E se existisse um selo de “responsabilidade científica” para portais de notícias?

Vivemos num mundo movido a fake news. Elas decidem o futuro de nações, colocam pessoas em risco de vida. Não custa sonhar com um mundo em que o jornalismo científico feito pelos grandes portais fosse garantidamente confiável para a população.

Geisa Ponte
Universo Observavel
5 min readApr 29, 2020

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Manchetes do tipo “asteroide vai destruir a Terra” apareceram recentemente em vários portais. Logo depois, uns tais OVNIs (fakes) da Lua viraram notícia. Isso sem contar a gravidade de notícias falsas sobre a corrente pandemia de COVID-19, e outros assuntos diretamente relacionados à saúde individual ou coletiva das pessoas, que impactam muito mais diretamente nossas vidas.

Sequência de instantâneos de tela com notícias recentes (a partir de março de 2020) usando títulos e imagens bastante duvidosos

Sei que existe bastante jornalismo científico de qualidade, e também muitos cientistas envolvidos com divulgação científica conquistaram espaço em grandes portais (eu mesma). Ainda, longe de mim afirmar que só cientistas podem fazer conteúdo científico para o público de forma honesta. Quem me conhece sabe que eu tento espalhar a mensagem justamente oposta: não precisa ser um cientista pra falar bem sobre ciência, basta ter compromisso com a qualidade do conteúdo e a sua audiência. A questão aqui é que, apesar de várias pessoas super bem intencionadas já estarem tomando parte nessa narrativa, ainda assim, a gente vê muita coisa esdrúxula que foge completamente da nossa alçada e controle.

Precisamos de títulos chamativos sim, mas de desonestos nunca

Entendo profundamente a necessidade de títulos chamativos. Atrair a atenção do público que não costuma se interessar muito por notícias “chatas” de ciência é um desafio, principalmente se a ideia é furar a bolha. Fazer divulgação científica é uma missão bastante árdua, principalmente no sentido de estratégia e linguagem.

O que não pode ser válido é o uso de títulos extremamente sensacionalistas que usam clickbait desonesto e espalham pânico e desinformação, muitas vezes até de forma não proposital (apenas por falta de cuidado).

Seria muito legal se existisse uma forma de certificar os portais que tomam cuidado com sua redação para noticiar as pesquisas, as observações, os fatos científicos. Aquelas que dão importância à forma de interpretar as estatísticas, de alertar quando um estudo é um pré-print (ou seja, ainda não foi avaliada por outros cientistas) ou quando é uma revisão de estudos clínicos com milhares de participantes (que tende a ter resultados bem fortes no sentido de correlação e/ou causalidade).

Seria uma forma de diferenciar os meios de comunicação que evitam usar título desonesto, que não lançam mão de ilustrar as matérias com imagens que induzem ao erro, que deixam claro a natureza de cada artigo noticiado, que mostram as cartas na mesa pra quem não lida diariamente com os jargões científicos.

Não custa sonhar com uma espécie de selo do INMETRO das notícias científicas

Poderia ser uma certificação (como um selo mesmo) concebido por uma grande entidade de representação da ciência no país, tipo a SPBC em conjunto com sociedades representativas de cada área. Ou alguma iniciativa independente, que com base sólida de colaboração entre cientistas e profissionais da comunicação.

Claramente seria necessário bastante propaganda pra população entender a importância dessa certificação. E imagino que teria que ser uma propaganda insistente, perene, capilar. Afinal, não adiantaria existir um selo desse tipo se as pessoas não o usarem efetivamente no dia-a-dia pra filtrarem em quais portais as notícias científicas são confiáveis, pra escolherem as melhores fontes.

Esse tipo de iniciativa já existe para blogs e canais no YouTube que fazem divulgação científica. É o Science Vlogs Brasil que certifica a qualidade do trabalho desses criadores de conteúdo, dando o aval de confiança para suas audiências.

Um diálogo pavimentado entre o jornalismo e jovens cientistas

Esse tipo de certificação poderia ser aplicada em conjunto com uma consultoria de todas as áreas da ciência. Um portal certificado poderia ter acesso a uma base para pedir “ajuda aos universitários” pra validar a qualidade de uma manchete. Poderiam ser alunos de pós-graduação, por exemplo. O texto e figuras seriam enviados pra os pós-graduandos voluntários cadastrados numa base (por exemplo, uns 5 deles, como se fossem referees numa revista científica) que dariam o OK pra matéria ou sugeriram mudanças em algumas poucas e breves interações. Por exemplo, uma imagem dessa na manchete abaixo seria extremamente desaconselhada.

Além do título que imprime uma tensão desnecessária no leitor (na verdade, o asteroide ia passar a uma distância segura), a imagem que ilustra a reportagem é completamente desonesta. Primeiro porque a projeção dá a entender que o asteroide está em fadada rota de colisão com a Terra. Segundo porque o tamanho dele está completamente fora de proporções em relação ao nosso planeta (ele é absurdamente muito menor que isso). Terceiro porque ele aparece “pegando fogo”, fato que é impossível de acontecer com corpos isolados no espaço. O objeto só se incendiaria caso entrasse na nossa atmosfera.

Dessa forma, o portal certificado faria uma ponte mais sólida com os cientistas de cada área, que poderia durar por muitos anos. Mesmo que o selo deixasse de existir em algum momento, teríamos construído uma rede de comunicação muito mais responsável pra divulgar as notícias científicas junto a população. Dá pra pensar em vários outros benefícios diretos e indiretos disso.

Mas vindo pro mundo real, como fazer isso?

“Tudo muito lindo, Geisa, tudo muito legal. Esse seu sonho aí, sei não. Já que você veio com essa ideia, o que você propõe?”

Eu não faço ideia de como começar isso, nem do quanto de tempo e dinheiro seria necessário pra tornar algo do tipo real. Não é trabalho para uma pessoa só. Nem pra um grupo pequeno de voluntários bem intencionados. Certamente seria necessário bastante dinheiro. Seria necessário montar uma equipe multidisciplinar, especialistas de várias formas de comunicação, submeter vários pedidos de financiamentos.

Apesar desse humilde, e ao mesmo tempo ambicioso, sonho ter começado aqui dentro da minha cabeça, definitivamente, sei que essa não é uma missão que eu possa abraçar. E é por isso que vim aqui jogar essa ideia aos quatro ventos. Talvez ela alcance alguém que possa realizar algo nesse sentido, que veja uma oportunidade de fazer isso germinar. Se alguém puder tornar isso real de alguma forma, algum dia, já vou ficar bastante feliz. :)

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Geisa Ponte
Universo Observavel

Astrônoma/astrofísica curiosa que adora investigar gêmeas solares. Escreve mensalmente na Revista Galileu. Criadora da #AstroThreadBR no Twitter.