Entre expectativas e a realidade: Meus primeiros meses sendo psicóloga

27 de agosto, dia do psicólogo.

natalia
Universo Mental
6 min readAug 28, 2022

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Ontem foi dia do psicólogo e eu, como uma boa procrastinadora que sou, decidi fazer o texto só hoje, um dia depois. Meio atrasada, eu sei, mas aproveito esse belo exemplo para dizer que eu não sou perfeita e faço as coisas certinhas o tempo todo como muitos acreditam.

Sim, pois é, muitos tem uma visão errada do psicólogo, acreditam que somos seres completamente maduros, livres de problemas e acima de média em algum sentido, uma espécie de guru, padre, xamã ou qualquer outra coisa, donos de uma verdade absoluta capaz de te dizer exatamente como você deve pensar, agir e se comportar.

Mas, na verdade, o psicólogo é igual qualquer outra pessoa, é um ser humano que estudou sobre a mente e o comportamento humano por pelo menos uns 5 anos. Se engana quem acha que saber em partes sobre como nós funcionamos dá algum tipo de vantagem e coloque a gente em um patamar superior, como se houvesse um manual para existir, e a gente por ter acesso a ele, automaticamente estaremos livres de problemas.

O fato do psicólogo ser um ser humano assim como qualquer outro é o que faz dele especial, afinal, só o ser humano possui características que fazem com que ele seja capaz de tocar outro ser humano. Este é imperfeito, e é justamente essa imperfeição que nos torna cada vez mais humanos de fato.

É preciso ser imperfeito, falho, humano e empático com o outro para que se consiga ouvir a sua dor. Para que se consiga estar em um lugar não de dono da verdade ou salvador, mas de um lugar de escuta e acolhimento, para que só assim se consiga ser capaz de escutar aquilo que para o outro é tão difícil de dizer em voz alta, aquilo que está no seu íntimo, que doí, que incomoda e que causa sofrimento.

Se engana quem pensa que o psicólogo não pode sofrer junto, se sentir afetado após escutar tantas histórias e tantos discursos que machucam. Achar que tudo isso não nos toca é no mínimo preocupante, passar uma hora conversando com alguém disposto a pagar por aquele atendimento e contar algo que depositou confiança em você é algo mágico. São coisas que só quem faz terapia entende, o poder desse encontro.

Eu descobri através dessa caminhada que eu não preciso pegar toda a dor de um paciente para mim, tampouco preciso ter responsabilidade sobre a vida dele, nem devo dizer o que fazer. Parece difícil, pois cada vez que uma pessoa nova me procura ela vem exatamente com esse desejo, de que eu diga o que ela tem que fazer e elimine o seu sofrimento de uma vez por todas.

Para mim, é até um pouco difícil ter que esconder algumas coisas que eu até “sei”, mas não quero estragar a surpresa da pessoa de se deparar com o seu próprio sofrimento e ser capaz de descobrir por conta própria qual é a fonte dessa dor.

É lógico, que eu estou ali, eu questiono, eu pergunto o porquê, sou ativa nesse sentido, sempre cutucando, passando tarefas, ensinando sobre os sentimentos e comportamentos, fazendo o processo terapêutico fluir de forma bem ativa. Mas se engana quem pensa que eu darei todas as respostas, até porque pasmem, eu também não sei.

Com cada pessoa que eu tenho a oportunidade de ter esse encontro, eu descubro mais e mais sobre a complexidade do ser humano e como que funciona cada coisinha para cada pessoa. Por mais que existam as teorias, o processo de vivenciar a vida na sua totalidade é único para cada pessoa.

Outra coisa que eu aprendi, é que a psicologia é mais social do que se imagina, não existe colocar uma pessoa dentro do consultório e esperar “consertá-la” como o senso comum acredita. Até porque na maioria das vezes, essas pessoas são mandadas ao consultório não porque são doentes ou algo do tipo, mas sim, porque incomodam outras pessoas e elas não querem ter que lidar com esse incômodo.

Não existe psicologia sem entender o contexto social, político, racial e outros. Quantas pessoas eu já não tive o contato, dentro e fora da clínica, que acreditaram ter algo de errado quando, na verdade, o ambiente a sua volta que era adoecedor?

E esse querendo ou não foi um dos motivos de eu querer ser psicóloga. Eu passei por coisas na vida que sempre me fizeram questionar a minha verdade, quando, na verdade, o problema não era comigo, e sim algo muito maior.

A sociedade infelizmente não está preparada para lidar com algo diferente, com pessoas que não pensam da mesma forma, que se comportam de outro jeito, que atrapalham, que incomodam.

Quantas vezes eu já não ouvi de professores que se uma criança bagunça na sala, automaticamente já imaginam que a mesma tem algum tipo de transtorno, já rotulam como hiperativa, porque incomoda e atrapalha a aula. Mas, em simultâneo, quantas crianças não sofrem caladas dentro da sala e são negligenciadas? E sabe o que acontece com essas? Nada. Não há um professor que encaminhe ou perceba que há algo de errado, porque ao contrário da criança que faz bagunça, essa, não atrapalha, então se não incomoda, não precisa de tratamento.

Durante muito tempo a prática da psicologia foi assim, feita não para quem tem algum tipo de sofrimento psíquico, mas sim, para aqueles que não querem que essas pessoas as incomodem, uma espécie de prática higienista que busca limpar a sociedade dessas pessoas e “tratá-las” com muitas aspas para que essas possam voltar consertadas para então, sim, (ou muitas vezes não) viver em sociedade.

Muitas pessoas que vem até a mim, relatam os seus problemas muita vezes se culpando, quando, na verdade tem todo um contexto social, familiar ou até mesmo cultural por trás de tanto sofrimento, e por mais que essas pessoas não precisem ser “consertadas” ou “tratadas” ou qualquer que seja o termo, elas ainda sim, precisam do psicólogo. Precisam dele para entender todo esse processo. Entender que quase todas as suas ações, escolhas e comportamentos vieram de um lugar, de uma necessidade de aprovação ou porque acreditaram ser o certo, nunca se sabe. O que se sabe é que elas precisam desse espaço que a clínica fornece para serem capazes de ressignificar e ter autonomia acerca da sua vivência, aprender a olhar a vida sobre uma nova perspectiva, entender o porquê se sentem dessa maneira e mais do que tudo, serem capazes de se abrir e falar sobre aquilo que dói, ter esse espaço que por mais curto ou simples que pareça ser, muitas vezes é negligenciado pela própria sociedade.

Lentamente eu vou aprendendo, tentando me adequar e me desadequar de alguns espaços, aprendendo que vai ter gente que quando eu falar que sou psicóloga insistirão em me chamar de doutora e esperam ver uma mulher de salto alto, maquiada e de jaleco branco, outras vão me enxergar como uma amiga e companheira de bate-papo, e querendo ou não tudo isso faz parte da sociedade, a maneira com que cada um enxerga a profissão, são questões tão maiores do que eu posso controlar e eu estou aprendendo a lidar com isso.

Estou aprendendo a entender mais sobre mim e sobre o tipo de pessoa que eu quero me parecer, e essa pessoa não pode ser o ideal ou o que esperam de mim, mas sim o mais parecido comigo mesma que eu conseguir. Aquela psicóloga que manda figurinha quando vai marcar sessões, que conta piadas às vezes e que tem uma cachorrinha que ocasionalmente bate na porta do quarto e pede colo, e todas essas situações cotidianas não me fazem menos profissional, apenas me fazem humana.

Estou aprendendo a entender como funciona tudo isso, aprendendo a lidar com lugares e instituições que eu já atuei e ainda vou atuar e ter que ouvir comentários que colocam a profissão em um patamar bem abaixo do que realmente é, tenho que lidar constantemente com falas autoritárias de algumas pessoas e profissionais que nem são da área me dizendo o que eu devo fazer e como eu devo fazer para lidar com o sofrimento humano. E quando eu tento de fato fazer alguma mudança efetiva sou barrada pelo senso comum e pelas regras sociais que ainda se pautam nessa lógica higienista de se afastar daquilo que incomoda. Vem sido um processo muito difícil, se deparar com a realidade e perceber que tipos de mudanças podemos fazer, mesmo que estas, de início sejam quase imperceptíveis para algumas pessoas. Mas seguimos, ainda há um processo bem longo para ser percorrido e eu quero fazer parte dessa jornada através de minha prática futura, dos meus encontros com pessoas e profissionais, debates, textos e o que mais for possível e estiver dentro do meu alcance.

É possível ser feliz na profissão estabelecendo uma postura neutra, apática, alheia ou até mesmo que se adéqua ao que a sociedade espera? Eu sinceramente acredito que não. Que sentido tem de trabalhar com vidas humanas se não nos permitimos abraçar a nossa humanidade durante esse processo?

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natalia
Universo Mental

textos mal escritos que expressam as coisas que eu não tenho coragem de dizer