O dia da vergonha brasileira

Há 36 anos, a Taça Jules Rimet, o símbolo máximo da supremacia brasileira no futebol, foi roubada de dentro da sede da CBF e marcou para sempre o dia 19 de dezembro como o dia da vergonha brasileira

Pedro Henrique Brandão
Universidade do Esporte
7 min readDec 20, 2018

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Réplica da Taça Jules Rimet. (Foto: Reprodução / History).

Em 1930, quando Jules Rimet tomou a iniciativa de realizar a primeira Copa do Mundo, sua ideia era que a seleção que conquistasse três vezes consecutivas o Mundial teria o direito de adquirir a Taça em definitivo. Com o passar do tempo, a FIFA percebeu que provavelmente nenhuma seleção conseguisse o feito do tricampeonato e definiu que o primeiro país a conquistar a Copa três vezes, mesmo que não consecutivamente, levaria a Taça para casa.

Jules Rimet, presidente da FIFA. (Foto: FIFA).

Com a morte de Jules Rimet, em 1956, a Taça passou a ser chamada de Jules Rimet em homenagem ao ex-presidente da FIFA responsável pela criação da Copa do Mundo. Apenas 2 anos depois, em 1958, o Brasil conquistou seu primeiro título em Mundiais. Em 1962, o bicampeonato e o direito de sonhar em ser o maior vencedor de Copas e, consequentemente, conquistar definitivamente a Taça do Mundo.

David Corbett e cão Pickles sendo premiados por encontrarem a Taça, em 1966. (Foto: Autor Desconhecido).

Meses antes da Copa do Mundo de 1966, a FIFA permitiu que a Taça Jules Rimet fosse exposta em Londres, como forma de promoção da Copa, que seria disputada na Inglaterra. Porém em 20 de março daquele ano, a Taça foi roubada. O episódio foi uma vergonha para os ingleses já que a exposição acontecia a poucos metros da sede da Scotland Yard, a famosa e eficaz polícia inglesa. Contudo não foram os policiais ingleses que encontraram a Taça e sim um cão chamado Pickles, no dia 27 de março, enquanto seu dono, David Corbett, passeava em uma praça de Londres.

Carlos Alberto Torres, o Capita, ergue a Jules Rimet definitivamente. (Foto: FIFA).

Com o susto do sumiço da Taça em Londres, sumiu também o futebol e chance do Brasil ser tricampeão na Terra da Rainha. O sonho do Tri reapareceu em 1970, no México, com a seleção das seleções, o Brasil conquistou seu terceiro título de Copa do Mundo. No dia 21 de junho de 1970, no estádio Azteca, verdadeiros craques envergando a Amarelinha golearam a forte seleção italiana por 4 a 1 e ganharam o direito de trazer na bagagem a Taça Jules Rimet em definitivo.

Pelé admira a Taça após a primeira conquista, em 1958. (Foto: FIFA / Reprodução). Bellini, Vicente Feola e Gilmar seguram a Jules Rimet após o Brasil vencer a Suécia, em 1958. (Foto: FIFA / Reprodução).

Assim que chegou no Brasil — passados os festejos e as poses, até o ditador Garrastazu Médici caprichou nas poses com a Taça na mão — a Jules Rimet foi descansar na sede da CBF, que ficava na Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro. Permaneceu no prédio durante 13 anos, em uma sala do nono andar até a noite de 19 de dezembro de 1983, quando homens encapuzados invadiram o prédio, renderam o único vigia do local e arrombaram a estrutura de madeira que suportava o vidro a prova de balas que guardava a Taça.

Por ocasião do roubo em Londres, a FIFA encomendou uma réplica da taça que era apresentada em eventos públicos. Esta réplica foi entregue a CBF junto com a Jules Rimet original. Porém na sede da Confederação Brasileira de Futebol a original estava exposta e a réplica estava bem guardada em um cofre de aço. Um “descuido” que custou a perda de um dos maiores símbolos do futebol mundial. Junto com a Taça estavam expostos outros troféus que foram roubados. Os ladrões levaram o Jarrito de Ouro, lembrança da conquista do torneio de futebol do Pan-Americano de 1976, a Taça Independência, conquistada em 1972 no sesquicentenário da Independência do Brasil; e a Taça Equitativa, que lembrava o vice-campeonato na Copa do Mundo de 1950.

Base da Taça. foi deixada pelos ladrões. (Foto: Arquivo Estadão).

Na manhã do dia 20 de dezembro, a notícia era o assunto mais comentado nas ruas brasileiras. Mesmo sem a instantaneidade da internet, o roubo da Jules Rimet envergonhou a população que rapidamente clamou por justiça e esclarecimentos das forças policiais. Por sua vez, os policiais que investigaram o caso constataram que “eram precárias as condições de segurança da vitrine que expunha os troféus”. Como incompetência é a especialidade da CBF, o presidente da Confederação, Giuliete Coutinho, preferiu empurrar a culpa de volta para a polícia:

“O serviço de segurança que eles oferecem é praticamente mínimo, e agora vêm nos criticar. A taça Jules Rimet estava onde sempre esteve desde que foi conquistada pelo Brasil em 1970”.

A Folha de São Paulo do dia 21 de dezembro de 1983, apresentou várias manchetes do assunto. Em uma, Pelé apontava o culpado pelo roubo: o governo. Para o Rei do futebol a falta de segurança pública foi o fator que possibilitou o roubo. Bellini e Mauro, os dois primeiros capitães brasileiros em conquistas de Copas, apelaram para o patriotismo do ladrões e pediam que a Taça fosse devolvida.

Naquela Folha, havia um anúncio de recompensa que prometia 5 milhões de cruzeiros para quem encontrasse a Taça. Também estampava a primeira página, o histórico contando sobre o roubo em Londres.

Mas a manchete com mais espaço e na parte de cima da página resumia bem o que aquele roubo representava:

“Com o brasileiro não há quem possa: Ganhou 3 títulos mundiais, sambou com a bola no pé e ontem passou a mão na Jules Rimet, que a esta altura deve estar derretida”.

Os rumores sobre a taça ter sido derretida eram antigos, desde o roubo em Londres havia a ameaça do ladrão inglês que derreteria o troféu se não fosse pago o resgate de 15 milhões de libras pedido na época. No caso brasileiro, o derretimento se daria pela “genial” ideia de extrair o material precioso usado para fabricar a relíquia.

Quando foi confeccionada em 1930, a Taça recebeu 1,8 quilo de ouro que revestiam o corpo do troféu talhado em prata, além disso havia na base, que foi deixada para trás, uma pedra semipreciosa e as placas de ouro onde eram gravados os nomes e anos dos campeões.

A tese do derretimento nunca foi comprovada totalmente, porém, em 1988, a Justiça condenou a nove anos de prisão Sérgio Pereira Ayres (conhecido como Sérgio Peralta), José Luiz Vieira da Silva (Luiz Bigode) e Francisco José Rocha Rivera (Chico Barbudo), acusados de terem roubado a Jules Rimet. Já Juan Carlos Hernandes pegou a pena de três anos de prisão por receptação.

Peralta foi preso em 1994 e ganhou liberdade condicional quatro anos depois. Chico Barbudo morreu assassinado em 1989. Luiz Bigode foi capturado em 1995 e ganhou liberdade condicional após três anos. Já Hernandes foi preso em 1998, mas por tráfico de drogas, e não por causa do roubo na CBF.

Em 1984, a Eastman Kodak Co., de Rochester, Nova York, recebeu autorização da FIFA para recriar o troféu. A nova Taça Jules Rimet foi feita com 1,8 quilo de ouro puro e novamente montada em lápis azul. Oito placas de ouro foram gravados com os vencedores de 1930–1970.

É imprescindível destacar que a Taça Jules Rimet foi o maior símbolo do futebol mundial, sobreviveu intacta a Segunda Guerra Mundial, segundo relatos o vice-presidente da FIFA, Ottorino Barassi escondia o troféu dentro de uma caixa de sapatos em baixo de sua cama durante a grande guerra. Foi recuperada depois de um roubo em Londres e de quebra rendeu uma deliciosa história com um cãozinho herói.

A Taça Jules Rimet foi o maior símbolo do Brasil que deu certo, aquele dos gramados com jogadores talentosos, verdadeiros artistas da bola,o único pentacampeão do mundo, também conseguiu ser o maior símbolo do Brasil que dá errado cotidianamente, o Brasil dos cartolas inescrupulosos, do jogo de empurra, do malandro no pior sentido da palavra, daqueles que nos roubam as palavras e os sentidos, mas que não poderão nunca nos tirar o sentimento de querer ser o país do futuro, pena que esse futuro não chegue e 35 anos depois o brasileiro ainda passe tanta vergonha e que a esperança esteja tão distante como o olhar do garoto vidrado na Taça do Mundo.

Taça Jules Rimet original exposta em São Paulo, em julho de 1970. (Foto: FolhaPress/Reprodução).

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Pedro Henrique Brandão
Universidade do Esporte

Não sou especialista, escrevo do que é especial pra mim. Futebol além das quatro linhas e um pitaco disso ou daquilo. Minha alucinação é suportar o dia a dia.