Das telas do cinema ao ringue na Cidade do México

A jornada de um jovem determinado, inspirado por um ídolo, que superou desafios e se consagrou como uma lenda do boxe mundial com a medalha de bronze em 1968

Diogo Bertolin
Universidade do Esporte
5 min readJul 10, 2024

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O boxe teve seu início no Brasil no século XX, mais especificamente em 1913, na cidade de São Paulo. A regulamentação dos pugilistas no país começou em 1920, pelas comissões municipais de boxe do Rio de Janeiro, São Paulo e Santos.

Em 6 de maio de 1948, nascia em São Paulo um menino chamado Servílio Sebastião de Oliveira, que chegaria a uma seleta prateleira: a de medalhista olímpico. Mas esse caminho não foi nada fácil para o paulistano, nascido em uma família humilde. Hoje, é fácil o acesso ao esporte com a internet e as inúmeras academias de luta. Porém, há tantos anos, como o boxe chegou ao coração de Servílio?

Imagem: GE

Aos 11 anos, levado pelo irmão em uma matinê na sala de cinema, a mágica do esporte aconteceu.

“Não era como hoje, que a gente sabe de tudo ao vivo, assistindo televisão ou acessando a internet. Naquele tempo, a informação demorava a chegar e a gente sabia das notícias com atraso, às vezes depois de uma semana ou 15 dias. No dia em que fui ao cinema, foi exibida uma luta do Éder Jofre contra o Danny Kid e, ali, fiquei apaixonado pelo boxe.”

Depois daquele filme, Éder Jofre se tornou uma grande referência não só para Servílio, mas também para os irmãos, que começaram a treinar boxe motivados pela conquista do primeiro título mundial do brasileiro. O menino Servílio observava os irmãos nos treinos, certamente já se imaginando calçando as luvas no ringue.

“Eu ficava sempre de olho na rotina dos meus irmãos. Quando eles iam para o trabalho ou para a escola, deixavam as luvas de boxe em casa e eu não perdia tempo para usá-las nos ‘treinos’ com meus amigos.”

O sonho começou a se tornar realidade com o início dos treinos na Caracu Boxe Clube, que por coincidência da vida era localizado na sobreloja de um cinema, na rua Aurora, em São Paulo. Seria um sinal de sucesso na carreira do garoto ou só coincidência?

A vida no esporte de alto rendimento requer muitos sacrifícios e, principalmente, gastos, que dificultavam o caminho de Servílio. O técnico Morais foi o grande responsável pelo desenvolvimento do garoto no boxe, mas a perda de patrocínio da Caracu Boxe fez com que ele procurasse outra academia no centro de São Paulo para manter o sonho vivo.

Seu novo destino foi a Academia Flamingo, que era ainda mais distante de sua casa, e infelizmente Servílio não tinha dinheiro para as conduções. Mas o futuro reservava tantas coisas para ele que os seus próprios técnicos o ajudavam a se manter no boxe.

“Minha família era muito humilde, meu pai era um simples pedreiro e minha mãe era dona de casa. Naquela época, não havia Lei de Incentivo, Bolsa Atleta, nada disso. Era difícil viver do esporte sem apoio. Existiam os clubes e as academias.”

A mudança de academia trouxe a Servílio seu primeiro grande desafio e oportunidade: a Forja dos Campeões, uma competição para boxeadores amadores em São Paulo. Ele venceu um atleta da Pirelli, uma grande academia paulistana, chamando a atenção do técnico Antônio Ângelo Carollo, que levou o garoto para treinar em Santo André.

Na Pirelli, a carreira de Servílio começou a decolar. Em 1967, com 19 anos, ele deu início à sua carreira internacional disputando os Jogos Pan-Americanos em Winnipeg. A competição era difícil para o menino paulista, mas no fim o resultado pouco importava; afinal, chegar até aquele momento já era uma vitória depois de tantas dificuldades.

“Eu era um menino! A Vila Pan-americana, a estrutura esportiva e de alimentação, os atletas de outros países… tudo isso ficou gravado na minha cabeça para sempre. Quando vi os atletas cubanos do boxe jogando basquete como treino recreativo, fiquei espantado, porque no Brasil ninguém fazia aquilo. A gente só treinava boxe. E naquela época, o Brasil não tinha tradição de participação em torneios internacionais, não havia dinheiro para isso. Eu não tinha possibilidade alguma de subir ao pódio.”

Apesar da derrota no Pan, as glórias não demorariam muito para chegar. O Brasil disputou o Campeonato Latino-Americano de Boxe e Servílio se sagrou campeão em 1968, no Chile, seu primeiro título internacional. Depois dessa conquista, a expectativa para os Jogos Olímpicos que se aproximavam era cada vez maior, e a delegação brasileira havia decidido que quem obtivesse bons resultados no Chile faria parte da equipe que seria formada por Servílio e mais três pugilistas. Mas não foi bem assim que aconteceu…

O Comitê Olímpico Internacional alegou falta de recursos para garantir a presença dos brasileiros em território mexicano. “Foi quando eu, Kaled Cury, Antônio Carollo, Newton Campos e o próprio Éder Jofre fomos ao DEFE (Departamento de Educação Física e Esportes do Estado de São Paulo) falar com Sylvio de Magalhães Padilha, então presidente do Comitê Olímpico do Brasil, e ficou resolvido que apenas dois lutadores iriam aos Jogos: eu e Expedito Alencar.”

Mesmo com pouca experiência, Servílio estreou nos Jogos Olímpicos na Cidade do México em 1968.

“Eu não tinha feito nem 30 lutas. Minha experiência internacional estava limitada a duas viagens: ao Canadá e ao Chile. Quando entrei para a primeira luta, deu um frio na barriga. Isso é sempre um sinal de que você está vivo e consciente da responsabilidade que tem ali.”

Estreou com vitória sobre o turco Engin Yadigar. Na semifinal, teria que passar pelo mexicano Ricardo Delgado, mas acabou derrotado, se despedindo do ouro. Porém, o sonho de medalhar seguia vivo e se realizou com a conquista da medalha de bronze.

Imagem: Revista Placar

“O pódio olímpico foi uma emoção muito grande. Por muito pouco, em função da falta de verba, nós não participamos daqueles Jogos. Chegar no México e subir ao pódio, tendo no peito uma medalha, das três que o país alcançou naquela edição, foi inesquecível.”

Após a conquista do bronze, Servílio se profissionalizou e realizou algumas lutas, mas teve que parar a carreira de forma inesperada. Em uma luta no ginásio do Ibirapuera, ele sofreu uma cabeçada involuntária do norte-americano Tony Moreno, que provocou um deslocamento de retina no olho direito de Servílio, o obrigando a pendurar as luvas mais cedo.

Como amador, conquistou 30 vitórias em 35 lutas. Como profissional, foram 20 vitórias em 20 combates, uma carreira irretocável que teve sequência fora dos ringues como auxiliar técnico de Antonio Carollo na Pirelli.

Servílio construiu os alicerces do boxe olímpico no Brasil, abrindo caminho para as conquistas de hoje. Afinal, o seu bronze conquistado na Cidade do México em 1968 foi a única conquista do boxe olímpico brasileiro por 44 anos.

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