O relativismo e a liquidez na sociedade contemporânea do ponto de vista jurídico

UNIV INSPIRE BRASIL 2020

Júlia C. Jordão
UNIV Inspire Br
17 min readOct 7, 2020

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Navegar — Buscar uma educação sólida em uma sociedade líquida

O relativismo e a liquidez na sociedade contemporânea do ponto de vista jurídico

Júlia Cabral Jordão

Luiza Farias de Santana

Daniele Almeida Barbosa

Outubro de 2020

ÍNDICE

  1. Introdução
  2. Objetivo
  3. Justificativa
  4. Metodologia
  5. Desenvolvimento

5.1. Breve histórico da filosofia do direito

5.2. A sociedade líquida de Bauman e o relativismo

Relação com a atualidade do meio jurídico

5.3. Propostas na filosofia do direito diferentes do relativismo

5.4. Bens não passíveis de relativização

6. Conclusão: qual deve ser a formação do jurista na sociedade líquida contemporânea?

  1. INTRODUÇÃO, OBJETIVO, JUSTIFICATIVA, METODOLOGIA

O presente trabalho tem por objetivo analisar como a percepção das pessoas sobre o mundo veio se alterando significativamente. Com a revolução industrial, a globalização e o surgimento das novas tecnologias e o avanço do homem, surgiu um mundo mais dinâmico e fluido, onde a mudança é uma constante que gera consequências positivas e negativas. Diante desse contexto o presente trabalho se propõe a contextualizar a questão do relativismo na era moderna e fazer uma introdução para uma reflexão sobre qual seria o papel do Direito frente essa nova percepção da sociedade, numa busca por minimizar os efeitos negativos do relativismo exacerbado, impondo alguma solidez para que tal relativismo não atinja direitos fundamentais conquistados com o tempo, após tantas guerras e convenções e acordos pelos quais passou a humanidade. Para isso, optou-se por uma método descritivo e uma pesquisa bibliográfica que pudesse entender de uma forma superficial o pensamento filosófico através do tempo, dando uma base geral para a compreensão do crescimento do relativismo nas sociedades mais modernas, para em seguida, a partir da compreensão de mundo sólido e mundo líquido de Bauman e suas características entender como o pensamento jurídico e as leis se encaixam e se manifestam dentro dessa compreensão de mundo, exercendo papel importante no dia a dia da sociedade como um todo e buscando a solução de conflitos.

DESENVOLVIMENTO

5.1. Breve histórico da filosofia do direito

A fim de contextualizar melhor a discussão proposta por este artigo, julgou-se necessária uma breve síntese das linhas mais importantes da filosofia do direito. É importante ressaltar que este resumo tem a única finalidade de localizar melhor o assunto escolhido para o trabalho. Evidentemente este compilado não fornece um conhecimento aprofundado sobre a evolução histórica do direito e suas correntes filosóficas.

A filosofia do direito nasce, na verdade, no campo da filosofia, e não propriamente no do direito. Os gregos não constituíram uma ciência do direito, mas o direito fazia parte da sociedade ática, no dia-a-dia, nas discussões sobre ética e moralidade, como se vê na peça “A Antígona”, de Sófocles, em que se apresenta o embate entre o seguimento da lei civil e a obediência à lei divina. Encontramos na filosofia clássica grega a concepção de justiça, virtude de dar a cada um o que é seu, suum cuique tribuere. Aristóteles teve um papel importante na explicação dessa virtude, elaborando também uma categorização da justiça em comutativa (particular) e distributiva (geral). No livro “Ética a Nicômaco”, ao explicar sobre como a vida humana e cada uma de suas ações estão orientadas para a felicidade, trata também dos três tipos de bens (relativos à alma, ao corpo e os exteriores). Diz “consideramos como mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a alma”.

No direito romano, predecessor do direito ocidental, havia um grande pragmatismo, pois interessava mais resolver os conflitos da sociedade e menos especular respostas a todas as possíveis condutas. Ele foi construído principalmente pelas decisões dos pretores (magistrados romanos eleitos), que, quando consultados acerca de alguma contrariedade entre duas partes, ouviam as queixas dos cidadãos e decidiam qual era mais justificada e a despachava para que o juiz julgasse. Emitiam pareceres (editos), determinando como interpretariam a lei e/ou os editos anteriores. De forma bastante resumida, pode-se dizer que esses pareceres foram a base do direito romano, pois cada novo pretor reforçava ou melhorava os editos dos pretores precedentes e, assim, consolidavam os institutos (ideias como propriedade, posse, obrigações, delitos, entre outros). Não se tratava exatamente de leis como conhecemos atualmente, mas, sim, de obras de juristas da República e do Alto Império Romano, que depois foram compiladas no Digesto de Justiniano (o Corpus Iuris Civilis).

Com o advento do cristianismo, muito do que fora desenvolvido na filosofia clássica foi aproveitado e aperfeiçoado. Por exemplo, progressivamente é superada a noção de vingança perante os delitos alheios, considerando a justiça como necessitada da caridade. O cristianismo também permite que a proteção à pessoa humana tenha um fundamento, que é a dignidade e a igualdade de cada indivíduo enquanto filho de Deus.

Durante a Idade Média, São Tomás de Aquino apresentou grandes contribuições à teologia, à filosofia e especificamente à filosofia do direito. Explicou que as leis civis devem ser o ordenamento da razão para o bem comum, promulgadas por aqueles que devem, e valoriza as virtudes de que já falara Aristóteles (a justiça e a prudência). O critério de avaliação das leis, na concepção aristotélico-tomista, é que sejam expressão da lei moral natural e, portanto, promovam o bem comum. Nesse contexto, a autoridade tem grande importância: a ciência jurídica medieval está baseada na autoridade que analisava como aplicar a lei; subsidiariamente, contava-se com as autoridades coletivas, isso é, considerava-se que o que pensa a maioria deve ser a interpretação mais provável.

A Idade Moderna reúne um grande número de eventos que influem nos rumos da filosofia do direito: o renascimento comercial, a reforma protestante, o período de guerras de religião, as Grandes Navegações, o encontro de novos povos e o fortalecimento das monarquias. No que diz respeito à filosofia, floresce o humanismo, linha filosófica que prezava pela razão livre. Procurava-se pôr a razão humana no centro da filosofia e do direito, retirando tudo que tivesse um aspecto medieval e, portanto, questionando a autoridade. No direito, é chamado de naturalismo, pois trata do retorno ao estado de natureza. Nasce especialmente por conta do questionamento de como se aplicaria o direito perante os nativos das terras colonizadas, dado que promovia-se à época um tratamento discriminatório em massa, julgando não serem sujeitos de direitos como os colonizadores. Francisco Suárez, Francisco de Vitória e Hugo Grotius, considerados os pais do direito internacional, utilizam o direito natural para postular os direitos do homem. Retomam ideias da Idade Clássica, mas acrescentam um fundamento: para o humanismo, o direito natural se encontra dentro do humano, perceptível por meio de sua razão humana. Assim, trata-se de um jusnaturalismo racionalista.

É também no período da Idade Moderna que os iluministas, inspirados pelo nascimento das ciências da natureza, passam a pensar na filosofia política com um viés racionalista. John Locke, René Descartes, David Hume, Montesquieu, Immanuel Kant, entre outros, criam uma ética antropocêntrica, sem necessidade de revelação divina, e fundamentam que há determinados direitos individuais sobre os quais o Estado (absolutista, à época) não poderia intervir. Com a Revolução Francesa, os ideais iluministas fundamentaram a nova organização política, na qual se considerava que devia haver a soberania popular. Já na Idade Contemporânea, gradualmente os Estados passaram por um movimento codificador, isso é, as leis passaram a ser produzidas e organizadas Códigos (um dos mais famosos foi o Código Civil Francês, o Código Napoleônico, de 1804). Nasce, então, uma corrente jusfilosófica chamada positivismo jurídico.

Se nas demais ciências o positivismo procurava determinar um objeto de estudo e uma abordagem científica e experimental para os fenômenos, no direito o objeto de estudo era essencialmente a lei, como uma ferramenta para a promoção da ordem na sociedade. A positivação do direito fez com que se considerasse que todo os direitos e os deveres estão contidos nas normas, de modo a evitar arbitrariedades, por exemplo, das interpretações dos juízes.. Há um profundo ceticismo quanto à moral e ao direito natural, dando-se grande valor à legalidade.

Evidentemente, a positivação trouxe grandes benefícios ao direito, como a estruturação e a organização do ordenamento jurídico, garantindo mais segurança aos cidadãos do que, por exemplo, no modelo absolutista de governo. Houve, porém, prejuízos ao debate filosófico e à esfera política. Por um lado, ao concentrar a discussão dos direitos ao que foi normatizado, passaram a rejeitar de plano a abordagem naturalista. Transformou-se, então, a formação do jurista em uma preparação para o conhecimento das normas, sem tanto enfoque no entendimento dos conceitos e com um caráter técnico. Além disso, no plano fático, houve momentos na História que demonstraram que a lógica positivista não é suficiente, pois se centra de tal maneira na legalidade que acaba por permitir grandes injustiças. Tal foi o caso da ascensão de regimes totalitários a partir da primeira metade do século XX, que tinham fundamentação legal à época, mas cometeram atrocidades.

De forma bastante resumida, podemos dizer que a filosofia do direito contemporânea tem a influência de duas linhas de pensamento principais: o juspositivismo e o jusnaturalismo. O juspositivismo tem como principais autores Hans Kelsen e Herbert Hart. O jusnaturalismo contemporâneo resgata as ideias clássicas de direitos naturais e da justiça como finalidade do direito, e tem como representantes Charles Taylor, MacIntyre e John Finnis.

Esta primeira parte teve a função de apenas contextualizar o debate do relativismo no curso da teoria jurídica e da história da filosofia do direito. Procuraremos tratar mais detidamente do que alguns dos nomes mencionados disseram e que relação têm com a problemática do pensamento relativista no imaginário jurídico moderno.

5.2. A sociedade líquida de Bauman e o relativismo

Zygmunt Bauman foi um filósofo, sociólogo, professor e escritor polonês que ao estudar as interações humanas na modernidade identificou uma forma de encarar o mundo diferente, que associou a liquidez dos fluidos. Bauman coloca a individualização como marca da sociedade moderna, e mostra sua ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que ela confere autonomia aos indivíduos, também gera uma grande insegurança. Tudo isso se reflete no direito e nas relações jurídicas estabelecidas entre as pessoas uma vez que o direito tende manifestar características dos contextos sociais de cada época histórica, e cabe a ele, estabelecer alguma segurança que possa estruturar a sociedade para que ela funcione da forma mais harmoniosa possível, propondo soluções a possíveis conflitos.

Mas por que a comparação com os líquidos? Para o filósofo, “os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem no tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos a mudá-la; assim, para eles o que conta é o tempo , mais do que o espaço que lhes toca ocupar, espaço que afinal, preenchem apenas “por um momento” (BAUMAN, 2003, p. 8).

Segundo Bauman, porém, inicialmente a ideia não seria acabar de uma vez por todas com os sólidos, mas sim limpar o existente para substituí-los por novos sólidos aperfeiçoados que se adequariam melhor e se aproximariam de certa perfeição. Os primeiros sólidos do passado a se derreter, seriam as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que impediam movimentos e restringiam iniciativas, “como dizia Max Weber, libertar a empresa de negócios da densa trama das obrigações éticas”. Para Bauman porém, “A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem defeituosa não está hoje na agenda”, trocaram-se os rumos e acabaram-se derretendo os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas. O imediato, o individualismo exacerbado e o consumo juntamente com a velocidade tecnológica dominaram os novos tempos de maneira a ampliar inseguranças e ansiedades.

Enquanto a modernidade sólida era impregnada com tendências ao totalitarismo, com uma homogeneidade compulsória imposta, a sociedade do século XXI se encontraria em um contínuo e obsessivo processo de modernização insaciável. Ser moderno passou a significar ser incapaz de parar ou de ficar parado, nem sempre por uma busca pela melhora mas por vezes por uma impossibilidade de atingir a satisfação, uma vez que “a consumação está sempre no futuro, e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes”. Nesse mundo tão veloz que temos hoje é o direito que garante o cumprimento dos acordos, a fixação e proteção de direitos, garante alguma solidez às relações humanas.

Através da leitura de Bauman podemos concluir que a sociedade moderna ganhou muito em liberdade ao mesmo tempo em que a segurança tornou-se complexa de ser estabelecida com clareza em um mundo em constante mutação. Diante dessa nova forma de ver e viver o mundo, mais líquida, mais livre porém mais instável, é preciso um judiciário confiável e uma jurisprudência que consolide o entendimento a respeito de casos semelhantes, aliado a uma lei bem escrita e pensada, com um menor número de lacunas possível para que haja certa segurança jurídica e clareza a respeito de quais são as regras vigentes. Algo que traga algum amparo às pessoas, para que a vida comum tenha certa estabilidade e segurança e não seja um caos de guerra e insegurança permanentes como Hobbes acreditava que seria em um chamado primeiro estado de natureza.

O tempo constrói saberes e solidifica tanto coisas importantes quanto coisas prejudiciais a evolução humana. Assim é preciso saber o que proteger e manter, e o que descartar e alterar na busca por uma sociedade mais justa e uma vida social melhor a todo o conjunto de indivíduos que se associam, política, econômica e culturalmente, para sobreviver.

5.3. Propostas na filosofia do direito diferentes do relativismo

Se o relativismo é um fenômeno na sociedade líquida de forma geral, como explicou Bauman, no direito não seria diferente. Resulta da pluralidade de visões existentes no imaginário jurídico, que, em si, é bastante positiva. Estranho seria se se buscasse uma padronização de pensamento em torno de uma questão tão complexa quanto a da criação e da aplicação das leis.

Há diferentes planos de relativização no direito. Diz-se que a resposta padrão do jurista a perguntas do tipo “O que se deve fazer quando X ocorre?” é “Depende”. De fato, sempre é necessário avaliar as circunstâncias e realizar a subsunção, isso é, o processo de identificar o fato, a norma correspondente e fazer a combinação entre os dois. Porém, sabemos que o direito vai muito além desse exercício, e que, mesmo na mera análise de que norma se aplica, não se pode admitir um relativismo absoluto. Dizia Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

“Observa-se, assim, que a Dogmática não é um simples eixo de mediação entre normas e fatos nem se resume no desenvolvimento de técnicas de subsunção do fato à norma, como chegaram a dizer os representantes da Jurisprudência dos Conceitos e da Escola da Exegese. Sua função repousa, outrossim, no controle de consistência de decisões tendo em vista outras decisões; em outras palavras, no controle de consistência da decidibilidade, sendo, então, a partir dela que se torna viável definir as condições do juridicamente possível.”. (FERRAZ JR., 1998, p. 100).

Podemos dizer, então, que (i) o direito aborda questões em que podem existir uma pluralidade de visões e propostas de solução e, simultaneamente, (ii) tem o papel de trazer segurança às relações, de forma justa. Como ambas as ideias parecem ser opostas, com frequência se diz que o direito é essencialmente relativista, deixando de lado o fator (ii), da busca pela justiça.

Há, porém, como formar o pensamento jurídico de modo diverso, e assim propuseram muitos dos filósofos do direito, buscando trazer ao debate ao menos um valor que justificasse uma negação ao ceticismo predominante. Alguns pós-positivistas, como Dworkin e Alexy (dos quais voltaremos a falar adiante), trouxeram ao debate os princípios, isso é, critérios que possam ser “pesados” nos casos difíceis, em que não se sabe bem como aplicar as normas, com vistas a um fim. Há também teóricos modernos que não se remetem diretamente ao direito natural, como John Rawls, que elaborou uma teoria distributiva para o liberalismo igualitário, segundo a qual, em brevíssima síntese, para garantir a igualdade na sociedade o direito deve agir em primeiro lugar garantindo as condições mínimas para aqueles menos favorecidos (KYMLICKA, 2006, pp. 67–68).

As propostas que se mostram mais consistentes para responder à postura relativista estão no direito natural, porque nele se afirma, em suma, que há (i) algo unificador nas visões de mundo de cada indivíduo quanto ao bem e ao mal e (ii) a justiça é a finalidade do direito. Se temos claro que a justiça é o fim da aplicação do direito (ideia que não é compartilhada pelos positivistas de forma geral), justifica-se a valorização de direitos fundamentais a nível internacional, por exemplo, como se fez na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU).

Nas palavras do professor Eduardo Bittar:

“A questão da justiça, quando vista como elemento fundante do ordenamento jurídico, pode ser considerada como algo relacionado com a doação de sentido. Isso porque, desde a Antiguidade, a justiça sempre representou o preenchimento de sentido das práticas do Direito, que acabou por se transformar em um mero proceder técnico, vazio, sem conteúdo preciso, objeto de labor, na Modernidade.”. (BITTAR, 2015, p. 596).

O jusnaturalismo procura retomar as ideias de justiça conforme propostas pelos clássicos: Aristóteles (é o caso de Alasdair MacIntyre, em seu livro “Depois da virtude), Sócrates e São Tomás de Aquino, entre outros. É interessante observar como, na busca pelo “preenchimento de sentido das práticas do Direito”, como dizia Bittar, os jusnaturalistas não negam a possibilidade de cada caso ser julgado de uma forma distinta, mas afirmam a finalidade da aplicação do direito, que é a justiça.

Passemos a analisar em que situações práticas se vê o relativismo da modernidade e quais respostas podemos dar, consolidando, assim, alguns valores inegociáveis e não sujeitos ao ceticismo valorativo do relativismo.

5.4. Bens não passíveis de relativização

Consoante Manoel Gonçalves Ferreira Filho o fundamento dos direito fundamentais configura a razão de sua proeminência em face do direito positivo, de modo que a consolidação de uma concepção material de direitos fundamentais permite calcá-los na salvaguarda à dignidade humana e alicerçá-los no direito natural.

Alexy compreende que são requisitos para que o direito figure entre o rol de direitos fundamentais: dizer respeito a todos os seres humanos, associar-se à dignidade, promover o Direito e deter importância cardeal à vida de cada um.

Assim, o caráter de fundamentalidade permite e estruturação do ordenamento jurídico. A multiplicação irrestrita de novos direitos ditos fundamentais corrobora com a banalização, a desvalorização e a subsequente relativização dos direitos genuinamente fundamentais, ainda de acordo com o Professor Manoel Gonçalves.

O problema da relativização também revela-se suscetível de análise quanto à aplicação dos referidos direitos pelos tribunais constitucionais. Juan Antônio Garcia Amado tece exaustivas críticas à técnica da ponderação, usualmente permeada de um déficit argumentativo em suas sentenças, cujo resultado depende de uma balança misteriosa, em que se pesa as circunstâncias do caso.

O sucesso da decisão depende das motivações exigidas, de modo que os tribunais, valendo-se de ampla discricionariedade e calcados em casuísmos, recorrem ao instrumental da relativização de um direito, em prol da prevalência de outro.

Destarte, à luz do aparente conflito dos direitos fundamentais, revela-se oportuna a discussão acerca de temas como aborto — que se faz permeável ao embate entre direito à vida e à liberdade da mulhers; e a compulsoriedade da doação de sangue ou de órgãos após a morte do indivíduo. Ainda que a Constituição salvaguarde a vida e a saúde, direitos dotados de fundamentalidade, há espaço para argumentação em prol da prevalência das escolhas individuais em relação à destinação do próprio corpo.

Uma crítica pormenorizada do direito fundamental à vida deve ressaltar seu aspecto primordial e preponderante: de acordo com Alexandre de Moraes, “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui um pré-requisito à existência e exercício de todos os demais”. Por conseguinte, sua garantia deve voltar-se à totalidade de indivíduos, indistintamente, valendo-se, para tanto, de todas as “armas da República” cabíveis, nas palavras do Professor Remédio Marques.

A proeminência outorgada pelo ordenamento jurídico brasileiro à inviolabilidade e à universalidade do direito à vida revela-se visível, em primeiro lugar, no artigo 5º da Constituição Federal, que postula: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a à propriedade”. Ademais, o Decreto 678 de 1992, responsável por integrar ao Direito brasileiro o Pacto de São José da Costa Rica com status de norma constitucional, garante, em seu artigo 4º, o direito à vida desde o momento da concepção.

Assim, não restam dúvidas que, uma vez não assegurado o direito à vida, todos os demais hão de perder o sentido de ser. Há que se lembrar, na lição de André Ramos Tavares, que, o direito à vida é embasado em duas vertentes precípuas: a principal diz respeito ao direito de permanecer existente, e a secundária ao direito a um nível de vida adequado.

Prosseguindo à análise do direito à igualdade, verifica-se a previsão aos cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei, vedando distinções entre eles injustificáveis pelos valores da Constituição. O Supremo Tribunal Federal aludiu o objetivo tríplice do pórtico da isonomia, na medida que vincula o legislador, o intérprete (autoridade pública) e o particular.

Na Carta Magna, o princípio da igualdade é situado, exemplificativamente, no inciso VIII do artigo 4º, que dispõe sobre a igualdade racial; no inciso I do artigo 5º, ao abordar a igualdade entre os gêneros; nos incisos VIII e XXXVIII do artigo 5º, ao apresentarem, respectivamente, a igualdade de credo religioso e no tratamento jurisdicional.

Exemplificando algumas complicações entre teoria e atuação prática existentes no mundo contemporâneo, podemos analisar que a vida e a saúde são declaradas como direitos protegidos em nossa sociedade, mas sabe-se que pessoas morrem diariamente por não conseguirem um transplante ou sofrem por não terem sangue compatível, que os ajude no momento de enfermidade, pois a ideia de ser um doador é algo pouco aderido entre grande parte da população, que em suas escolhas individuais e cotidianas durante a vida, acabam por não pensar muito em tal assunto. A miséria, a fome e a exposição de crianças a água sem tratamento, enchentes e violência podem também ser consideradas uma espécie de ataque ao bem jurídico da vida. Algo que ocorre diariamente e são alguns dos grandes problemas apresentados em diversas partes do território nacional, Assim sabemos que educação e direito à saúde física e psicológica deveriam ser direitos protegidos e sólidos mas que na prática dificuldades de elaborar um plano de ação eficiente e outros obstáculos que aparecem acabam fazendo com que sejam relativizados, embora a igualdade jurídica seja prevista pela constituição federal, faltam ações de transformação social que possibilitem uma igualdade de forças, capacitação e condições de vida.

O direito a liberdade é protegido por lei e por lei também recebe limitações, uma vez que aqueles que infringem certas regras recebem como a penalidade a da perda de liberdade através da pena de prisão.

6. Conclusão: qual deve ser a formação do jurista na sociedade líquida contemporânea?

Ao longo do presente trabalho, vimos que a visão relativista na filosofia do direito é resultado de um processo histórico: desde os sofistas na Grécia Antiga, passando pelo abandono da metafísica da Idade Moderna, até a contemporaneidade. Conscientes de como a descrição de Zygmunt Bauman da modernidade líquida se aplica também ao âmbito do direito, analisamos como a insegurança jurídica tem grande influência da relativização dos conceitos.

O direito estabelece a base necessária para que bens jurídicos sejam protegidos e o homem tenha meios de fazê-los valer sem utilização de violência desregrada. Notamos também que o Poder Judiciário tem relativa discricionariedade para analisar caso a caso, para encontrar, em meio às inúmeras situações que a vida apresenta, a solução que seja menos prejudicial e mais justa a cada conflito.

Cabe questionar: daria para a formação do jurista não ser relativista? A questão não é simples, mas, apesar de haver grande influência do relativismo no ambiente jurídico, é importante que a formação retome os valores clássicos, tendo a busca pela justiça (na concepção aristotélica) como finalidade do direito.

De qualquer forma, há uma grande oportunidade de debate no ambiente jurídico presente acerca de quais seriam os melhores modos de reduzir o viés relativista e proporcionar maior segurança aos operadores do direito.

BIBLIOGRAFIA E ICONOGRAFIA

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