Futebol-Arte: Representação Canarinha ou Construção Social?

A paixão entre quatro linhas e sua influência na sociedade

Joao Pedro Barbalho
Universidade do Esporte
4 min readSep 24, 2023

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Desde pequeno ouço falar que o estilo brasileiro de jogar futebol se difere dos demais em diversos motivos. Drible, improviso, ginga, malemolência são características que se espera quando um jogador canarinho veste as chuteiras e encara um adversário frente a frente, seja ele qual seja.

Em um país de Pelé, Ronaldinho, Garrincha, Neymar e Rivaldo, a alcunha de “País do Futebol-Arte” muitas vezes se valida por lapsos individuais “geniais”. Mas será que sempre foi dessa forma?

“Para que uma identidade nacional fosse gerada, era necessário um esporte que tivesse participantes de todas as camadas sociais. O futebol era esse esporte” Ricardo Pinto dos Santos

Tirando coelho da cartola

Proponho um desafio. Entre em qualquer ferramenta de pesquisa, escreva “Futebol-Arte”, e certamente encontrará uma imagem predominantemente azul, amarela e verde. Se Clifford Geerz explica a cultura como “conjunto de textos”, podemos caracterizar o futebol quase como o “titulo” do Brasil, e pensando por esse viés, o drible estaria em primeiro no sumário.

Utilizo como exemplo o último titulo mundial brasileiro, conquistado em 2002. Muitas vezes, a “perseguição turca” no folclórico Denílson representa mais a conquista do que o próprio gol marcado por Ronaldo contra a Alemanha.

Outro exemplo disso é a figura saudosa de Garrincha, que foi o único jogador da história a ser campeão, artilheiro, líder em assistências e eleito melhor jogador de uma Copa do Mundo, mas por ser uma figura caricata dentro e fora de campo, as vezes é mais lembrado por seus dribles e por ser referência do “malandro brasileiro” do que por seus feitos.

Muitas vezes, o protagonismo individual supera o mérito coletivo, e no Brasil, país do “jeitinho brasileiro”, tirar coelho de cartola vale mais do que o criar desde filhote.

Denílson x Turquia — Copa do Mundo de 2002

Desde sempre foi assim?

Não. O Brasil não “nasceu” sendo o país do futebol, nem sendo berço de um estilo de jogo único. Em meados dos anos 1930, o presidente Getúlio Vargas começou um processo de valorização nacional em diversos âmbitos sociais.

Lembra da frase escrita por Ricardo Pinto Santos de que o futebol atinge desde as crianças mais ricas, com chuteiras da moda e campos perfeitos, até as mais pobres, que tomam duras diariamente depois de chegar em casa com as roupas sujas de lama após a tradicional “pelada” no campo de barro?

Pois bem… Vargas explorou perfeitamente esse esporte de sete letras que transforma vinte e duas pessoas correndo atrás de uma bola em paixão inexplicável. Com a difusão de jornais e transmissões de rádio, o esporte inglês — que em breve se tornaria mais brasileiro que nunca — começou a estampar capas, e o sentimento de pertencimento e representatividade atrelado a seleção brasileira cresceu exponencialmente.

Celebração do Dia do Trabalhador em São Januário

Memórias esquecidas ou seletividade de discurso?

Peço licença a Antônio Jorge Soares para utilizar como base suas pesquisas que analisaram os discursos midiáticos relacionados a seleção brasileira, campeã do copa de 70, ao longo dos anos. Para quem não sabe, uma breve explanação. No ano de 1970, o Brasil venceu a Copa do Mundo disputada no México, com um time que muitos consideram ser a maior, melhor e mais qualificada seleção de todos os tempos.

Ao longo de seus estudos, Antônio não esquece em nenhum momento a inegável qualidade técnica brasileira, que inclusive foi destacada na época por rivais históricos do Brasil, como Argentina e Uruguai, mas aponta um elemento que foi esquecido no imaginário popular devido a valorização do talento e do improviso: a intensa preparação física realizada para a disputa da Copa.

Logo o Brasil, país do samba e da caipirinha, das belas praias e do jeito leve de viver, ser reconhecido como símbolo de preparação? A imprensa não permitiria. A cultura brasileira pautada na criatividade como fator determinante do sucesso também não.

Será que esquecemos mesmo alguns detalhes que nos levam ao lugar mais alto do pódio ou valorizamos o que nos convém e nos parece mais simples de fazer? A copa de 70 uniu o melhor dos dois mundos. Talento e esforço. Mas apenas um dos fatores é lembrado até os dias atuais.

Seleção Brasileira de 1970

Dando drible na concorrência

É obvio que não dá pra se negar a eficiência do jogo brasileiro. Este que vos escreve cresceu vendo o fantástico Santos de Neymar e Ganso, o fim de carreira majestoso de Ronaldinho Gaúcho no Galo e a elegância de Kaká, último jogador canarinho a vencer o prêmio de melhor do mundo.

Para o torcedor que viveu o auge do futebol brasileiro, boas lembranças. Para o que não viveu, saudosismo em algumas partes, esperança em outras. Mas não dá para esquecer que o futebol que ouvimos falar é, assim como histórias de folclore, contada por outras pessoas, e pode nos ludibriar como um bom drible.

Saibamos separar preparo de demérito, memória de seletividade e sucesso de talento. A ginga brasileira foi, é e sempre será nossa. Que isso não nos desvirtue do caminho.

Gabriel Bouys/AFP

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