Uma formação musical sólida para ajudar a navegar pelas águas turbulentas do mundo moderno

Franciele Pereira da Silva

O que me motivou a escolher este tema foi a ideia de poder compartilhar um pouco do meu trabalho como professora de música junto com a proposta do Univ Inspire. Gosto muito de conversar com meus alunos e fiz o convite para alguns participarem da gravação do vídeo. Foi muito gratificante poder ouvi-los e perceber como a música é importante na vida deles. A aula de música não é somente para aprender a tocar um instrumento, mas também pode ajudar na formação humana, transformando a vida de cada aluno. A música nos inspira e desperta o melhor de nós.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar os benefícios de uma aula de música que contemple não só o aprendizado musical, mas também uma formação humana, que transforme a vida do aluno e que assim ele também possa transformar de forma positiva o ambiente em que está inserido, tendo outro olhar sobre o mundo, conforme apresentado no vídeo “Uma formação musical sólida para ajudar a navegar pelas águas turbulentas do mundo moderno”.

Este propósito de formação musical e humana parte das reflexões sobre a chamada sociedade líquida, conceito apresentado por Zygmunt Bauman. Assim como um fluido escorre e se esvai facilmente, o autor faz uma analogia com situações e relações da modernidade que são consideradas também “líquidas”, pois não têm uma base sólida para se apoiarem e portanto, não resistem ao tempo. Neste sentido, a aula de música pode oferecer ferramentas que tragam valores sólidos para o aluno, e assim, ele possa ter uma vida com mais sentido.

Outro aspecto a ser abordado é uma escuta musical mais atenta, que permita que o aluno perceba os elementos da música e desenvolva uma sensibilidade onde seja possível dialogar com a música.

ABSTRACT

This article aims to present the benefits of a music class that contemplates not only musical learning, but also a human formation, that transforms the student’s life and so that he can also positively transform the environment in which he is inserted , taking another look at the world, as presented in the video “A solid musical formation to help navigate the turbulent waters of the modern world”.

This purpose of musical and human formation starts from reflections on the so-called liquid society, a concept presented by Zygmunt Bauman. Just as a fluid flows and drains easily, the author draws an analogy with situations and relationships of modernity that are also considered “liquid”, as they do not have a solid basis to support themselves and therefore do not resist time. In this sense, the music class can offer tools that bring solid values ​​to the student, and thus, he can have a more meaningful life.

Another aspect to be addressed is a more attentive listening to music, which allows the student to perceive the elements of the music and develop a sensitivity where it is possible to dialogue with the music.

O vazio existencial e a falta de sentido na sociedade líquida

A vida agitada e estressante sufoca o espírito, impede a contemplação. Daí vem a seguinte inquietação: como mudar esta situação em que muitos se encontram? Como mudar esta realidade através da arte musical? Como a aula de música pode ser uma fonte de formação humana sólida?

Um dos problemas que o ser humano enfrenta na chamada sociedade líquida é a extrema valorização do agora. A satisfação deve ser alcançada de maneira imediata e muitas vezes não há valores firmes para se apoiar e não submergir, pois esta satisfação instantânea muitas vezes é seguida de um sentimento de vazio e falta de sentido. Bauman (2001, p. 145) afirma que os compromissos atuais são obstáculos para as oportunidades futuras e que compromissos leves e superficiais acarretam menores prejuízos. Assim, parece que estes compromissos que não criam laços firmes e duradouros são mais vantajosos, porém é possível perceber que o ser humano necessita de relacionamentos sólidos, ele tem que se apoiar em algo que resiste ao tempo. Sobre a sensação de vazio, Frankl (2013, p. 72) faz a seguinte explanação:

O vazio existencial é um fenômeno muito difundido no século XX. Isto é compreensível; pode ser atribuído a uma dupla perda sofrida pelo ser humano desde que se tornou um ser verdadeiramente humano. No início da história, o homem foi perdendo alguns dos instintos

animais básicos que regulam o comportamento do animal e asseguram sua existência. Tal segurança, assim como o paraíso, está cerrada ao ser humano para todo o sempre. Ele precisa fazer opções. Acresce-se ainda que o ser humano sofreu mais outra perda em seu desenvolvimento mais recente. As tradições, que serviam de apoio para seu comportamento, atualmente vêm diminuindo com grande rapidez. Nenhum instinto lhe diz

o que deve fazer e não há tradição que lhe diga o que ele deveria fazer; às vezes ele não sabe sequer o que deseja fazer. Em vez disso, ele deseja fazer o que os outros fazem (conformismo), ou ele faz o que outras pessoas querem que ele faça (totalitarismo). (FRANKL, 2013, p. 72)

A falta de sentido e as relações líquidas estão atingindo também as crianças. Cada vez mais dependentes do mundo digital, elas correm o risco de perder a sensibilidade para coisas simples, como contemplar a natureza e criar suas próprias histórias. Neste sentido, as novas tecnologias e redes sociais representam um grande perigo para a infância, desconectando-as do mundo real. A música pode auxiliar como antídoto contra essa dependência das tecnologias. Neste sentido, Graeml (2004) afirma que o uso excessivo da internet tem impacto em vários aspectos do comportamento humano.

A partir destas colocações, pode-se dizer que a música, aquela que carrega tradições e valores, pode ajudar o ouvinte ou o intérprete a encontrar sentido, a ter noção do motivo da sua existência e de seu papel no mundo.

A aula de música na formação humana

Cada pessoa que chega para aula é um ser especial; tem sonhos, problemas, situações familiares diversas. Muitas vezes o momento da aula é o momento de se desligar das preocupações da vida, e então surge a oportunidade de deixar ser tocado pela música.

Todo mundo tem música dentro de si. As batidas do coração, os passos do caminhar ou correr, em um pulso constante e ritmado, é a música do ser. Santo Agostinho, em seu tratado Sobre Música afirma que as ações corriqueiras do ser humano remetem a uma ordem e harmonia divinas, marcadas em cada pessoa.

[…]que é que sentimos, em todas as nossas ações refletidas, através de nossos órgãos, que coloca por assim dizer um freio nos movimentos desiguais e, por meio de um comando seguro, busca conduzi-los num ritmo estável? É um certo princípio de juízo, não bem qual, que manifesta a ação de Deus na criatura: pois é preciso fazer remontar até Ele toda proporção e toda harmonia. (AGOSTINHO, Santo, 2019, p. 212)

A música é uma forma de comunicação. Por meio dela podemos expressar aquilo que não pode ser dito somente por palavras. Ela tem um poder imenso sobre o ser humano, tendo efeitos sobre suas emoções. Todos os povos têm uma identidade sonora, com suas músicas e danças típicas, que exprimem o caráter e a forma de viver dos habitantes. A boa música atrai para o bem, une as pessoas e afasta do mal. Neste sentido, Nghiem (2018, p. 58) afirma que:

Redescobre-se que a música é uma linguagem, porque ela permite a transmissão das informações de maneira complexa, modificando o humor e as emoções. Ela pode ser educativa, subversiva ou terapêutica, quando se pensava habitualmente que ela só podia exercer o papel de um divertimento humano. (NGHIEM, 2018, p. 58)

E para aqueles que estudam música, os benefícios que podem absorver dela são ainda maiores. Muitos estudos comprovam os benefícios do aprendizado e da prática musical, que abrange várias áreas do ser humano, contribuindo para seu desenvolvimento intelectual, motor e emocional. Castro (2007, p. 65) afirma que: “A música não mais é vista, desta forma, como um fim em si mesma, mas sim como um meio de potenciação de outros aspectos que saem do âmbito estritamente musical. São os efeitos conhecidos como benefícios extra-musicais da aula de Música.” Estes benefícios abrangem desenvolvimento da criatividade, melhora da coordenação motora, capacidade de concentração, disciplina, aumento da autoestima, motivação.

O estudante de música também desenvolve a capacidade de escutar e sentir a música com os dois hemisférios do cérebro. O lobo cerebral direito está mais ligado à emoção e ao inconsciente. Já o lobo cerebral esquerdo está vinculado à razão.

Quando um leigo ouve música, seu lobo direito segue o contorno geral da melodia e pode conceber uma certa emoção estética. Mas se o indivíduo, por meio da educação, se torna músico ou um conhecedor de música, aí então ele poderá ouvir também com seu lobo esquerdo, pois a música terá se tornado para ele uma linguagem (solfejo). (NGHIEM, 2018, p. 38)

O professor de música pode ser instrumento da arte que transforma e embeleza a vida. Através de seu contato com os alunos, ele pode trazer a música que muitas vezes parece distante, para perto de cada um, de forma que ela será uma nova amiga, uma companheira nos momentos de dificuldade. E este contato mais profundo com a música não deixa o indivíduo afastado de sua realidade; não é uma fuga, mas, ao contrário, alimento para seguir a jornada da vida com um olhar esperançoso. Neste sentido, Bento XVI (2007, p. 164) afirma que “a arte autêntica, bem como a prece, não nos torna estrangeiros à realidade de cada dia, mas, ao contrário nos volta a ela para “irrigá-la” e fazê-la germinar, para que ela possa oferecer frutos de bem e de paz.”

O ser humano necessita sair de si e ir ao encontro do outro, buscando relações sólidas numa postura de serviço ao próximo. “O ser humano não é constituído para a autocontemplação ou para a auto-observação, mas para se entregar a algo ou alguém por meio da transcendência de si mesmo, para valores existenciais que estão em potência.” (AQUINO, DA CRUZ, apud FRANKL, 1995). Faz parte do nosso ser buscar uma vida que tenha sentido. A boa arte pode contribuir nesse encontro com o sentido da vida, na missão que cada um carrega aqui neste mundo. “… no gênero da arte do belo, por exemplo, o fim último é fazer propender ao bem e à verdade.” (NOUGUÉ, 2018, p. 318).

No vídeo apresentado sobre este tema, os alunos foram entrevistados e tiveram a oportunidade de compartilhar suas experiências na música, bem como de apresentar a importância do aprendizado musical, como eles sentem a música, a necessidade da beleza, o que a música desperta neles e como a música os ajuda a refletir e querer fazer o bem. Desta forma, o vídeo aconteceu como um diálogo durante a aula. Foi muito gratificante poder ouvir os alunos e perceber como eles se sentem tocados pela música e como ela tem um impacto positivo em várias áreas da vida de cada um.

As aulas de música são ferramentas para levar boa arte para os alunos, de forma que eles possam transmiti-la a outras pessoas que passarem por eles e assim, construam um mundo mais belo por meio da música. O fazer musical também leva à prática das virtudes, pois demanda atenção, dedicação, que são valores que devem ser levados para a vida. Portanto, a formação musical sólida acontece na aula através da comunicação e relação entre professor e aluno, na partilha de reflexões e leituras que complementam o repertório musical e na conexão entre música e uma vida de valores. O professor é apenas um instrumento da Arte e tem o privilégio de poder transmitir a Arte verdadeira para aqueles que estão sob sua responsabilidade. Assim, o professor vive por algo que é muito maior do que ele, por algo que vale a pena a vida.

Referências:

AGOSTINHO, Santo. Sobre a música/ Santo Agostinho; tradução de Felipe Lesage — Campinas, SP. Ecclesiae, 2019.

AQUINO, Thiago Antonio Avellar; DA CRUZ, Josilene Silva. A questão da transcendência dos valores e do sentido da vida na análise existencial de Viktor Frankl. Estudos de Religião, v. 34, n. 2, p. 351–367.

BAUMAN, Zygmunt, 1925-B341m. Modernidade líquida / Zygmunt Bauman; tradução, Plínio Dentzien. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001

CASTRO, Pablo Y., et al. Os benefícios psicológicos da aula de música: um estudo científico com adolescentes de 5as. e 6as. séries do ensino público brasileiro. 2007.

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Editora Sinodal, 2013.

GRAEML, K. S.; VOLPI, J. H. e GRAEML, A. R. “O impacto do uso (excessivo) da Internet no comportamento social das pessoas “. Revista Psicologia Corporal (José Henrique Volpi e Sandra Mara Volpi, Orgs.). Vol. 5, 2004.

NGHIEM, Dr. Minh Dung. Música, inteligência e personalidade: o comportamento do homem em função da manipulação cerebral/ Dr. Minh Dung Nghiem; tradução de Felipe Lesage. Campinas, SP. Vide Editorial, 2018.

NOUGUÉ, Carlos. Da arte do belo. Formosa (GO): Edições Santo Tomás. 2018.