A psicologia por trás de Perfect Blue

natalia
Universo Mental
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10 min readDec 12, 2021

Perfect Blue (1997) é uma animação japonesa de terror psicológico dirigido por Satoshi Kon. O filme começa contando a história de Mima Kirigoe, uma idol participante de um grupo chamado “CHAM!” que decide deixar a banda para se dedicar integralmente a sua carreira de atriz.

Se trata de um filme com diferentes camadas que te deixarão no mínimo um pouco, talvez muito, desconfortável. Por isso, se torna necessário dividir essa análise em diferentes tópicos para melhor compreendermos essa obra de arte.

O stalker

O filme começa com Mima se apresentando com as outras integrantes do grupo e em determinado momento do show ela anuncia que irá se dedicar a sua carreira de atriz.

Logo em seguida, somos apresentados a um fã, ou melhor stalker, que logo nas suas primeiras cenas já nos mostra o quanto ele acredita nessa ideia angelical que Mima possui como uma idol. Ele a idealiza como se ela fosse um objeto ou uma bonequinha perfeita que serve para apenas agrada-lo.

Na primeira cena em que ele aparece, já conseguimos notar o quanto esse filme é pertubador, enquanto Mima está cantando, ele coloca uma mão sobre os olhos de forma em que a sua visão se centralize na figura da mulher cantando, como se ela fosse sua propriedade.

Logo de cara já podemos associar essa situação a realidade, já que é muito comum na cultura japonesa ou coreana, artistas femininas serem vistas como doces, puras, angelicais e até mesmo infantis.

O problema de fato começa quando seus fãs se sentem traídos quando Mima decide mudar sua persona artística e isso acaba se tornando uma grande questão para os fãs que não sabem separar a versão idol de um artista da sua pessoa real.

No primeiro momento o stalker decide criar um site chamando “O quarto de Mima”, onde posta conteúdos como se fosse realmente a Mima de verdade que os tivesse escrito. O site possui informações desde o tipo de leite que ela compra no mercado até com qual pé ela pisou primeiro ao sair do metrô. O stalker simplesmente começa a ficar obcecado e a segue por todos os lugares com a finalidade de protege-la ou coletar informações pertinentes para acrescentar ao site, e isso por sua vez começa a afetar Mima, que o tempo todo acha que está sendo perseguida por alguém.

Ao longo do filme a situação começa a ficar mais séria, o stalker começa a apresentar sintomas do que chamamos delírio erotomaníaco, que é uma convicção delirante que uma pessoa pode desenvolver de estar sendo amado por alguém de posição social muito alta. Isso fica muito evidente quando ele começa a alucinar com a versão idol de Mima que aparenta estar apaixonada por ele e em alguns momentos até pede que ele a salve e mate a sua impostora, fazendo com que o stalker inicie uma série de assasinatos ao longo do filme.

A dualidade de Mima

Essa dualidade acontece em dois momentos, são eles: Mima versus o seu sonho de ser cantora e Mima versus si mesma.

Começaremos com o primeiro, logo no início do filme nos é apresentado que a decisão de Mima sair do grupo não era bem uma decisão dela, mas sim do seu produtor que decide desloca-la para a carreira de atriz, pois o grupo não estava dando retorno financeiro o suficiente.

Uma coisa interessante é que em alguns momentos do filme, mesmo sendo algo imposto a ela, Mima não parece se sentir desconfortável com a ideia de ser atriz, sua necessidade de agradar a todos é tão grande que ela apenas aceita o que é dado para ela sem reclamar, pensando apenas no melhor para sua empresa e acreditando que no fundo é isso que ela quer.

Em conversas com sua mãe ao telefone fica evidente esse conflito sobre o que ela realmente quer, sua mãe diz algo como: “Como assim você vai ser atriz? Você batalhou tanto para ser cantora, sempre foi algo que você quis, o que mudou?” e Mima, com essa necessidade de agradar a todos, inclusive sua mãe, diz que está tudo bem e que ela vai adorar embarcar nessa nova jornada como atriz.

No segundo momento vemos Mima agora tendo que lidar com a dualidade referente a quem ela é como pessoa, será que ela realmente quer ser atriz? Cantora? Ou apenas ela mesma?

Esse conflito interno sobre se ela fez ou não a escolha certa ao se tornar atriz começa a ficar evidente na forma de uma alucinação, onde Mima começa a alucinar com a sua persona idol que vive aparecendo nos piores momentos dizendo que ela não é o suficiente, que ela fez a escolha errada e a fazendo questionar sobre sua real identidade.

Ao longo do filme essas alucinações vão ficando cada vez mais intensas, cada novo passo da sua carreira é marcado por um conflito interno. Mima idealizou tanto sua vida de cantora, onde tudo é perfeito e com milhares de fãs, mas agora se vê seguindo um rumo completamente diferente de tudo aquilo que planejou.

A questão é que as pessoas constantemente estão imaginando uma versão específica da gente, e nós, acreditamos que essas versões são reais e muitas vezes acabamos nos confundindo. Afinal, somos o que acreditamos que somos ou apenas estamos acreditando naquilo que os outros acham que devemos ser?

O lado obscuro da mídia

Essa com certeza é uma das melhores partes do filme, se não a melhor, mas que infelizmente não irei me alongar se não ficarei aqui até amanhã. Logo quando Mima decide dar início a sua carreira de atriz podemos perceber que alguns cantores não são muito bem vistos quando fazem algum papel, geralmente são papéis pequenos e nos dão a impressão que estão ali apenas para gerar audiência ou algo do tipo.

A primeira cena de Mima consiste em apenas uma frase, mas que a deixa extremamente nervosa, por ser a primeira vez que ela atua, ela fica o tempo todo repetindo a mesma frase em um nível que chega a ser irritante, ela repete a frase: “Excuse me, who are you?” Ou para os íntimos, “Quem é você?” E se você está se perguntando se essa frase faz referência com o fato dela mesmo não saber direito quem é, você está completamente certo.

O fato de Mima não ter muito espaço na televisão acaba por deixar os fãs furiosos, a mídia no geral quer que Mima apareça mais vezes e depois do seu produtor ficar em cima, finalmente o roteirista da trama consegue dar um papel de destaque para ela, o problema é que se trata de um papel no entanto questionável. Mima se vê obrigada a realizar cenas nuas, hipersexualizadas e tudo de desconfortável e nojento que você pode imaginar, inclusive cenas de abusos sexuais.

Obviamente essas coisas começam a afetar psicologicamente Mima, que embora diga a todos que está tudo bem e que não tem problema nenhum em gravar esses tipos de cenas, quando chega em casa, longe dos holofotes e da mídia, a sua realidade é outra, ela simplesmente desaba.

É muito triste pensar que artistas femininas são muitas vezes obrigadas ou persuadidas a seguirem certos rumos em suas carreias no qual elas não estão de acordo, tudo com o intuito de gerar dinheiro. Para seus produtores não importa se a pessoa está bem ou não, tudo que importa é o lucro que ela irá trazer no fim do mês.

Essas artistas são vendidas como bonecas perfeitas e angelicais e logo em seguida muda-se sua imagem e elas automaticamente amadurecem e são hipersexualizadas, e depois disso, como se não fosse suficiente, quando ficam um pouco mais velhas são substituídas por outras mais novas que são consideradas mais atraentes.

O momento em que as realidades se cruzam

Se você tirar a identidade de alguém, então o que sobra?

Obviamente com tudo isso acontecendo na vida de Mima, as coisas começam a sair do controle. Na metade do filme em diante, as suas alucinações vão ficando cada vez mais recorrentes, reflexo de tudo aquilo que ela está vivendo no momento, seu debate entre quem ela é começa a ficar muito mais intenso para a mesma.

Assim como para Mima, para o expectador as coisas também saem um pouco do controle, isso acontece pois a animação apresenta uma série de cortes que nos confundem. Começamos a nos perder no que é real e no que é a Mima alucinando.

Tudo começa a ficar mais interessante quando a personagem de Mima na trama na qual ela trabalha começa a apresentar um transtorno de personalidade e está envolvida com uma série de assassinatos, várias e várias vezes ela aparece matando alguém e logo em seguida acorda no seu quarto se perguntando se aquilo tudo foi real, e antes que você consiga compreender o que está acontecendo, o filme corta para outra cena dela atuando, você começa a se perder junto a personagem numa sensação angustiante.

Lembra do stalker do início? Pois bem, por não conseguir separar a Mima angelical que ele conheceu com essa nova Mima, ele começa a achar que ele precisa ajuda-la de alguma forma, assim, ele acaba matando algumas pessoas próximas dela com o intuito de protege-la, e, por fim, ele acha que precisa mata-la, acreditando que ela é, na verdade, uma impostora, e que a verdadeira Mima, a cantora do ínicio, está apaixonada por ele e precisa ser salva.

Ao final do filme tudo começa a passar em um ritmo mais rápido e as situações começam a ficar ainda mais confusas, Mima se vê perdida entre real e imaginário, entre o que ela quer e o que lhe foi imposto, entre sua persona cantora com sua persona atriz. É uma constante batalha entre ela e ela mesma, tudo isso enquanto lida com o fato de que pessoas próximas dela estão sendo mortas e a mesma começa a receber ameaças de morte, motivo suficiente para ela surtar mais ainda e suas alucinações se itensificarem ao ponto dela achar que está sendo perseguida por ela mesma.

Conforme ela surta, mais as alucinações da sua persona idol começam a ficar mais frequentes. Embora na maioria das vezes Mima esteja alucinando, todas as vezes que ela tem a sensasão de ver seu stalker ela acredita que seja real e que ele é o culpado por todas as mortes, no entanto, ela é levada a acreditar que o stalker também é uma alucinação.

Assim, ela começa a achar que ela mesma está matando essas pessoas, ou seria a sua persona idol? Ou seria só a sua personagem da trama? Ou será que nada disso está de fato acontecendo? O filme começa a brincar com você e lhe pregar peças o tempo todo antes de chegar a conclusão final que eu não irei falar aqui para não estragar a surpresa.

Hoje pretendo apenas apreciar as camadas por trás do filme e não resolver o mistério ou o explicar o plot twist do final, se é que realmente precisamos quebrar a cabeça com isso. Acho que a graça do filme é apenas deixar fluir e aprecia-lo do jeitinho que ele é.

A problemática da internet

Por último, mas não menos importante, o filme acaba por apresentar muito pouco em relação a internet, mas ainda sim de maneira precisa. No filme, Mima decide comprar um computador apenas para vê o que seus fãs estão falando dela e assim ela começa a perceber que existem pessoas querendo o seu mal e não há nada que ela possa fazer para impedir. Agora imagine isso tudo no contexto que ela já está inserida, apenas acaba por potencializar tudo e amedrontá-la mais ainda.

Embora lançado a mais de 20 anos, Perfect Blue se torna cada vez mais atual. Com a avanço das tecnologias se tornou muito mais fácil para as pessoas públicas lerem comentários maldosos nas mídias sociais. Qualquer pessoa pode fazer o que quiser por trás de uma tela de computador sem pensar nas consequências e atingir pessoas que já estão suscetíveis a adquirir algum tipo de transtorno, assim como Mima.

O mais assustador dessa história toda é que podemos nos indentificar com a própria Mima, afinal, hoje em dia todo mundo pode ser uma celebridade na internet, todos nós possuimos avatares ou personas que condizem com uma realidade específica que queremos que os outros vejam.

Mas o que acontece quando nos perdemos dentro dessas personas? O que acontece quando nossos seguidores, que nesse caso seriam os fãs, começam a impor algo sobre a gente? O que acontece quando mudamos nossa persona virtual e recebemos menos curtidas do que antes? Quais os impactos disso em nossa saúde mental?

Todos nós podemos criar uma identidade diferente da que possuímos, e todos nós estamos suscetíveis a nos perder dentro dela.

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natalia
Universo Mental

textos mal escritos que expressam as coisas que eu não tenho coragem de dizer