Tragédia da Piedade
A passional história do dia em que Euclides da Cunha atirou em um aspirante do exército campeão de tiro, aleijou Dinorah, zagueiro do Botafogo e morreu baleado pelo amante de sua esposa.
“Jogador do Botafogo é baleado por Euclides da Cunha”.
A manchete é absurda, mas real.
Mesmo passados 110 anos da sangrenta manhã do dia 15 de agosto de 1909, muito mistério ainda envolve os acontecimentos daquela manhã de domingo que culminaram com a morte de Euclides da Cunha, uma bala alojada na coluna de Dinorah, três tiros no aspirante do exército Dilermando de Assis, que depois da morte do escritor assumiu publicamente o romance com Anna da Cunha, a S’Anninha, viúva de Euclides, com quem mantinha um caso extraconjugal, além de ser o estopim para uma tragédia familiar que renderia mais três mortes em doze anos.
A atribulada personalidade daquele que se tornaria um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, causava barulho desde a adolescência do jovem Euclides.
Ainda um aspirante das forças armadas, num rompante de rebeldia, protestou contra a monarquia atirando sua baioneta aos pés do Ministro da Guerra do Império que passava em revista pelo batalhão do qual Euclides fazia parte, em 1888, um ano antes da Proclamação da República.
O jovem Euclides era um entusiasta republicano e o ato lhe rendeu a expulsão das forças armadas.
Sem a atividade das armas, Euclides teve tempo para outras duas atividades para as quais desenvolveu talento: a política e as letras.
Na política, era presença constante nas reuniões dos republicanos que buscavam derrubar o Império e instaurar a República.
Nas letras, começou a escrever para o jornal O Estado de São Paulo.
As duas atividades mudariam e guiariam a vida de Euclides da Cunha traçando o rumo do escritor até o fatídico domingo de agosto de 1909, na casa da Piedade onde tudo terminaria.
Numa das muitas reuniões políticas das quais participava, na casa do major Frederico Solon de Sampaio, um propagandista da República, Euclides conheceu a filha do major, Ana Emília Ribeiro, a S’anninha, então uma adolescente de 16 anos.
Euclides já tinha 23 anos e por ter ficado órfão aos três anos, sua vivência o havia obrigado a amadurecer muito jovem.
Mesmo assim o casamento aconteceu em 1890 e é claro que as coisas não aconteceram como o esperado.
S’anninha esperava um marido presente e confiava que Euclides conseguiria um cargo público de relevância em retribuição por sua atuação na articulação pró República.
Os planos de Euclides, porém, eram outros.
O espírito aventureiro, apesar da personalidade conservadora, e o compromisso ético com a República o fizeram declinar de um alto cargo público oferecido diretamente por Floriano Peixoto.
A recusa, em primeiro lugar, se deu porque Euclides entendia que os cargos públicos numa República deveriam ser distribuídos entre os mais capacitados e não entre aqueles que estavam mais próximos do poder, o que apenas repetiria a forma de governo do Império.
Em segundo lugar, Euclides mantinha planos de conhecer o interior do país com intuito de conhecer o povo, os diferentes costumes, mas também auxiliar a garantir a expansão e unificação da República.
Assim, se engajou em empreitadas pouco amistosas no final do século XIX e início do século XX.
Em 1897, viajou ao interior baiano como correspondente do jornal O Estado de São Paulo para reportar os acontecimentos da Guerra de Canudos.
Essa viagem rendeu um dos maiores clássicos da literatura brasileira.
“Os Sertões” apresentou um Brasil desconhecido aos brasileiros dos grandes centros urbanos, mas também fez a denúncia do massacre que o Estado impôs ao povo que seguia Antônio Conselheiro.
O livro publicado em 2 de dezembro de 1902, traz nas anotações preliminares a frase “aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.”, em que o escritor cumpre com maestria o papel do jornalista e presta importante serviço à história do Brasil.
Quando retornou ao Rio de Janeiro, porém, Euclides não sossegou, pelo contrário, a experiência em Canudos parece ter inquietado ainda mais o espírito do escritor que a essa altura queria percorrer o país.
E assim, embarcou em outras expedições sempre deixando S’anninha sozinha na capital federal.
Sozinha, porém nunca desassistida financeiramente.
Existem registros de que boa parte do salário de Euclides como engenheiro do governo era depositado em uma conta no Rio de Janeiro para que Anna pudesse prover as necessidades da casa e dos filhos do casal.
Em dezembro de 1904, Euclides partiu para a mais longa de suas ausências, até janeiro de 1906, o escritor permaneceu no Acre auxiliando nas negociações com a Bolívia pelo território acreano.
Nos 14 meses de ausência de Euclides, Anna mudou muita coisa na vida da família Cunha.
A primeira foi mudar-se para uma pensão no Flamengo, para se estabelecer num local onde tivesse mais praticidade no cotidiano e segundo anotações da própria Anna “aplacar a solidão”.
Porém, na pensão em que foi viver com os filhos, Anna conheceu um jovem aspirante do exército, recém-chegado na cidade, vindo de Porto Alegre, e que mexeu com seus sentimentos.
Dilermando de Assis, então aos 17 anos, se aproximou de Anna, que tinha 28 anos.
Estava armada a confusão porque foi paixão à primeira vista.
Em pouco tempo os dois estavam perdidamente apaixonados e viviam um tórrido romance.
O casal estava tão apaixonado que não se importou com a repercussão que uma gravidez causaria e Anna deu à luz no retorno de Euclides a um filho que o escritor sabia não ser seu.
Gira em torno deste nascimento uma história de que o escritor teria proibido Anna de amamentar a criança o que resultou na morte por inanição do recém-nascido e que Euclides o haveria enterrado no quintal da casa onde voltaram a viver.
Porém nada se comprova além das memórias escritas por S’anninha num diário.
Mesmo assim, Anna deu à luz outros dois filhos de Dilermando que Euclides chamava em seus escritos de “espigas de milho em meio ao cafezal”, em referência aos cabelos claros que as crianças herdaram do amante de S’anninha, contrariando a genética de cabelos escuros do escritor.
Fato é que Euclides tinha real conhecimento da traição de Anna e nunca se posicionou em direção ao divórcio.
Com as ausências cada vez mais frequentes de Euclides, Anna passou a viver mais próxima de Dilermando.
Assim que seu marido partia para uma nova viagem, Anna partia para uma temporada na casa do amante.
Numa dessas, porém, Euclides retornou antes do previsto e ao chegar em casa não encontrou sua família, apenas seu filho mais velho Sólon, então com 14 anos, a quem o escritor ordenou que fosse buscar a mãe.
Sólon sabia que a mãe estava na casa da Piedade junto ao amante e contou ao pai antes de sair para trazer Anna de volta para casa.
Quando Sólon chegou à residência de Dilermando, uma tempestade desabou no Rio de Janeiro e impediu a volta da família para casa naquele dia.
Na manhã seguinte Euclides partiu rumo ao encontro da família para acertar as contas e lavar sua honra.
Antes passou na casa de um conhecido para pedir uma arma emprestada.
Segundo o inquérito, pouco depois das 10 horas da manhã, Euclides invadiu a casa de Dilermando de Assis aos gritos de “vim para matar ou morrer”.
Logo na entrada o escritor encontrou Dinorah, irmão de Dilermando e que era zagueiro do Botafogo.
Ao tentar argumentar com Euclides, Dinorah foi alvejado por um disparo que lhe acertou a coluna.
Assim que ouviu os gritos e o tiro, Dilermando reagiu rapidamente e saiu de seu quarto atirando.
Euclides da Cunha conseguiu acertar três tiros em Dilermando, mas nenhum em área vital ao contrário do que o campeão de tiro conseguiu com o escritor.
Um tiro certeiro no peito de Euclides da Cunha que morreu instantaneamente.
A morte de Euclides da Cunha foi apenas o primeiro capítulo de uma tragédia que abalou o Rio de Janeiro no começo do século passado.
Os jornais repercutiram o caso como um escândalo tanto pela morte do escritor, como pelo caso extraconjugal de S’anninha, além do julgamento midiático de Dilermando.
O caso ganhou da imprensa o nome de Tragédia da Piedade.
No julgamento, Dilermando foi absolvido por unanimidade que considerou o caso como legitima defesa, já que Euclides invadiu a casa e atirou também em Dinorah.
Desgostoso com a situação e sem conseguir aceitar que sua mãe ficara com o homem que assassinou seu pai, Sólon partiu para o Acre em 1914 fugindo de casa.
No Norte do país envolveu-se com disputas de terra e ao ser nomeado delegado, foi assassinado numa emboscada no início de 1916.
Ainda em 1916, mais uma morte decorrente daqueles tiros em 1909.
No dia 4 de julho, Dilermando de Assis foi até o cartório de órfãos para requerer a guarda de um de seus filhos com Anna que havia sido registrado como filho de Euclides da Cunha.
Enquanto lia os papéis, Dilermando foi atingido por disparo pelas costas.
O autor era Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, na intenção de vingar a morte do pai.
O jovem aspirante da Marinha conseguiu um revólver e foi em busca de justiça.
Acertou quatro tiros em Dilermando antes que este pudesse reagir.
Dilermando de Assis, um exímio atirador e então tenente do exército, conseguiu revidar e matar seu agressor.
Mais uma vez a repercussão foi tremenda e Dilermando de Assis foi parar no banco dos réus.
Novamente o veredicto foi pela absolvição por legitima defesa.
Porém a opinião pública não poupou o casal e principalmente Anna, que se casou com aquele que agora era o assassino de um filho dela.
O último capítulo da Tragédia da Piedade foi Dinorah, que a época do atentado que vitimou Euclides já era zagueiro do Botafogo, se recuperou rapidamente da lesão e apenas uma semana depois de ser baleado entrou em campo para defender o Alvinegro da Estrela Solitária.
Mesmo com uma bala alojada na coluna, o zagueiro atuou por mais um ano e foi campeão com o Botafogo no tão famoso campeonato de 1910.
Ao final da temporada, encerrou sua carreira depois de apresentar fraqueza muscular o que fez com que jogasse no gol até não conseguir mais controlar seus movimentos.
Retornou para Porto Alegre em 1912, já paraplégico e se entregou ao alcoolismo, perambulou pelas ruas da capital gaúcha, foi recolhido e internado algumas vezes como louco em sanatórios da cidade, até se suicidar atirando-se nas águas do Rio Guaíba, em 21 de novembro de 1921.
A trama é tão absurda e densa que mais parece um roteiro mal escrito, mas é inacreditavelmente verdadeira.
O futebol fica de lado em várias passagens, mas a literatura, o amor, a paixão, o ódio, a traição, a vingança e a várias nuances de todos os outros ingredientes do enredo também ficam, em algum momento, jogados para escanteio nessa história de sangue escrita pelas mesmas mãos que escreveram uma obra prima da literatura brasileira.