O protagonismo social do Rayo Vallecano
Pequeno no cenário internacional e gigante em história, posicionamento e coragem
Nas atuais circunstâncias do futebol destacam-se as enormes quantias financeiras depositadas nas mais variadas equipes. Nessa realidade, na qual o dinheiro está cada vez mais atrelado ao desenvolvimento esportivo, a ascensão de novas potências futebolísticas se torna cada vez mais possível.
Os absurdos valores desembolsados no mercado da bola são capazes de comprar muita coisa, mas existe uma bastante especial que permanece intocável ao imediatismo: a história. Principalmente quando a mesma possui algo que ultrapassa o que estritamente se dá dentro de campo.
O Rayo Vallecano é, seguramente, uma daquelas equipes que possuem grandeza pelos seus princípios e pela tradição. Se a ausência dos holofotes europeus e das grandes projeções não colocam o nome da equipe na história, seus valores refletidos fora de campo o fazem.
Vallecas e o Rayo
Vallecas é histórica, especialmente no que toca à dignidade humana. Vista como um “bairro obrero” devido à representatividade da classe trabalhadora, foi importante para a história social de Madrid e da Espanha.
Mas o posicionamento vallecano de esquerda remonta séculos atrás. Por mais que seja difícil especificar algumas datas, ainda existem muitas questões esclarecidas no que cabe a essa associação.
Segundo o Vallecas Todo Cultura, organização não governamental que contribui para o desenvolvimento sócio-cultural do bairro, na última década do século XIX, socialistas teriam se organizado em Puente de Vallecas (um dos distritos do local) e, por volta de 1890, a primeira Agrupación Socialista teria surgido.
Esses socialistas eram, em grande parte, trabalhadores (alfaiates, sapateiros, carroceiros…) que eram explorados. Como não havia qualquer lei que impedisse a exploração, ficavam a mercê do patrão, prestando serviços em jornadas abusivas e sem qualquer garantia social.
Até então, estava tudo sem forma, muito abstrato para atingir as mudanças que buscavam. A posterior organização das atividades gerou a “Casa del Pueblo”, um espaço em que haveria abrigo, apoio, fomento à cultura e avanço educacional. A iniciativa buscava que “a transformação social pudesse ser governada pelos seus verdadeiros protagonistas”.
O sentimento de pertencimento e o compromisso com as causas sociais se tornaram ainda mais fortes com o passar do tempo e a identificação nunca desapareceu. No futebol não foi diferente. Tais noções guiam e estão presentes na conduta do Rayo Vallecano. Não é possível capturar a essência do time sem entender onde ele está inserido.
“Essa não é somente a história de um time de futebol. Essa história obrigatoriamente envolve o legado do bairro no qual o time existe e do qual se tornou parte”, escreve Robbie Dunne em “Working class heroes”.
O próprio aparecimento do Rayo Vallecano é simples e sem muitos recursos, envolvendo uma série de esforços dos envolvidos.
O nascimento do Rayo e os primeiros passos
De origem humilde, surgiu devido aos esforços de um grupo de jovens na faixa de 12 a 16 anos, com o objetivo de fundar uma instituição no bairro. O empreendimento encontrou o auxílio de Prudencia Priego e de seu filho, Julían Huerta, que era guarda civil na época.
Prudencia, então, permitiu que sua residência fosse o ponto de encontro para as reuniões sociais e burocráticas. A localização era favorável: ao lado de sua casa se encontrava o campo de futebol Las Erillas, lugar onde o clube viria a ter suas primeiras conquistas e fracassos.
A fundação da Agrupación Deportiva El Rayo ocorreu em 24 de maio de 1924, após encontro realizado no mesmo dia pelos membros de até então. Além disso, outros conteúdos, como as exigências para o recebimento de sócios e o fato de que cada jogador compraria seu respectivo uniforme e também chuteira, foram estabelecidos visando o avanço do projeto.
Originalmente, o uniforme da equipe era camisa e bermuda branca, com meias pretas. Um dos atributos que marca a identidade visual do clube, a faixa vermelha que atravessa a camisa, foi adquirido de maneira um pouco inusitada.
Nos anos 1940, o Atlético de Madrid realizou, juntamente ao Rayo, um “Acordo de Ajuda Mútua” (Acuerdo de Ayuda Mutua).
A colaboração determinava que o Atlético emprestaria jogadores ao Rayo, desde que fosse inserido algo vermelho no uniforme como maneira de homenageá-los. Isso evitava, também, que o traje fosse totalmente branco, como o do maior rival atleticano, o Real Madrid.
O compromisso, aliado ao fato de que a liderança do Rayo da época admirava o River Plate, originou a faixa vermelha. O acréscimo foi tão bem recebido que, a partir desse ponto, os torcedores do Rayo Vallecano seriam conhecidos como “franjirrojos” (faixas vermelhas).
O estádio particular para esses apoiadores, por sua vez, só viria a ser construído após muitos anos.
O trajeto do estádio de Vallecas
“El Campo de Fútbol de Vallecas” (ou, simplesmente, estádio de Vallecas) foi introduzido em 1976, inicialmente denominado de “Nuevo Estadio de Vallecas”.
Em 1992, a família Ruiz-Mateos comprou o clube e, dois anos depois (1994), Teresa Rivero se tornou a primeira mulher presidente de um time da primeira divisão.
Em 1999, foi estabelecido que o nome do estádio passaria a ser “Campo de Fútbol de Vallecas, Teresa Rivero”, referido comumente como “Teresa Rivero”. Quando a mesma deixou o cargo, em 2011, um “novo” nome foi, mais uma vez, escolhido: “Campo de Fútbol de Vallecas”, que perdura até hoje.
Ainda que permaneça simplório aos padrões atuais de um clube de ponta, o estádio possui um longo itinerário e detém grande significado tanto para o bairro quanto para a torcida.
Os Bukaneros
Os Bukaneros são um coletivo rayista que surgiu em 1992. A organização é fundamentada pela luta em prol de causas sociais e no combate ao preconceito, colocando-se totalmente contra o racismo, fascismo e movimentos de ódio.
“Nós, Vallecanos, nos sentimos orgulhosos da equipe e da história de um clube que marcou um antes e um depois na vida da sociedade madrilenha e espanhola”, escreveu Juan Mancha, em “Los Orígenes del Rayo Vallecano”.
A sensação descrita por Mancha cabe muito bem aos Bukaneros, que se orgulham dos valores e do compromisso com a classe trabalhadora, sem dar exagerada importância aos fins comerciais.
“O Rayo Vallecano é o símbolo e orgulho da classe trabalhadora que a cada domingo vai ao […] estádio de Vallecas para ver o futebol puro e escapar da realidade cotidiana. Não queremos um Rayo para fins publicitários ou propagandísticos”, descrevem eles em seu site oficial.
Em favor do combate à opressão, os Bukaneros realizam, anualmente, um movimento intitulado “Jornada contra el racismo”. Também participaram do “Dia contra el Racismo en los Estadios de fútbol” e organizaram as “Jornada contra la ley del deporte y la represión”.
Fato é que os Bukaneros são uma das grandes torcidas organizadas, que fizeram e continuam fazendo história. Seus posicionamentos, junto ao apoio incondicional ao clube, dialogam com tópicos relevantes e propagam a voz do enfrentamento aos abusos sociais.
Situação atual do clube
Ao longo de sua história, batalhou constantemente pela permanência na primeira divisão do campeonato espanhol, caindo e subindo diversas vezes.
A instabilidade dentro das quatro linhas, ainda presente, faz com que o time seja um candidato distante ao estrelato no cenário nacional e mesmo local. Seus conterrâneos, Real Madrid e Atlético de Madrid, dominam em quesito de publicidade, proporções e desempenho. O Rayo, porém, possui uma torcida histórica e, em muitos sentidos, inigualável.
O modesto Estádio de Vallecas, com capacidade para 14.500 pessoas, se torna, a cada jogo, o lar de torcedores extremamente apaixonados e fiéis.
A frequência é louvável. Durante a temporada de 2022/23, segundo dados do transfermarket, o Rayo teve uma média de público de 12.525, ou seja, 86% de sua capacidade total. O comparecimento assíduo demonstra a fidelidade de uma torcida que apoia o time sem se importar com o momento.
Com 27 rodadas do campeonato espanhol na atual temporada, se encontra na 16ª posição, com cinco vitórias, 11 empates e 11 derrotas. Por enquanto, se mantém na primeira divisão.
A briga com a tabela, também, não é a única que se trava no momento. A dúvida sobre a seguimento do clube em Vallecas paira sobre a administração e torcedores, criando preocupações para todos.
A possível mudança de estádio
Recentemente, Isabel Ayuso, presidente da comunidade de Madrid, declarou que seria insustentável a permanência em Vallecas. A justificativa tem base no crescimento. Segundo ela, “o clube precisa de um estádio adaptado à sua realidade atual”.
Em entrevista concedida ao Onda Madrid, o presidente do clube, Raul Martin Presa, mencionou que o estádio, apesar de atrativo, já está obsoleto há vários anos.
Ele também destaca que, como no momento o Rayo se encontra com relativa saúde financeira, é necessário procurar evoluir:
“Agora possuímos certo nível de solvência e é a hora de buscar crescimento, e isso passa por uma série de questões que, no momento, o estádio não nos proporciona”.
Mas o progresso aspirado por Presa não contraria a identidade tão singular do clube. Em entrevista ao Marca, ressalta seu compromisso em relação ao Rayo ser a última equipe de bairro da Espanha: “Assim é, e assim deve continuar. Mantendo a essência, mas não renunciando ao que o futebol se tornou e ao que a modernidade hoje em dia necessita”.
Maria Caso, do PSOE (Partido Socialista Obrero Español), durante plenária ocorrida no Ayuntamiento de Madrid (instituição encarregada do governo de Madrid), repreendeu o próprio Ayuntamiento, citando uma “falta de respeito” com o Rayo.
A saúde financeira, pontuada por Ayuso e Presa como defesa para a “modernização” ou alteração, para ela, não justifica a mudança. “Insustentável não é. O clube está em condições econômicas saudáveis e poderia investir”, falou Caso.
Por sua parte, Sonia Cea, a conselheira de Esportes, diz que o Ayuntamiento quer ajudar que o Rayo prossiga em Vallecas.
Ainda que o destino seja incerto, a esperança dos torcedores e apoiadores é, com certeza, a continuidade. O forte posicionamento contra a saída é coerente, pois o estádio é uma parte importante não só para o clube, mas também para Vallecas.