A missão de Eric Lidell

Ouro nas Olimpíadas de Paris 1924, a história de fé do corredor escocês ficou eternizada num clássico do cinema britânico

Flavio Samuel
Universidade do Esporte
5 min readJul 27, 2024

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Eric Lidell representado no filme Carruagem de fogo (Foto:Allstar/WarnerBros)

Cinéfilo ou não, todo mundo conhece essa cena. Atletas britânicos correndo nas areias de uma praia escocesa. Ao fundo a música do grego Vangelis toca e faz o espectador sentir o espírito olímpico. Assim surge “Charriots of Fire”, lendário filme ganhador de quatro Oscars em 1981.

David Puttnam, produtor britânico-irlandês, nem esperava que a película de baixo orçamento, gravada em três meses, fosse fazer parte dos 100 maiores filmes britânicos de todos os tempos. Ele só tinha uma história: A jornada de Eric Liddel. Corredor escocês que, pela fé, recusou correr a prova mais nobre do atletismo nas Olimpíadas de Paris 1924.

Um século depois, os Jogos voltaram à cidade luz, e graças ao filme, as memórias daquela Olimpíada seguem vivas através do tempo.

Cenas de Carrugaem de Fogo (reprodução:Allstar/WarnerBros)

Filho de cristãos escoceses da London Mission Socity, Eric Henry Lidell nasceu em janeiro de 1902, enquanto os pais serviam na cidade de Tietsin, (hoje conhecida como Tiajin) na costa nordeste da China Continental. O trabalho missionário, também foi a principal carreira de Eric, mas antes ele foi uma lenda do esporte.

O Reverendo James Dunlop Lidell e a missionária Mary Lindell mandaram os filhos mais velhos, Bob e Eric, para estudarem na Grã-Bretanha em 1908. Até 1920, os irmãos concluíram os estudos na Eltham School, escola para filhos de missionários, no sul de Londres.

Foi lá que Eric começou a mostrar as habilidades esportivas, participando do time de Cricktet e de Rugby Union da escola. Com a volta da família da China para a Escócia, Lidell entrou na Universidade de Edimburgo e logo ganhou destaque no time de Rugby, a ponto de fazer parte da seleção nacional, chegando a disputar sete jogos do Five Nations com a camisa da Escócia em 1922.

Eric Lidell nas Olímpidas de Paris 1924 (Foto: A.R Coster/Hulton Archive)

Destaque nos campos pela velocidade, foi nas pistas de atletismo de onde vieram as principais conquistas de Eric Lidell. O “homem mais rápido da Escócia”, era assim que os orgulhosos jornais se referiam ao corredor. Ao disputar a competição Amateur Athletics Association de 1923, Eric provou seu talento frente aos principais nomes britânicos. O escocês venceu os 220 metros e só não ganhou, como quebrou o recorde nacional dos 100 metros rasos, com um tempo de 9.7 segundos. Era ouro certo em Paris.

No entanto, surgia a questão que colocou a fé de Lidell em cheque. Para ele, o domingo era sagrado, portanto, nada de competir no dia do Senhor. Acontece que, diferente do que traz a obra cinematográfica de Puttnam, Lidell soube bem antes da realização das qualificatórias dos 100m, em Paris, que a decisão seria disputada no domingo. Eric então deixou claro que não ia competir na prova, e de uma hora para outa a narrativa mudou. De herói a traidor. Mas ele não havia desistido da missão olímpica.

Esforço de Lidell durante a corrida dos 400m (Foto: George Rinhart)

Sobrou para Eric competir nas provas de 200 e 400 metros. Sem o mesmo prestígio da principal prova do atletismo, mas com dificuldades similares, na primeira corrida, o escocês levou o bronze para a Grã-Bretanha. Estava de bom tamanho, Lidell não voltaria para casa de mãos vazias. Mas o massagista da equipe britânica tinha um recado.

Diz o bom livro: Aquele que me honra, Eu honrarei

Lidell em Posição de largada

O lembrete dos céus chegava na hora certa para Eric. Prestes a largar nos 400 metros, ele já não vislumbrava outra medalha, corria mal, mas nos últimos metros, veio o sprint da vitória. Quem é esse? Se perguntavam os adversários ao serem passados para trás pelo britânico. Era Eric Lidell, o filho da Escócia. O homem mais rápido da Ilha era agora o mais rápido da Europa. Ouro e recorde mundial quebrado, dessa vez na disputa dos 400 metros em Paris.

Lidell voltou para casa para ser festejado e acabar os estudos em Edimburgo. Mas ele sabia, a corrida da vida era em outra pista, uma que leva para os céus. Formado, voltou ao mundo das missões, retornou para China em 1925 e de lá nunca mais voltaria. Em Tiajin, casou-se, teve duas filhas e seguiu firme na caminhada do evangelho.

Lidell sendo recebedo coomo herói na Universidade de Edimburgo (Foto:Alpha Historica / Alamy)

Com a China invadida pelo Japão, o país deixou de ser um lugar seguro, principalmente para os aliados, com o desenrolar da Segunda Guerra. Em 1941, o governo britânico avisou. Não dava mais para viver ali. A esposa grávida e a primeira filha rumaram para o Canadá. Já Lidell foi irredutível. Não ia deixar o trabalho que cultivou ali.

Campo de Internamento Weixian (Foto: Eric Lidell Archive)

Dois anos mais tarde, foi levado ao Campo de Internamento Weixian, local administrado pelos japoneses internarem os civis aliados do norte da China. Lá, Eric continuou o trabalho e os estudos bíblicos, mesmo longe da família e com a saúde debilitada.

A corrida em vida de Eric Lidell chegou ao fim no dia 21 de fevereiro de 1945, apenas cinco meses antes do fim da Primeira Guerra, devido a complicações de um tumor cerebral.

A carreira aqui na terra já findou, mas nem a força do tempo é capaz de apagar a mensagem carregada por Lidell:

“Foi uma experiência maravilhosa competir nos Jogos Olímpicos e trazer para casa uma medalha de ouro. Mas desde que eu era um jovem rapaz, eu tinha meus olhos em um prêmio diferente. Veja, cada um de nós está em uma corrida maior do que qualquer uma que eu tenha corrido em Paris, e essa corrida termina quando Deus distribui as medalhas.”

— Eric Lidell (1902–1945)

Lidell chegando ao fim da prova dos 400m (foto:Autor desconhecido)

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