A Escola de Atenas. Rafael Sanzio. 1509.

O papel da memória na educação

Giovanna Mascaro de Oliveira e Inês Midões de Matos

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23 min readOct 7, 2020

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RESUMO

Este trabalho busca salientar a importância da faculdade da memória enquanto uma capacidade que exige estímulo para uma formação coerente e sólida, contrapondo-se tanto ao “decoreba” desprovido de sentido, quanto à rejeição total do seu uso por se privilegiar métodos construtivos. Tomamos como base histórica livros e artigos tanto teóricos e práticos como históricos, que se basearam na visão clássica sobre o assunto. A boa formação ensina a pensar, e somente é possível pensar bem quando se tem boas referências internalizadas e quando elas estão à disposição do pensamento. Estabelecemos as diferenças entre memória natural e artificial, e entre memória quantitativa e qualitativa, e como cada uma se relaciona com a educação. Lembramos o papel da memória artificial como uma potencializadora da memória natural, do raciocínio e de outras capacidades, e listamos alguns princípios de funcionamento da memória, para melhor entendê-la. Trouxemos técnicas práticas para desenvolver a efetividade da memória e do estudo individualmente. E propomos atividades que poderiam ser aplicadas dentro ou fora do contexto escolar e que estimulem essa capacidade, não de maneira exclusiva, mas com um propósito formativo integral.

ABSTRACT

This work seeks to emphasize the importance of the faculty of memory as a capacity that requires stimulation for a coherent and solid formation, in opposition to both the decorate devoid of meaning, and to the total rejection of its use for privileging constructive methods. We took as historical basis books and articles both theoretical and practical, which were based on the classic view on the topic. We established the differences between natural and artificial memory, and between quantitative and qualitative memory, and how each one relates to education. We remembered the role of artificial memory as an enhancer of natural memory, reasoning and other capacities and we list some principles of memory functioning, to better understand the object. We brought practical techniques to develop the effectiveness of memory and study individually. Also we propose activities that could be applied inside or outside of the school context and that stimulate this capacity, not exclusively, but with an integral formative purpose.

INTRODUÇÃO

Ah, oi, sobre o que estávamos falando mesmo? Err… era sobre memória né? Ah sim, me lembrei. Memória. É maravilhoso poder lembrar. Lembrar pessoas que nos são importantes, de momentos especiais, histórias engraçadas, costumes familiares, hábitos. Que triste seria esquecer. Tão triste que é um dos piores sintomas de uma doença neurodegenerativa. Você começa a esquecer coisas banais, que a princípio não são tão importantes assim, uma tarefa no dia, um item de compra na lista do mercado, desligar o fogão.

E então vai esquecendo coisas mais importantes, coisas que você costuma fazer sempre e do nada não sabe mais como fazer, esqueceu. De repente aquela receita tradicional da família que você faz há anos, parece ser muito complicada, muitas coisas para fazer ao mesmo tempo, ou um compromisso em horário marcado, uma consulta. Você até sabe dirigir, como sempre fez há muitos anos, quem se esqueceria uma coisa dessas? Mas se perde no caminho para o médico que vai todo mês.

E então nos piores casos você começa a esquecer lembranças, momentos, pessoas, cuidados de higiene básica. Você não reconhece mais sua filha, mãe, pai, você não sabe mais ir ao banheiro nem tomar banho, você se perde até mesmo em sua própria casa. Apesar de existir toda uma causa fisiológica para essa doença ser assim, a dor pode ser pior do que outras doenças progressivas. A família inteira sofre junto pelos esquecimentos daquele querido familiar. É engraçado como algumas coisas só damos valor quando perdemos. Só nos lembramos dos momentos bons nos momentos ruins. Assim também é com quem não tem Alzheimer.

Podemos considerar que a principal diferença entre aqueles que sofrem e aqueles que não sofrem desse mal é que a falta da memória. Hoje em dia, graças à tecnologia não precisamos nos esforçar para lembrar de nada. Podemos anotar tudo, seja no bom e velho papel, seja no moderno smartphone. Não precisamos mais lembrar porque esquecer é recorrente, se eu esquecer algo eu procuro na internet e encontro. Não decoramos mais números de telefone nem compromissos, o seu celular te lembra se você esquecer.

JUSTIFICATIVA

Desistimos de exercitar a memória. Não podemos nem contar com as salas de aula para essa prática. Os métodos educacionais mais atuais e aplicados hoje em dia são relacionados à autonomia do aluno (Trivium, 2019). Os métodos semelhante ao tradicional, onde o aluno fica sentado em carteiras e o professor ensina a matéria estão cada vez mais antiquados. O fato de o aluno ter um papel passivo na própria aprendizagem e ser esperado um mesmo desempenho pelos alunos com diferentes competências são os principais motivos (Vidal, 2002). Por incrível que pareça, a memorização foi considerada uma desvantagem do ensino tradicional (Vidal, 2002; Angelo, 2005), como podemos ver em P. Freire (1967): "A própria posição da nossa escola, de modo geral acalentada ela mesma pela sonoridade da palavra, pela memorização dos trechos, pela desvinculação da realidade, pela tendência a reduzir os meios de aprendizagem às formas meramente nocionais, já é uma posição caracteristicamente ingênua."

OBJETIVO

Nosso objetivo é salientar a importância de uma memória bem desenvolvida para a formação integral do homem. Para fins didáticos, propomos atividades práticas para serem feitas em sala de aula com o fim de ajudar no desenvolvimento da memória do estudante durante os anos da Educação Básica e daremos dicas técnicas sobre como estudar e desenvolver uma boa memória.

METODOLOGIA

Nos aproximamos do tema por uma inquietação pessoal, sem saber bem por onde o trabalho nos levaria. O primeiro passo que demos foi partir de nossas próprias lembranças sobre a vida escolar — que envolveu a memória e a memorização — onde cada uma levantou em poucos parágrafos algumas memórias marcantes. Conhecendo apenas nossa experiência e percepção pessoal, as leituras nos levaram por um caminho de reflexão e auto-exame sobre nossa própria vida de estudos: esse caminho clareou aos poucos o tema que estávamos buscando.

Em seguida, buscamos uma bibliografia que nos ajudasse a entender o que é a memória e o seu papel. O livro “A Arte da Memória” da historiadora Frances Yates faz um grande apanhado histórico do entendimento do que é a memória, e principalmente a memória artificial ou mnemotécnica, ao longo do tempo. Com ele entendemos o que os principais filósofos disseram sobre o tema e levantamos alguns princípios gerais da essência e funcionamento da memória, da sua importância e do entendimento de sua função ao longo da história.

O livro “A Arte e a Ciência de Memorizar Tudo” é uma fonte mais recente com o objetivo similar de compilado sobre a memória, se misturando às experiências do jornalista Joshua Foer com a antiga mnemotécnica para um concurso de memorização. Além disso, o autor inseriu algumas reflexões atualizadas sobre a memória e sua relação com dispositivos eletrônicos. Ainda foi usado um livro do professor Pierluigi Piazzi que trata sobre o estudo eficiente e o papel do aluno na própria educação. Também utilizamos um estudo do professor Paulo Faitanin sobre a memória segundo Santo Tomás de Aquino encontrado na "Revista de Estudos Tomistas Aquinate".

A bibliografia sobre estudo nos pareceu debruçada especialmente sobre o tema, já que usualmente entende-se que aprender seja justamente reter o conhecimento. Com esse princípio, nos utilizamos do curso "Leitura e Memória" do Guilherme Freire, que trata de técnicas de estudo. Além disso, utilizamos artigos sobre educação clássica e sobre educação segundo a filosofia perene. Utilizamos também o livro “A boa educação” do padre húngaro Tihamér Tóth que nos permitiu uma compreensão específica de técnicas para desenvolver a memória bem fundamentadas.

A memória é potência para o inesquecível. Deus nos deu a memória como faculdade para nunca esquecermos o seu amor. Potência para guardar o passado, vivificar o presente e modificar o futuro. (Faitanin, 2006).

EDUCAÇÃO SEGUNDO A FILOSOFIA PERENE

Santo Tomás de Aquino não escreveu nenhuma obra estritamente relacionada à Educação especificamente, apenas um trecho das Quaestiones Disputatae de Magistro em que ele afirma que o professor não pode ser a causa primordial do conhecimento, esse é o papel do aluno, o professor tem a função de auxiliar o aluno e não de infundir a ciência. (Cristianismo, 1997).

Tal obviedade pode provocar no leitor uma certa surpresa sobre tão grande estudioso dar tão pouca importância para a Educação. No entanto, ele mesmo diz na Suma Contra os Gentios que “dentre o que os homens atribuem ao sábio, Aristóteles reconhece que é próprio do homem sábio ordenar. Ora, a regra da ordem e do governo de todas as coisas a serem governadas e ordenadas ao fim deve ser tomada deste próprio fim. De fato, qualquer coisa está disposta otimamente quando está conveniente ordenada ao seu fim. (…).” (as cited in Cristianismo, 1997).

Portanto, o conhecimento do fim é o ponto de partida de toda filosofia, assim também da Filosofia da Educação. Esse ponto é defendido não somente por Santo Tomás de Aquino mas também por autores mais recentes como Fernando de Azevedo, um educador brasileiro, que no seu texto histórico, na "Introdução ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", escreveu que “As divergências que suscitou e não podia deixar de despertar o Manifesto provém dos diferentes pontos de vista de que pode ser apreciado o problema fundamental dos fins da educação. Na fixação deste ideal é que surgem as divergências, que variam em função de uma concepção de vida e, portanto, de uma filosofia”. (as cited in Cristianismo, 1997).

Para Santo Tomás, o próprio mundo em que existimos possui uma ordenação intrínseca, independente da subjetividade do homem, e segundo ele essa ordem significa ordenação a uma finalidade. Tal ordenação existente no universo implica necessariamente na existência de Deus que é o fim de todas as coisas. A Filosofia da Educação na obra de Santo Tomás não é apenas uma antropologia filosófica que implica na filosofia da Educação, mas toda a sua filosofia. Resumidamente, podemos concluir que o fim a que Santo Tomás de Aquino se refere não está apenas na mente do professor, mas na realidade do mundo e é essa a profundidade de seu pensamento. (as cited in Cristianismo, 1997).

Podemos compreender melhor a linha de raciocínio de Santo Tomás com as palavras do filósofo Josef Pieper “O homem é um ser tal que a sua realização, a sua suprema felicidade, se encontra na contemplação. Esta sentença é de uma extraordinária relevância para a antropologia filosófica e para a educação. Ela expressa toda uma concepção cósmica, especialmente uma concepção que busca as raízes da natureza humana”. (as cited in Cristianismo, 1997). Portanto, de acordo com os textos filosóficos de Santo Tomás, podemos concluir que levar o homem à contemplação é a finalidade da Educação. Por causa disso, esse trabalho não deve ser somente do educador.

A contemplação nada mais é do que a felicidade. O assunto ensinado nas salas de aula são importantes, porém a busca da felicidade é superior a tudo isso. O homem nasceu para ser feliz, entretanto o desenvolvimento até essa felicidade deve ser parte integral em sua formação. Ela permanece na essência do ser humano mesmo depois de já terminada a Educação Básica e é composta de muitas outras maneiras de formação que continuam durante toda a vida. (Cristianismo, 1997). Dessa forma, a sociedade ideal, deve não só defender a liberdade dos cidadãos, mas garantir que estes tenham todo os meios necessários para alcançar a felicidade já que “Não é somente para viver, mas para viver felizes, que os homens estabeleceram entre si a sociedade, já que é a finalidade dela a felicidade na vida.” (Cristianismo, 1997).

Será que a nossa sociedade atual pensa na educação para o fim último do homem? Cláudio Abramo, um matemático e filósofo, escreveu na Folha de São Paulo, em julho de 1991, que:

“Não é a falta de educação que causa o subdesenvolvimento. É o subdesenvolvimento que é a origem da ausência de educação adequada. As sociedades somente investem recursos na educação quando têm alguma idéia dos motivos pelos quais se deve fazer isso.” (as cited in Cristianismo, 1997).

A(S) MEMÓRIA(S)

Ao longo de toda a história do estudo da memória, estabeleceu-se uma diferença entre a capacidade natural de lembrar e aquilo que deliberadamente nos esforçamos por lembrar. Também nota-se uma diferença entre aquilo que facilmente nos vêm à mente e aquilo que precisamos “procurar” dentro de nós. Tanto Aristóteles quanto Santo Tomás de Aquino estabelecem a diferença entre memória e reminiscência.

Para ambos, existe uma memória sensível, parte dos instintos que os animais têm. Essa memória é inferior à presente nos seres espirituais e é definida como apenas a capacidade de conservar os efeitos produzidos pelos sentidos, de acordo com cada espécie e nada além da presença do objeto a ser memorizado. Porém, os seres humanos possuem uma memória exclusiva. (Faitanin, 2006; Yates, 2007).

A memória intelectiva, por ser uma potência da alma e dos seres com intelecto, é própria de seres com espírito. Já a reminiscência seria o ato intelectual deliberado de lembrar e procurar lembranças, raciocinando com as capacidades de ordem e de associação do pensamento. (Faitanin, 2006).

A mnemotécnica, memória artificial ou arte da memória são técnicas para aumentar a capacidade de retenção e aprimorar essa busca interna. Essa memória artificial era utilizada inicialmente principalmente pela Arte da Retórica (Yates, 2007), mas ao longo do trabalho veremos como pode ser útil para muitas outras coisas. Apesar desta distinção didática, todas as “memórias” se confundem no ser humano, que é um só, e muitas vezes as discussões as misturaram e trataram de como a natural e a artificial influenciam uma a outra.

Somente é possível conceber o verdadeiro conhecimento como algo que está dentro de nós, pode ser acessado, refletido, criticado, associado a outra ideias, transformado em coisas novas e passado adiante. Aquilo que não é retido interiormente, não pode ser considerado como conhecido; logo, a memória é parte essencial do conhecimento. (Faitanin, 2006). Santo Tomás de Aquino diria que não apenas a memória é parte do conhecimento, mas o conhecimento também é necessário para a memória. Existem algumas condições para que se dê a retenção de informações, ou seja, a memória. São elas, a sensação, a percepção, o conhecimento e a conservação. A sensação porque só é possível memorizar algo que sentimos com os nossos sentidos, já que é por meio deles que percebemos o mundo. A percepção é a captação do momento presente: além de ser necessário percebermos com os nossos sentidos, devemos notar essa informação em meio a tantos outros estímulos sensíveis. O conhecimento por sua vez, é necessário, já que só é possível guardar na memória aquilo que se conhece. E por fim, a conservação é importante porque se alguma informação não for conservada, ela não poderá ser rememorada (as cited in Faitanin, 2006).

E para recordação, para que possamos recordar de uma informação retida, é preciso que tenhamos consciência, atenção e interesse, se não houver alguma dessas condições o ato de lembrar é prejudicado . A consciência é importante por que sem este estado de consciência do sujeito consigo mesmo e a evocação de uma informação adquirida não há recordação. A atenção, pois sem o sujeito estar consciente e com toda atenção em evocar a informação, não há recordação. E interesse, pois sem o interesse do sujeito em tornar a atenção para um estado de consciência de evocação da informação, também não há recordação. A partir das condições necessárias para efetivar a memória e a reminiscência, todas as dicas e técnicas para lembrar, dadas nos próximas sessões trabalham uma ou várias dessas condições (as cited in Faitanin, 2006).

Da mesma maneira, apenas se pode construir qualquer pensamento ou atividade em cima do que é conhecido, fazendo da memória matéria e ferramenta essencial de todas as atividades humanas. Não à toa a mãe das musas, guardiãs das artes na mitologia grega, é a Memória. O autor anônimo do mais antigo manual de Retórica a que temos acesso, o Ad Herennium, fala sobre a memória como essencial ao conhecimento: "Agora, voltemo-nos para a sala do tesouro das invenções, a guardiã de todas as partes da retórica, a memória." (as cited in Yates, 2007, pp. 21). Agostinho fala no livro X de "Confissões" sobre sua memória:

“Chego aos domínios e vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inumeráveis imagens, percebidas pelos sentidos. Ali está guardado tudo o que pensamos. Quando entro ali, evoco de imediato o que quero que venha à luz, e prontamente algo aparece; outras coisas precisam ser procuradas por mais tempo, como se estivessem em algum refúgio mais secreto. […]” (as cited in Yates, 2007, pp. 68); “[…] tudo o que aprendi das artes liberais e ainda não esqueci; distante, como que retirado em algum lugar mais íntimo, que não é um lugar; assim como não são as imagens mas as coisas mesmas que ali estão” (as cited in Yates, 2007, pp. 69).

Além do conhecimento, a memória é parte essencial da moralidade. Santo Agostinho a coloca como parte da virtude teologal da Esperança, pois por meio dela lembra-se das verdades e promessas eternas (as cited in Freire, 2020). Santo Tomás de Aquino relaciona a memória com a moral através da influência da memória nas escolhas da vontade. A vontade, apesar de ser uma inclinação da razão, é livre tanto para o bem quanto para o mal, e sob a influência do hábito da escolha errada, orientada pelos instintos, sentidos e sentimentos pode facilmente ceder à força de uma lembrança contida na memória. (as cited in Faitanin, 2006). Santo Tomás também a coloca como parte da virtude cardeal da Prudência, lembrando o que Cícero já dizia antes de Cristo “A Prudência é o conhecimento daquilo que é bom, daquilo que é mau e daquilo que não é nem bom e nem mau. Suas partes são a memória, a inteligência, a providência (memoria, intelligentia, providentia). A memória é a faculdade pela qual a mente relembra o que aconteceu. A inteligência é a faculdade pela qual a mente averigua aquilo que é. A providência é a faculdade pela qual se vê que algo acontecerá antes que ocorra.” (as cited in Yates, 2007, pp. 38–39). Santo Alberto Magno dizia que pela memória nos lembramos dos exemplos virtuosos que vimos e ouvimos, além de lembrarmos do Céu e do Inferno, o que inspira o amor e o temor a Deus. (Yates, 2007).

Considerando o papel muito maior que se dá à memória além da retenção de conhecimento, podemos afirmar que uma pessoa com boa memória é uma pessoa mais integralmente formada.

A MEMÓRIA ARTIFICIAL OU ARTE DA MEMÓRIA

Mas, afinal, qual o papel da memória na educação? Falamos até agora de seu papel em nossa vida, de sua importância como um todo; mas isso é tão óbvio, é claro que nos lembramos das coisas importantes pra nós, é claro que, ao refletir, vamos nos valer da experiência, isso é natural! É verdade, mas a capacidade humana natural de lembrar de pode ser aumentada e melhorada. No Ad Herennium diz que:

“Há dois tipos de memória, uma natural e outra artificial. A natural é aquela inserida em nossas mentes, que nasce ao mesmo tempo que o pensamento. A memória artificial é aquela reforçada e consolidada pelo treinamento. Uma boa memória natural pode ser aprimorada por essa disciplina, e pessoas menos dotadas podem ter suas memórias fracas melhoradas por tal arte.” (as cited in Yates, 2007, pp. 21).

Para se ter uma ideia da importância da memória artificial: antes de sua conversão, Santo Agostinho era professor de retórica, ele conhecia todos os artifícios e técnicas de memorização, e o trecho de "Confissões" que lemos anteriormente estão repletos de termos e ideias da memória artificial (por exemplo, “palácio da memória”), ou seja, essas técnicas faziam parte de sua maneira de pensar e refletir. (Yates, 2007, pp. 70).

Ainda no contexto de memória artificial, em seu curso de Leitura e Memória Guilherme Freire faz uma distinção entre a memória quantitativa e a memória qualitativa. A memória quantitativa é relacionada à quantidade de coisas memorizadas. Ela deve ser treinada em vista de aumentar a capacidade de retenção, basicamente acostumando-se a guardar coisas novas. Ela é exercitada pela quantidade de coisas memorizadas que podem ser, a princípio, qualquer coisa. De acordo com Guilherme Freire, a quantitativa deve ser treinada como um exercício físico: um pouco todos os dias. (Freire, G., 2020)

A memória qualitativa exige um pouco mais: ela está ligada ao bom uso e à organização do conteúdo dentro de nós. Ou seja, quando aquilo que se lembra pode ser de fato considerado conhecimento ao ser acessado, refletido, relacionado e associado a outras coisas, e quando esse conhecimento pode ser compartilhado (Freire, G., 2020). Ambas são importantes, e podem e devem ser estimuladas, pois a quantitativa alimenta a qualitativa, e a qualitativa dá sentido à quantitativa; porém, a maneira de estimulá-las é diferente. Nos parece, portanto, que o papel da educação, em respeito a memória, é estimular a formação de uma boa memória artificial; ou seja, maneiras de lembrar mais e melhor: quantitativa e qualitativamente.

Quando pensamos em memória no contexto da educação, muitas vezes pode nos vir a ideia de memória quantitativa. Talvez, em um primeiro momento, tenha vindo à tua mente a memorização de capitais, de fórmulas, de musiquinhas usadas em cursinhos; para outros pode ter vindo a memorização de poemas ou de uma apresentação oral. Essas coisas podem ser muito boas se têm um porquê; quando não tem ou quando esse porquê não é claro, muito facilmente se pode cair no esvaziamento do sentido da memória. Muitas vezes, inclusive, a crítica por parte de algumas pessoas é justamente a esses aspectos. Como critica Paulo Freire, por exemplo, em seu ensaio "Educação como prática da liberdade": “Implica, não uma memorização visual e mecânica de sentenças, de palavras, de sílabas, desgarradas de um universo existencial — coisas mortas ou semimortas — mas numa atitude de criação e recriação.” (Freire, P., 1967, pp. 110) Isso porque esse tipo de informação de fato não constitui conhecimento por si só: faltam os aspectos qualitativos. Porém, como vimos, aprender a “simplesmente” reter é uma parte importante da educação, sem ela ficará uma lacuna nas capacidades; apenas não é suficiente por si só… Quanto a memória qualitativa, muitas vezes nem mesmo a classificamos como “memória”, mas simplesmente como aprender. (Piazzi, 2008).

Além de reter e aprender, o hábito bem cultivado de lembrar-se das coisas e saber como as organizar mentalmente e usar bem delas potencializa o uso da memória para outros fins além do conhecimento: como o fim moral, de reflexão e de autoconhecimento, que foram comentados anteriormente. Mas para muito mais coisas pode nos ser útil uma maior capacidade de retenção e organização do pensamento. Por exemplo, para habilidades sociais e para resolução de problemas. Lembrar-se dos rostos e dos nomes das pessoas são habilidades raras, especialmente hoje, que diferenciam as pessoas que conseguem fazê-lo. Olhando pelo viés moral, tratar as pessoas pelo nome e de maneira personalizada — por lembrar-se verdadeiramente de quem ela é — potencializa a virtude da Caridade para com os outros. E a resolução de problemas está diretamente ligada à lembrar-se das experiências, ter um arcabouço de referências e, claro, saber utilizá-las: de fato não é suficiente lembrar e repetir; mas lembrar não deixa de fazer parte de criar. Como vimos em Ad Herennium a memória é a: “sala do tesouro das invenções”.

OS PRINCÍPIOS DA MEMÓRIA

Já vimos a maneira com que a memória artificial pode melhorar o pensamento e a memória natural, mas também as tendências naturais do pensamento servem de princípio para as técnicas mnemônicas. O autor de Ad Herennium diz assim:

“Deixemos, então, a arte imitar a natureza, encontrar o que deseja, e seguir suas próprias instruções. Porque, no que diz respeito à invenção, a natureza nunca vem em último lugar e nem a educação em primeiro; ao contrário, o início das coisas provém do talento natural e os fins são atingidos por meio da educação.” (as cited in Yates, 2007, pp. 26–27).

Portanto, para saber usar melhor nossas capacidades, é preciso conhecer seu funcionamento.

Ao longo do trabalho levantamos diversas características da memória e do pensamento. Faremos a seguir um apanhado dessas características, em vista de fazer um panorama dos princípios da memória percebidos pelos autores tratados, para conhecer melhor nosso objeto de estudo.

O pensamento e a memória funcionam naturalmente de maneira fortemente associativa. Assim, a mnemotécnica se utiliza muito da associação e da ordem, sendo estes os maiores fatores potencializadores da memória artificial, ao colocar aquilo que se quer lembrar à disposição do pensamento de maneira eficiente e ordenada, ou seja, em uma sequência associativa. Além disso, percebeu-se que o sentido humano que mais marca naturalmente a memória é o visual. Aproveitando essa tendência natural geralmente associava-se aquilo que se queria lembrar à uma imagem na mente. Ainda usando das forças naturais para aperfeiçoar o artificial, sabia-se que a memória natural costuma fixar-se naquilo que mais tocou a pessoa emocionalmente, seja para o bem ou para o mal. Logo, associava-se aquilo que se queria lembrar a uma imagem que causasse forte emoção. (Yates, 2007; Foer, 2011).

Todos esses conceitos eram usados na construção dos palácios da memória citados por Agostinho. Os “palácios” são os locais interiores criados pela imaginação onde se organizavam as imagens memorizadas de maneira ordenada (este conceito está bem explicado nos livros “A Arte da Memória” e “A Arte e a Ciência de Memorizar Tudo”, e em suas fontes mais antigas como o Ad Herennium). Talvez não consigamos, não entendamos bem, ou não vejamos sentido em criar esses espaços interiores para organizar a memória (pois exige muito treinamento); porém, conhecer os princípios da ordem, associação, visualidade e emoção pode ser uma importante ferramenta para melhorar o entendimento da memória e utilizá-la melhor.

Além disso, é de grande utilidade lembrar que a Arte da Memória era inicialmente usada para a Arte Retórica e para a contação de histórias, ou seja, oralmente. Os oradores e aedos se utilizavam da associação dos sons para se lembrar das ideias que deveriam proferir. A rima é um tipo de associação sonora, mas não é a única. E hoje já provou-se pela ciência que o conhecimento aprendido para ser ensinado se retém mais em nossas memórias; tanto que essa é uma dica muito utilizada em cursinhos e quando se fala em técnicas de estudo. Não apenas pela oralidade, mas porque há um motivo externo para se lembrar e aprender: passar aquilo de maneira inteligível para alguém.

O uso dos sentidos e do corpo é muito importante para a memória, lembrando o que dizia Santo Tomás que os sentidos e a percepção são condições do conhecimento e considerando que o ser humano nunca está separado de seu corpo para nenhuma das atividades intelectuais. Os sentidos levantados aqui foram principalmente a visão e a audição, de acordo com o que se conhece das fontes mais antigas, mas o uso de todo o corpo é importante."Dessa maneira, a arte complementa a natureza. Pois nenhuma das duas será suficiente sozinha […]" como dito no Ad Herennium. (as cited in Yates, 2007, pp. 32)

O EXERCÍCIO DA MEMÓRIA NA VIDA DE ESTUDOS

Baseando-nos em parte no livro A Boa Educação de Tihamer Toth, elencamos algumas dicas que visam aprimorar a memória. É interessante observar os conceitos e princípios da mnemônica que podem parecer tão abstratos aplicados em soluções simples.

Uma técnica bem comum para memorizar textos ou poemas longos é a divisão. Primeiro dividimos o texto em partes menores e decorar cada uma delas individualmente. Com poesias, as divisões são os versos e estrofes. Os versos devem ser decorados individualmente e ao final da poesia, você terá decorado o poema inteiro.

Durante o estudo evite mudar de assunto toda hora, aprofunde-se em um e passe o máximo de tempo que puder nele. Em seguida, descanse um pouco, dê um tempo para a sua mente assimilar o assunto estudado, a atividade persiste no nosso cérebro ainda depois de terminado o estudo. Procure relacionar os temas estudados, o pouco que conseguir já ajudará na memorização.

Comece os estudos pela matéria que menos gosta. No início, o seu cérebro não está cansado e poderá se dedicar melhor àquela atividade se for realizada primeiro. Distribua as horas de estudo de modo equivalente durante o dia. Preste atenção no prazo determinado e cumpra o combinado. Evite adiar tarefas, isso só te perturbará para o estudo no dia seguinte. Habitue-se a realizar uma tarefa de cada vez. É impossível fazer simultaneamente duas coisas bem feitas, uma das duas não sairá boa o suficiente. Então foque toda a sua atenção em uma tarefa de cada vez, fazendo um intervalo entre elas.

Para escrever uma redação, primeiro estude o máximo que puder sobre o tema. Ao final, várias ideias aparecerão e se quiser pode anotá-las para não esquecê-las. Comece a escrever, mas descarte alguma ideia se ela for ruim, as boas serão suficientes para a sua dissertação.

Estude com o corpo. O trabalho de estudar é mental, porém a nossa mente está no nosso corpo, tanto que trabalho mental é tão cansativo quanto trabalho braçal. Então use e abuse dos seus sentidos. Leia em voz alta e andando, mesmo que em círculos e apenas movimentando os lábios, ouvindo a própria voz. Faça resumos. Além de reforçar a memorização do conteúdo, o movimento da mão ao escrever também ajuda. Explique para as paredes. Após aprender uma matéria nova, fale em voz alta explicando mesmo que para ninguém o que aprendeu. Tenha uma boa postura durante o estudo, mas não boa demais. Se ficar muito confortável, poderá adormecer, se ficar muito torto, o estudo não renderá.

Ritmize a leitura. O ritmo tem papel fundamental na memorização. Frequentemente ouvimos uma música, ou uma frase ritmada e esta demora para sair da nossa cabeça. Por isso, leia com ritmo andando marcando o compasso, movimente as mãos e gesticule.

Estude com prazer, mas não contenha-se a apenas estudar o que gosta. Estude mesmo o que não gosta, por dever. Se precisa aprender algo que não gosta, faça-o com prazer, o trabalho imediatamente se torna menos custoso.

Evite estudar durante refeições. O fluxo de sangue é voltado todo para a digestão, e um estudo simultâneo prejudica a efetividade cerebral para um estudo de qualidade.

O professor Pierluigi em seu livro Aprendendo Inteligência fala-nos de alguns princípios neurológicos do processo de aprendizagem. Ele diz que o estudo é mais eficiente quando feito logo após a aula, antes de uma noite de sono ou de uma soneca. Seu maior conselho, que ficou bem conhecido, é “Aula dada, aula estudada”. (Piazzi, 2008)

PROPOSTAS

A seguir, levantaremos algumas atividades que podem ser aplicadas ou adaptadas, que estimulem essa capacidade humana da memória, quantitativamente e/ou qualitativamente, para qualquer contexto formativo. E ainda, considerando uma educação sólida e integral, é bom que aquilo que será material de rememoração (mesmo quantitativa) seja também edificante. Em grande parte esses recursos não são desconhecidos, mas são muitas vezes considerados de menor importância.

Primeiramente, o uso do teatro e das apresentações teatrais são de grande valia para o desenvolvimento de muitas habilidades, e entre elas, em grande parte, a memoração. Por isso o teatro é um recurso muito interessante para se utilizar em uma formação sólida e integral. O perigo desse recurso é justamente subestimá-lo, pois leva a decisões que diminuem a sua eficácia, por exemplo: escolher peças não tão boas por serem mais simples; pouco empenho no preparo das apresentações; pouco estímulo aos alunos para que participem ou para que se prepararem bem. Só estes já minam em grande parte a eficácia educativa das apresentações teatrais.

Outra ideia bem conhecida é a memorização de poemas. Muitas vezes a poesia pode não chamar tanto a atenção dos educandos. Para que isso seja estimulado propomos a criação de um concurso literário — ou mesmo um concurso de memorização — onde uma das etapas poderia ser a memorização e recitação de um poema. Outra ideia seria a criação de um clube de memorização, onde até se poderia passar técnicas mais avançadas, visando a uma apresentação.

Uma outra técnica que fortalece a memorização e já foi mencionada acima é o uso dos sentidos para o estudo. Especificamente a audição, e para isso será utilizada também a fala. A atividade é que os alunos, ao ouvir e falar a explicação de conteúdos abstratos e complexos que aprenderam um para o outro, a memorização é fortalecida. Para auxiliar no desenvolvimento da atividade, o professor pode passar um questionário para que os alunos discutam sobre as respostas e acompanhar individualmente cada grupo.

As explicações são fundamentais, mas estruturas visuais e gestos também tem o seu papel. Os modelos tridimensionais reforçam a memorização através de estímulos visuais e a manipulação com as mãos. As massinhas de modelar servem bem a esse papel. Podem ser feitas diversas estruturas, de diversas disciplinas e também podem ser utilizadas para estruturar conceitos e processos abstratos. Assim também sites e vídeos são mais didáticos do que uma explicação genérica, se forem escolhidos bem e salientar o porquê.

Por fim, o educador não deve subestimar a explicação dos motivos e porquês aos educandos; também não deve esquecer de ensinar, não apenas o conteúdo, mas como trabalhá-lo, como estudar, como lembrar, como aprender. E não deve se cansar de repetir as mesmas coisas. Hora ou outra, em alguém, farão efeito: podem ficar no fundo da memória, apenas esperando um dia para serem lembradas.

REFERÊNCIAS

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Angelo, Graziela Lucci de. (2005) Revisitando o ensino tradicional de língua portuguesa. http://files.professorivo.webnode.pt/200000057-e1423e23bf/Revisitando%20o%20ensino%20tradicional%20de%20L%C3%ADngua%20Portuguesa.pdf

Cristianismo. (1997) A Educação segundo a Filosofia Perene. http://www.cristianismo.org.br/efp-ind.htm

Faitanin, Paulo. (2006) A memória segundo Tomás de Aquino. Aquinate. http://www.aquinate.com.br/wp-content/uploads/2016/11/estudo-faitanin-memoria.pdf

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