Migrar toda astronomia para telescópios espaciais? É uma saída?

Com toda essa confusão que o Starlink iniciou ameaçando várias áreas da astronomia, vem a seguinte pergunta: E se migrássemos todos os telescópios pro espaço? Parece legal isso, né? Cola nessa #AstroThreadBR para saber mais sobre a visão de um astrônomo sobre essa treta toda.

Diego Lorenzo-Oliveira
Universo Observavel
7 min readJun 23, 2020

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Primeiramente, sempre que somos encurralados pelos Golias da vida moderna, nos é vendida a falsa ideia de que existe apenas uma solução simples para problemas complexos, um futuro inevitável.

Em uma primeira análise, parece ser realmente a melhor alternativa: migrar telescópios para o espaço. Reza a lenda que telescópios em solo são peças obsoletas e logo serão substituídas.

Isso não é bem verdade. Nessa thread vou comentar sobre algumas limitações que telescópios espaciais possuem:

1) Tempo de vida
2) Latência tecnológica
3) Estabilidade
4) Custo benefício
5) Legado social/educacional

Tempo de vida: Uma vez que o telescópio foi pro espaço, não dá pra ficar fazendo manutenção e melhorias significativas. Em geral, essas missões espaciais já nascem com tempo de morte estabelecido e isso gira em torno de 3–4 anos.

No caso do Hubble, por exemplo, é possível prolongar sua vida por mais tempo, porém nunca será possível mudar o design dele para acompanhar o ganho de tecnologia e instrumentação que vamos tendo ao longo dos anos seguintes ao seu design inicial/lançamento.

Consertos críticos que o Hubble sofreu no espaço ao longo da sua vida, se fosse o caso de um telescópio em solo, seria algo trivial de se fazer.

Normalmente os instrumentos que vão para o espaço estão algumas gerações atrás do que se tem como tecnologia no momento do seu lançamento. Isso é porque para lançar um foguete para o espaço, absolutamente tudo já tem que estar estabelecido com muita antecedência. Isso demora.

Algumas vezes os projetos são rejeitados e voltam para a prancheta. Por exemplo, o Kepler sofreu inúmeras rejeições de projeto e, esse processo todo, desde a idealização dos fundamentos tecnológicos, projeto científico (e tudo mais), se arrastou por 20 anos, no mínimo!

Na realidade, as primeiras movimentações que motivaram a construção do Kepler vieram na década de 60–70! Olha o investimento de longo prazo ai. Vocês conseguem imaginar quantas reviravoltas demos no Brasil desde os anos 60? Afasta de mim

Claro que hoje em dia as coisas podem ser mais rápidas, no entanto, uma missão não vai pro espaço em um intervalo de menos de 15 anos desde a sua concepção, isso sendo otimista. E nesse tempo que passa desde o início da construção e seu lançamento a tecnologia salta absurdamente.

Apesar de não ter atmosfera lá em cima, a estabilização do apontamento do telescópio é prejudicada. Nunca essa estabilização no espaço será tão boa quanto um instrumento chumbado no solo e com controle restrito de temperatura e pressão.

Existem ramos importantíssimos da ciência que demandam estabilidade de medidas astronômicas em escalas de tempo que chegam a ser superiores ao tempo de vida dos telescópios espaciais!

Imagina vc fazer uma medida hoje e não conseguir garantir que daqui a 10 anos será possível compará-la com novas medidas? Um excelente exemplo é a detecção de exoplanetas.

Para se detectar um planeta tipo Júpiter em órbita semelhante ao vemos no Sistema Solar, precisamos monitorar a estrela com telescópio espacial por 3 órbitas de 12 anos, ou seja, no mínimo 36 anos!

Isso é 9x o tempo de vida da missão espacial Kepler, sem contar que seu objetivo é encontrar *candidatos* a exoplanetas. Para confirmá-los precisamos medir a massa desse planeta. Para medir essa massa, recorremos a técnicas diferentes que só são possíveis do solo.

Lembrem da escala de tempo (12 anos!) para confirmar a órbita: devemos monitorar o movimento do exoplaneta em telescópios de solo por esse tempo todo paralelamente ao telescópio espacial.

Se não existir nenhuma informação do solo para essa estrela, precisaremos monitorá-la do solo por mais 12 anos para cobrir uma órbita, totalizando 48 anos! Depois de 48 anos esperando, vc estaria até invertendo os números,né?

Nem preciso dizer que: “Space is hard” (Essa referência é para poucos hein, rs). Todo o projeto pode ir >não literalmente< para o espaço se tivermos um problema no lançamento (explosão, desvio de órbita, etc). Aí, cara, são 10–20 anos jogados no lixo.

Para manter um instrumento que observa luz no infravermelho, por exemplo, ele necessita ter sua instrumentação mantida a temperaturas muito controladas e constantes para não haver contaminação e um ruído adicional.

Isso demanda ainda mais energia e reduz o tempo de vida da missão espacial. Além disso tudo, telescópios no espaço costumam ser menos flexíveis com relação a projetos que fujam de sua “missão primária” justamente por não ser possível mudar radicalmente a instrumentação inicial.

Há uma necessidade de um balanço entre custo, economia de energia e peso para manter o seu tempo de vida aceitável.

Agora pausa para respirar, ajeite-se na cadeira. OFF: A quinta-série que habita em mim não consegue ouvir a frase sem ter um risinho no canto da boca: Astronautas colocaram uma lente de contato no Hubble. Eu sempre ouço que “colocaram uma lente de contato no rabow”

Legado social/educacional: Na minha visão, esse é o ponto mais relevante. Se você leu até aqui, digo q poderia até esquecer o resto e considerar apenas esse ponto. Os outros pontos são coisas pacificadas na astronomia e dependem unicamente da visão técnica, não há discussão.

Claro que ter um nuvem tecnológica de telescópios espaciais seria incrível e, nesse caso, os telescópios em terra seriam aposentados. Maaas, essa é uma visão limitada, proponho ir além.

Não pensem na nuvem de telescópios espaciais, sejam disruptivos e discutam sobre irmos até as estrelas e deixarmos nossas sondas lá! Esse é o futuro, a nuvem de telescópios, Starlink, já são coisas obsoletas, pessoal. Logo logo chegaremos nas estrelas e faremos isso.

Telescópios são uma montoeira de circuitos, espelhos, etc. O que faz a organização dessas peças funcionar com um propósito e movimentar a elaboração do conhecimento são as pessoas, a sociedade que abraça o significado daquilo para construção da nossa identidade como uma espécie.

A construção de uma identidade vem através de símbolos positivos que agregam e estimulam sonhos. Não existe nada mais impactante para uma criança/adolescente que ter contato com as engrenagens da astronomia.

Da mesma forma que filmes e músicas transformam a vida de uma pessoa.

Observatórios não são apenas lugares que hospedam astrônomos para fazer observações. Os observatórios representam a história, a construção do conhecimento, com acertos e erros (muitos desses são bem engraçados!).

Representam o local onde gerações de cientistas frequentaram, viveram, aprenderam e contribuíram para a evolução da ciência. Isso tudo é um símbolo secular.

Um exemplo que está no meu coração é o Observatório Pico do Dias que movimenta toda uma cidade que o abraça e o defende. É um símbolo para as pessoas que moram ao seu redor e, algumas delas, trabalham de forma honrosa e apaixonada para manter aquilo aberto e produzindo ciência.

A minha formação observacional se deve MUITO ao que me propiciaram lá. Isso tudo deve ser valorizado (ABSOLUTAMENTE NUNCA DESMERECIDO).

Devemos defender isso incondicionalmente e com absoluta resistência para que outras gerações possam ter o privilégio de andar pelas mesmas salas, mesmos jardins, apreciar nossos acertos e rir das histórias passadas de trapalhadas que fizemos quando fomos observar lá.

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