formação sólida em uma sociedade líquida”. Uma alternativa, porque não é a única, mas pareceu-nos real, possível e acessível a todas as idades, inclusive para crianças e jovens, idade na qual somos formados e formamos as bases para essa aventura que é a vida.

Apresentamos os trabalhos do lar ou trabalhos domésticos como instrumento para formação sólida e essa conciliação entre liberdade e segurança.

Aspectos gerais sobre trabalho manual, trabalho do lar, família e caráter.

Chegada a uma determinada idade na nossa vida, buscamos um trabalho ao qual dedicaremos muitas horas por semana.

O trabalho é condição para o desenvolvimento humano e como consequência disso o desenvolvimento social, cultural e econômico de uma cidade, estado ou país. Mas sem perceber fazemos uma divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, tendendo a depreciar o primeiro e enaltecer o segundo. Isso se dá, por que numa sociedade racionalista, é comum valorizar a razão e esquecer-se que o homem não é só racional, mas o homem é matéria também; corpo e alma. Para conhecer mais a realidade é necessária a união entre teoria e prática. E todo trabalho, seja manual ou intelectual tem aspectos teóricos e práticos. Nenhum trabalho é só teórico ou só prático.

Escrever ou editar um livro pode ser considerado trabalho intelectual e tem seu aspecto material como, por exemplo, usar os dedos para digitar, olhos para ver…Varrer a casa, assentar um tijolo de um edifício a ser construído, cozinhar, pode ser considerado um trabalho totalmente manual, porém é necessário um planejamento do trabalho, organograma do fluxo do trabalho, estudo de uma nova técnica culinária… Mesmo por detrás do simples “varrer o chão ou limpar a casa”, há um estudo, por exemplo: é melhor começar de cima para baixo assim o pó vai caindo e não se espalhando, ou é melhor aspirar por que estudos apontam que varrer levanta muita poeira do chão, ou ainda em tempos de pandemia, nos quais ninguém sabe como esse vírus se transmite, fazer uma limpeza úmida de todas as superfícies da casa com o uso de produtos bactericidas tende a ser a melhor opção, assim não há dispersão de particular no ar, somente sua retirada.

E todo trabalho tem uma dimensão social de serviço ou de consumo e uma dimensão moral na qual é possível o crescimento, desenvolvimento humano ou a corrupção através do vício.

Falando especificamente sobre os trabalhos do lar, tendo considerado anteriormente a falsa divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, como se um pudesse se sobrepor sobre o outro, ao trabalho do lar é imputado um aspecto negativo. Basta que uma jovem diga que trabalha como empregada doméstica e se apresentam uma série de argumentos que a persuadam a conseguir “coisa melhor, por que você merece mais”. Além de carregar consigo uma série de negatividade vinda de novelas (pelo menos no Brasil), nas quais aquela que trabalha no lar ou é fofoqueira, ou tem um caso com o marido da patroa.

Esse tipo de trabalho também é visto como uma corrente e um aprisionamento da mulher, uma tarefa chata na visão das crianças e tarefa de mulher ou “estou muito cansado para isso” na visão do homem. Mas por detrás do desconhecido e atacado trabalho do lar se desconhece o bem que ele proporciona para cada um desses membros da família:

“[…]Pode haver um mal entendido sobre os afazeres materiais que configuram o lar no que se desenvolve a vida de família. Como sabemos, estes trabalhos tem uma dupla finalidade: o bem físico e o bem espiritual de seus membros.

É muito importante entender a unidade dessas duas dimensões da pessoa — física e espiritual — para captar bem o sentido que possa ter hoje a urgência de reabilitar a família e os costumes. Porque, certamente, o lar, âmbito de acolhida pessoal, período de descanso físico e espaço de repouso espiritual, é ao mesmo tempo lugar mais próprio do encontro com a própria realidade pessoal e, por tanto, meio insubstituível para que a verdade aí encontrada possa ser comunicada nos diferentes ambientes sociais e culturais nos que sem dúvida se projetam as pessoas.”¹

A dignidade não está no trabalho, mas em quem o faz. A mulher tem sim um chamado natural para o cuidado do lar e de sua família, mas todos na casa, na família podem e devem desenvolver esse trabalho.

O homem é um ser transcendente e há nele uma semente de imortalidade, de permanência. Também é ser moral e todas as suas ações o configuram, configuram seu caráter.

O caráter é uma marca indelével, é como uma pessoa atua habitualmente: “Somos pais das nossas ações e filhos dos nossos hábitos”² dizia Aristóteles.

No lar, na família temos inúmeras oportunidades de forjar o nosso caráter, de desenvolver solidamente uma personalidade madura através do serviço ao outro. Seja ele ouvir até o fim pacientemente o que nossos avós dizem, seja levar todos os dias, a um horário fixo o lixo para fora… ali com aquelas pequenas ações diárias, estáveis e por tanto hábitos, vou mostrando ao mundo e a mim mesmo quem sou e quem desejo ser, onde quer que esteja, com qualquer pessoa.

Ordem nas ações demonstra ordem nos pensamentos. Se se tem o hábito de deixar o quarto em ordem, de guardar os materiais de limpeza ou utensílios de cozinha após o uso, é possível levar essa virtude, esse hábito arraigado para o trabalho num escritório, onde cada pilha de papel na mesa tem seu destino.

Pontualidade para começar e terminar uma tarefa. Começar a passar roupa e estabelecer um horário para finalizar, proporciona àquela pessoa, a qualidade de atenção e concentração para não queimar as roupas e também de não deixa-las amassadas. Também o hábito de estabelecer metas e “suar a camisa” para alcançá-las. Num mundo em que tudo parece fácil e ao alcance da mão com apenas um clique, perceber que é preciso por esforço nas coisas, para que elas aconteçam de verdade, é matéria muito importante para quem entendeu o valor de uma formação sólida.

¹ Cfr. María Jesús Soto-Bruna. Trasfondos Familia y Hogar: El hogar, ámbito de reconocimiento personal. CEICID. Pamplona. España. Página 35 e 36. Tradução por Fernanda Andrade.

² Citado pela professora de filosofia Larissa Nóbrega em Aula sobre o Caráter: “O que não nos ensinaram sobre quem devemos ser”

O ciclo da formação sólida

Trouxemos então o ciclo da formação sólida que condensa, de certa forma, o que tentamos expor ao leitor até agora:

Fig 1. Ciclo da formação sólida

Conclusão

Concluímos então que para navegar num mundo líquido de valores e convicções é preciso forjar o caráter, em todos os momentos, em todas as ações, para que estas se dirijam ao fim de cada um de nós, ao que de verdade queremos ser. Existem várias possibilidades para formar o caráter, entretanto queríamos que fosse algo acessível a qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou criança, então o serviço do lar foi essa resposta concreta, justamente porque todo mundo tem um lugar ao que voltar, temos pessoas a nossa volta para servir, mesmo que não seja nossa família de sangue.

Só ideias claras, saber a necessidade de melhorar e até querer essa melhora, querer esse bem, querer essa solidez, não forjam nosso caráter, é preciso usar a vontade, dominar a vontade para que as nossas ações sejam realizadas e direcionadas para isso.

Tarefa cotidiana, corrente e simples como o trabalho do lar, tendo em vista com isso a forja do nosso caráter, a solidez das nossas convicções num mundo de ondas revoltas, podem nos ajudar a dar um passo adiante para ser de verdade seres humanos completos.

Bibliografia

María Pía Chirinos. Antropología y trabajos. Hacia uma fundamentación filosófica de los trabajos manuales y domésticos. Cuadernos de anuario filosófico, serie universitária 157. Departamento de filosofia. Universidad de Navarra. 31080. Pamplona (Spain).

María Jesús Soto-Bruna. Trasfondos Familia y Hogar: El hogar, ámbito de reconocimiento personal. CEICID. Pamplona. España.

Aula sobre o Caráter: “O que não nos ensinaram sobre quem devemos ser” do Curso “Os Quatro Amores” Baseado no Livro (com o mesmo nome) de C. S. Lewis, ministrado pela Professora de filosofia Larissa Nóbrega. Referência online, curso privado, fechado ao público.

Anexos

Fig. 1 Ciclo da formação sólida.

--

--