Grael: gerações de ouro

Dos mares do Rio de Janeiro aos pódios olímpicos, a saga da família Grael é um legado de tradição, superação e glórias na vela brasileira

Flavio Samuel
Universidade do Esporte
8 min readJul 24, 2024

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Foto: divulgação

Uma paixão pelo mar. Uma família movida pelos ventos. No Brasil, a história da vela se confunde com o sobrenome Grael, e o motivo disso são as nove medalhas olímpicas conquistadas pela família, no esporte que mais rendeu pódios ao país na história dos Jogos.

No mundo olímpico, o nome mais conhecido é o de Torben Grael. Com cinco medalhas na vela, ele, ao lado de Robert Scheidt, é o maior medalhista da história do Brasil. Mas em Paris, é Martine — caçula de Torben — que, junto de Kahena Kunze, pode realizar um feito inédito na família e na vela brasileira.

Presben ao lado dos netos Lars e Torbe.
Foto: Acervo Família Grael

A história dos Grael começa bem longe daqui, e com outro sobrenome. Mais precisamente, no lado dinamarquês do Estreito de Kattegat, em Frederiksberg. Filho de um oficial da cavalaria com uma dona de casa, nascia em 1898 Preben Schmidt, aquele que viria a ser um dos pioneiros da vela no Brasil.

Distante da costa brasileira, e perto do que era o barril de pólvora na Europa no início do século XX, Preben chegou a se alistar no batalhão acadêmico dinamarquês na Primeira Grande Guerra. Vale destacar que, apesar de ser vizinha da Alemanha, a Dinamarca não participou efetivamente do conflito, no entanto, a preocupação era grande dentro das águas territoriais do país nórdico.

Por permanecer neutra até o fim da Primeira Guerra, a economia deu um grande salto na parte norte da península da Jutlândia. E Preben também foi beneficiado. Cresceu dentro do batalhão, se tornou chefe de pelotão e também deu importantes passos na carreira acadêmica. Ele já era formado em Filosofia pela Universidade de Copenhague, mas foi em 1922 que Preben Schmidt também pegou o diploma de engenheiro civil na Escola Politécnica de Copenhague.

Na graduação, Schmidt teve aulas com o físico dinamarquês Niels Bohr, que no mesmo ano conquistou o Prêmio Nobel de Física pelas pesquisas sobre a estrutura dos átomos e as radiações. Depois de formado, Preben chegou a cumprir serviço militar para a família real de Cristiano X, da Dinamarca. Mas logo em 1924, Schmidt aceitaria um cargo que mudaria para sempre sua trajetória. Engenheiro formado, foi contratado pela empresa dinamarquesa Christiani-Nielsen e enviado para terras brasileiras.

Axel e Erik, os gêmeos do mar.
Foto: SCIRA divulgação

No Rio de Janeiro, Preben Schmidt encontrou duas paixões. A primeira foi a alemã Helene Jelinski, com quem casou-se em 1931. A outra foi a vela. O fascínio por barcos encontrou o lugar certo no Rio Yacht Club de Niterói, e ali começava a história mais vencedora do esporte náutico brasileiro.

Um ano mais tarde, Preben comprou o veleiro Aileen, o barco da medalha de prata de Werner Hensen nas Olimpíadas de Estocolmo 1912. A embarcação chegou ao Brasil em 1922 e se tornou o alicerce para as futuras gerações dos Schmidt.

Você deve estar se perguntando: É agora que vem o sobrenome Grael, correto? Errado. A primeira filha do casal Schmidt foi pioneira na vela brasileira. Margarete disputava contra os homens, teve resultados expressivos e incomodava os irmãos em competições. Axel e Erik Schmidt nasceram em 1939, quatro anos mais tarde que a irmã, e foram a primeira geração dourada da família. Conquistaram o ouro no Pan de Chicago em 59 e beliscaram a prata nos Jogos de São Paulo em 1963.

Os gêmeos do mar foram os primeiros brasileiros campeões mundiais na vela. Axel e Erik ganharam o tricampeonato consecutivo na categoria Snipe no Mundial de 1961, 1963 e 1965, fato que nunca voltaria a ser repetido na história do esporte. Mas em Olimpíadas não tiveram o resultado esperado.

Nos Jogos Olímpicos da Cidade do México em 1968 e Munique 1972, ficaram respectivamente no sétimo e sexto lugar. Com o fim da carreira na vela olímpica, sem medalhas nos jogos, a dupla passou a se dedicar ao ensino da prática para a futura geração da família.

E é aqui que entra Ingrid Schmidt, ou melhor, Ingrid Schmidt Grael. Filha mais nova de Preben e Helene, Ingrid era de uma beleza estonteante no Rio de Janeiro. No início da década de 50, a jovem atleta foi eleita a Miss Jogos da Primavera, Miss Niterói, Miss Rio de Janeiro e Vice-Miss Brasil no ano de 1955.

A inteligência, beleza e atleticidade de Ingrid despertavam os olhares de todos. E chamou a atenção do Coronel Dickson Melges Grael, chefe de gabinete do então Presidente Café Filho. Com o Coronel Grael, Ingrid teve três filhos: Axel, Torben e Lars. E com os últimos dois, a hegemonia da, agora sim, família Grael chegou ao ápice.

Foto:divulgação

A tradição náutica da família da mãe falava por si só. Já o pai dos meninos era paraquedista, conhecia dos ventos como ninguém. Com o auxílio dos tios campeões mundiais, Torben e Lars tinham o caminho trilhado para o estrelato.

Aos sete anos, Torben, o filho do meio, ganhou o primeiro barco, e ao lado do irmão Lars, três anos mais novo, começaram a tomar gosto pelo oceano. E é claro, tudo isso sob os olhares cuidadosos dos tios tricampeões mundiais.

Torben e Lars começaram a competir juntos em torneios de base, e logo chamaram a atenção do mundo da vela fora do Brasil. Em 1983, no Mundial do Porto, os irmãos competiram na categoria Star e garantiram a medalha de ouro.

A jornada olímpica separou a carreira dos dois. Na Olimpíada de Los Angeles 1984, os irmãos Grael repetiram o feito da família e foram a segunda geração a competir nos Jogos, 12 anos após seus tios Axel e Erik.

Na classe Soling, com um veleiro emprestado pelos ingleses, Torben Grael, ao lado de Daniel Adler e Ronaldo Senfft, levou a prata da categoria. Essa era a primeira medalha da família Grael. Lars também estreou em Jogos Olímpicos na costa oeste americana, mas terminou na sétima colocação na classe Tornado.

A primeira medalha do caçula só viria quatro anos mais tarde em Seul. Nas águas de Busan, na Coreia do Sul, Lars levou a medalha de bronze na Tornado e o irmão foi na mesma toada, garantindo o terceiro lugar no pódio da categoria Star. Não perca as contas, a família real da vela brasileira tinha na altura três medalhas olímpicas. Mas faltava uma, o clã Grael ainda não tinha a de ouro.

Quatro anos depois, em Barcelona, o ciclo não foi tão focado na vela olímpica. Torben, mesmo com duas medalhas, tinha que pagar os gastos do ciclo com os patrocínios recebidos da vela oceânica. No verão de 1992, o duas vezes medalhista olímpico chegou em cima da hora na Catalunha. O barco não era ideal para as condições climáticas e o resultado foi a única Olimpíada sem medalha para a família Grael.

Quatro anos mais tarde, em Atlanta 1996, os irmãos atingiram o auge. De volta aos Estados Unidos após 12 anos da estreia olímpica, a família Grael conquistou mais duas medalhas. Sendo a de Torben, o primeiro ouro do clã, ao vencer a classe Star na companhia de Marcelo Ferreira. E como sempre, na classe Tornado, Lars beliscou o pódio, com a medalha de prata. Foram momentos de glória para a família Grael.

Antes de toda tempestade vem a bonança. O clima tranquilo, medalhas no peito, mais um ciclo se aproximando, tudo parecia perfeito. Mas o mar revolto estava prestes a sacudir de vez a vida da família. Lars estava se preparando para a quinta Olimpíada, a chance do primeiro ouro seria em Sydney 2000. Mas quis o destino que Lars nunca mais chegasse a competir nos Jogos.

Dois anos antes, em Vitória, no Espírito Santo, o jovem Grael estava pronto para ganhar mais uma regata em águas brasileiras, até que uma lancha invadiu o local de prova e se chocou contra a embarcação de Lars. No choque, ele acabou tendo a perna decepada pela hélice do barco e foi socorrido de imediato para o hospital.

O caçula sobreviveu, mas teria que aprender uma nova vida. Aos 34 anos, no auge da carreira, Lars pensou em nunca mais competir, mas com a ajuda de Torben, o companheiro de todas as horas, Lars Grael voltou aos poucos — foi campeão mundial em 2015, mas não chegou a disputar a Rio 2016. Inspirado na superação do irmão mais novo, Torben ainda competiu em dois jogos.

Em Sydney, levou a medalha de prata e o desfecho com chave de ouro veio quatro anos mais tarde no berço olímpico. Nas águas da Grécia, Torben Grael ganhou a regata de ouro e se tornou bicampeão olímpico. Era essa a sexta e última medalha olímpica do filho do meio.

Foto: acervo família Grael

O caçula, de novo na vela olímpica, chegou a Pequim em 2008, mas não subiu ao pódio. Lars encerrou a carreira olímpica com uma prata e um bronze. E é claro, torcendo pelos herdeiros da medalha de ouro de Atenas.

Axel Grael, filho do meio de Lars, chegou a participar do Pan de Toronto em 2015. A geração mais nova ainda é uma promessa, mas Martine e Kahena já são realidade. Desde os Jogos do Rio, as duas subiram ao topo do pódio na Marina da Glória, a terceira medalha de ouro da família. A quinta da dinastia.

O ciclo de Tóquio colocou de vez a dupla entre as melhores velejadoras do planeta. Na classe 49erFX, Martine Grael e Kahena Kunze conquistaram a medalha de ouro e são a maior esperança da família. A dupla compete junta desde 2009, com Martine ganhando a medalha de ouro de Axel e Kahena como companheira desde os Jogos do Rio.

E por fim, Torben encerrou a carreira olímpica em 2004, mas ainda competiu na vela oceânica e foi um dos destaques da Volvo Ocean Race. Com Martine em Paris, a tradição da família Grael ainda é esperança de medalha. Na classe 49erFX, Martine Grael e Kahena Kunze buscam a terceira medalha de ouro consecutiva.

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