Vivências da pandemia e a felicidade

Isabela Castro Ávila
UNIV Inspire Br
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9 min readOct 7, 2020

Resumo

Em uma sociedade líquida, em que tudo parece ser dinâmico e mutável, faz-se necessária a busca por uma educação e formação sólidas. Nesse sentido, as virtudes demonstram ser qualidades constituintes de um caráter sólido e equilibrado, movido pela busca pelo bem, como um valor imutável. Além disso, o estudo acerca do que são as virtudes, está presente desde a Antiguidade, em que os filósofos se perguntavam sobre as características que marcariam a excelência da natureza humana. Diversos autores verificaram que as virtudes levam à felicidade, e o ser humano, à medida que chega mais próximo de sua excelência, através do exercício das virtudes, maior o seu sentimento de felicidade. O objetivo deste estudo é correlacionar a vivência e o cultivo de virtudes, com a felicidade, dentro do contexto da pandemia de 2020 do coronavírus. Foi feita uma pesquisa quantitativa correlacional, através de um questionário que continha perguntas sobre virtudes e felicidade, e verificou-se que na maioria dos casos elas variam proporcionalmente.

Palavras chave: virtudes, felicidade, coronavírus, pandemia.

Felicidade e Virtudes

Histórico

O termo virtude derivou-se do latim, virtute, utilizado no mundo grego, e encontrado principalmente nas obras de Platão, remetendo-se ao contexto de excelência humana, ou de homem justo. Platão passou por três fases no que consiste seu conhecimento sobre as virtudes; na primeira o filósofo compreende que a virtude está na razão, e se dá pelo conhecimento das próprias virtudes; a segunda fase caracteriza-se pela síntese que harmoniza a razão e paixão, levando às virtudes; a terceira e última fase se trata do ensino destas, o filósofo aponta que não se pode ensiná-las, por estarem ligadas às alma, e por a razão humana não compreendê-la (Stadler, 2008).

Posterior a Platão, seu discípulo Aristóteles discorreu sobre a gênese das virtudes, concordando com seu mestre sobre a ligação das virtudes com o conhecimento, a razão. Mas o conceito de virtude do discípulo se dá pela repetição de atos virtuosos, que provém da vontade do homem de gerar esses atos, e consiste no meio termo entre o vício do excesso e o vício da falta (Stadler, 2008).

Em meados do século XIII São Tomás de Aquino definiu o conceito de virtude, e atualmente é uma das noções mais utilizadas:

“[…] é um hábito pelo qual se age bem. Ora, de duas maneiras um hábito se orienta para o ato bom: primeiramente, enquanto, por esse hábito, se adquire a prática dos atos bons […]. Em segundo lugar, um hábito não só dá a prática de agir, mas ainda faz com que se use retamente essa prática, como a justiça não só nos faz dispostos às ações justas, mas também nos faz agir justamente,” (Tomás de Aquino, ST, Iª IIªe, q.56, a.3. c.)

São Tomás de Aquino descreve quatro virtudes morais, prudência, justiça, temperança e fortaleza (Tomás de Aquino, ST. Iª IIªe, v.IV, Q. 61, a. 2.).

São Tomás corrobora com a ideia de Aristóteles quanto ao encontro da felicidade através das virtudes. De acordo com o primeiro, “ felicidade é o prêmio da virtude” (Tomás de Aquino, ST, IªIIªe, Q.26, a. 1), para o filósofo a felicidade seria atingida na medida em que o homem realizasse virtuosamente o que lhe é natural, pensar sobre o elemento da razão, exercitar-se nas virtudes.

Sociedade Líquida e Virtudes Sólidas

Em uma sociedade líquida- termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para relacionar a liquidez enquanto fluidez, falta de estrutura, como uma das principais características dos tempos modernos- a busca por virtudes se mostra dificultada. Nesse contexto, a modernidade tem como algumas de suas principais características, o pragmatismo e o imediatismo evidenciado tanto pelo modo de vida das pessoas, marcado pelo consumismo e a velocidade de informações e conexões advindas da tecnologia, quanto nas relações interpessoais, em que os laços são formados quase sem nenhum esforço, e com a mesma facilidade são desfeitos. Somado a isso, a busca por satisfazer prazeres imediatos e obter o que se deseja da maneira mais fácil e rápida possível, demonstra um verdadeiro horror pelo esforço contínuo e árduo, e por qualquer coisa, ou pessoa, que não satisfaça esse desejo. “Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento de insegurança (sem jamais saciar a sede de segurança e certeza) , não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma coisa, ou pessoa, que não tenha óbvia relação para a busca da satisfação, e menos ainda em relação a alguma coisa ou pessoa complicada ou relutante em trazer a satisfação que se busca” (Bauman,2001).

Nesse sentido, a busca pela conquista de virtudes se mostra prejudicada, justamente por ser uma expressão da razão, e não dos desejos, podendo somente ser alcançada através do esforço e de diversas repetições. Sendo assim, a virtude não pode ser alcançada de maneira imediata, sendo também necessária a negação da vontade imediata para obtê-la. Dessa forma, as virtudes — por tornarem o ser humano mais livre em suas ações — o tornariam também, mais feliz. Segundo Aristóteles (322 a.C.), a felicidade estaria na virtude, na justa medida, ou seja, no equilíbrio entre a falta e o excesso.

Para Frankl (1990), a felicidade é fruto da busca, encontro e realização de um sentido para a própria vida. Frankl (1990) compara a felicidade ao riso: da mesma forma que o riso precisa de um motivo para acontecer genuinamente, a felicidade é consequência de uma ação que teria outro objetivo, não a busca direta pela felicidade. Além disso, este objetivo deve superar o próprio indivíduo, desse modo, uma pessoa não se realiza apenas satisfazendo suas necessidades e desejos individuais, mas, buscando transcender suas atitudes, ampliar o olhar para além de si. Sendo assim, as virtudes se fazem necessárias para que se viva uma vida mais feliz.

No contexto de uma sociedade líquida, na qual os desafios são maiores para se chegar a uma formação sólida — a qual exige constância e empenho -, pois é marcada pelo imediatismo, fuga de esforços continuados e pela busca de prazeres imediatos, é provável que se torne mais distante a realização humana. Por isso, em meio à fluidez do mundo moderno, é de grande importância que haja uma incessante busca pelas virtudes, para que cada um tenha firmeza e solidez para lidar com as constantes transformações do universo.

Pandemia do Coronavírus

Uma dessas grandes transformações que se tem vivido hodiernamente é a pandemia iniciada na China e espalhada pelo mundo. Em março, o vírus que causa a COVID-19 chegou ao Brasil. Em praticamente todos os Estados foi decretada a quarentena, comércios foram obrigados a interromper atividades presenciais, os hábitos e costumes da maioria dos brasileiros mudaram, aulas e trabalho precisaram ser adaptados a um sistema remoto, houve uma grande crise no mercado de trabalho, foram incontáveis as mudanças.

A saúde psíquica de enorme parte da população foi afetada, tanto negativa, quanto positivamente. O medo, a insegurança, a solidão e afins prejudicaram uma significativa quantidade de pessoas. Por outro lado, houve quem aproveitasse este período para se desenvolver de outras formas. Com uma maior disponibilidade de tempo, estando mais com suas famílias e em suas casas, muitos começaram novos projetos e passaram a cuidar melhor de si mesmos e também dos que com eles convivem.

Objetivo

O objetivo deste estudo é correlacionar a vivência e o cultivo de virtudes, com a felicidade, dentro do contexto da pandemia de 2020 do coronavírus.

Justificativa

Considerando o enorme impacto da pandemia do coronavírus na saúde física e mental da população em geral, é relevante buscar as características que constituem um caráter sólido, o qual permite que o indivíduo se mantenha estável, mesmo com as constantes transformações do meio. O presente estudo pretende contribuir para a vivência das pessoas dentro do contexto da pandemia, considerando que grande parte da população está em estado de quarentena, buscou-se trazer maneiras de se alcançar a boa convivência familiar e em suas demais relações, podendo assim, auxiliar para que as pessoas se tornem mais felizes.

São poucos os estudos que abordam o tema da relação entre a felicidade e a prática das virtudes nesse contexto específico; dessa forma se percebe a importância dessa pesquisa.

Metodologia

A fim de analisarmos a relação da vivência de virtudes com a felicidade, utilizamos o método quantitativo correlacional, o qual nos permitiu analisar estatisticamente, a partir das respostas coletadas na pesquisa, a correlação de situações que demonstravam virtudes, com o estado de felicidade que o participante considerava sentir.

O material utilizado na pesquisa foi um questionário formulado na plataforma Google Forms, e divulgado através de mídias sociais. O questionário continha 22 perguntas em escala Likert , sendo que 18 (1–5) eram sobre situações que podiam ser aplicadas ao contexto da quarentena, as quais demonstravam a posse ou a falta de virtudes, baseadas na Suma Teológica de São Tomás de Aquino e no livro “A conquista das virtudes” do autor Francisco Faus, e 4 questões sobre felicidade na mesma escala (1–7), retiradas da escala de felicidade subjetiva de Lyubomirsky (1999). O participante deveria responder a escala mais próxima à característica ou pensamento, que mais o descrevia diante daquela situação, de acordo com as suas experiências anteriores.

Foi preservado o anonimato, e os participantes não possuíam critérios de seleção por parte das pesquisadoras, sendo incluídas pessoas de ambos os sexos e de diversas faixas etárias, níveis de escolaridade e ocupações profissionais.

Por fim, a ferramenta utilizada para a análise de dados, a partir das respostas do formulário, foi o Planilhas da Google.

Resultados e discussão

Neste estudo 168 pessoas responderam ao questionário, sendo que 25,9% das respostas (3696 itens respondidos no total) escolhidas eram a opção mais positiva, e 5,1% a opção mais negativa.

O desvio padrão foi de 1,12 e a variação 1,26.

A partir dos resultados coletados, podemos observar que os participantes com atos mais virtuosos, se consideravam de fato, pessoas mais felizes. Deste modo, os resultados corroboram com nossa hipótese de que a vivência das virtudes, ou ao menos a busca por alcançá-las, tornam as pessoas mais felizes, ao comparar-se com pessoas que não buscam vivê-las.

Como as escalas estavam entre intervalos diferentes (1–5 e 1–7) foi necessário criar um intervalo de respostas que estariam de acordo com a hipótese inicial do estudo (as virtudes e felicidade variam proporcionalmente). Foi acordado uma variação de 3 pontos entre os resultados (o número é elevado pela diferença de escalas), e criou-se o seguinte intervalo 0 ≤ V — F ≥ -3 (sendo V virtudes e F felicidade). Se a média das respostas estivessem dentro desse intervalo a resposta corroboraria com a hipótese. 80,4% dos participantes estavam dentro desse intervalo, ou seja, as médias de virtudes e felicidade variam proporcionalmente (com uma variação de no máximo 3).

Dessa maneira, as virtudes ao tornarem o ser humano mais livre através da capacidade de escolha pelo bem, formam assim, um caráter sólido marcado por um conjunto de hábitos bons. Esses hábitos, alimentados por constância e equilíbrio — que segundo Aristóteles, é o fator que marca a vivência da virtude — geram felicidade, justamente por ser a escolha do bem, não só próprio, mas também dos outros. Nesse sentido, uma sociedade líquida, marcada pela busca incessante de satisfação de desejos imediatos, estaria mais distante da felicidade devido à falta de liberdade de escolher pelo bem, muitas vezes somente alcançado através do esforço continuado.

No entanto, dentre as limitações deste estudo, se encontra principalmente a dependência da autoavaliação dos participantes, necessária para responder às perguntas do questionário, a qual muitas vezes pode ser distorcida ou, insincera. Nesse sentido, não foi possível avaliar como o participante agiria de fato no contexto das situações colocadas nas perguntas, sendo avaliado somente o que ele imaginou que faria naquelas situações, ou o que já havia feito anteriormente.

Outra falha possível da pesquisa foram as escalas em intervalos diferentes, o que dificultou a correlação entre as variáveis. Em um próximo estudo as escalas poderiam estar em intervalos iguais.

Bibliografia

Aristóteles. (322 a.C.). Ética a Nicômaco, em: Caeiro, A. C. (2009), São Paulo: Atlas Editora.

Bauman, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar

De Aquino, T., & Martorell, J. (2003). Suma teológica. São Paulo: Loyola.

Faus, Francisco (2017). A conquista das virtudes. São Paulo: Cultor de livros

Frankl, V. E. (1990). Em Busca de Sentido, São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes.

Lyubomirsky, S., & Lepper, H. (1999). Uma medida de felicidade subjetiva: confiabilidade preliminar e validação de construto . Pesquisa de Indicadores Sociais, 46, 137–155. A publicação original está disponível em www.springerlink.com.

Staedler, T. (2008). Um ensaio sobre as virtudes: do bem supremo a personificação. Revista Vernáculo, n. 21 e 22.

Autoras

Isabela Castro Ávila, Luísa de Oliveira Machado e Madalena Braga.

Orientadora

Carla Romeu Sant Anna

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