A flor e as estrelas
Quando o mundo era silencioso e calmo, só se ouvia a conversa daqueles que não falavam. Ventos, rios, rochas, árvores, e inclusive, as estrelas…
Conversa ia e vinha, uma poética silenciosa assídua entre tudo que era vivo. Místico de encantos era o mundo. Um único ser, a bendito ser, viu-se desencantado, e resolveu viver desnudo. Não de roupagens ou qualquer adereço, desnudo de pele e osso. E se descascou, por debaixo, arquétipo de um animal humano, cansado de ser gente. Montou sua magia e se tornou uma flor. Uma flor única, passou a viver em água, preservava-se com espinhos e grande folhagem, seu aroma inigualável cativava toda vida ao seu redor, cujo tornara a flor mais amada. Sua fonte vitalícia? Propriamente o amor e nada mais. Até que, depois de uma noite estrelada, ao amanhecer aos ventos sussurrou. “Aquela estrela que caiu bem diante de meus olhos, me conversou e me beijou. Por agora, eu desejo mais que tudo alimentar este amor”. E toda vida ao seu redor tremulou.
A flor cresceu e cresceu, por uma única haste, deixando para trás sua folhagem e seus espinhos. Cresceu até alcançar os céus, em busca da estrela que beijara. Os ventos, a terra, as nuvens e a própria Mãe Sol apoiava-a em sua busca. Até que chegara à morada das estrelas. Mas não a encontrou por lá. Havia um homem-velho, uma Ema, e uma Anta. Perguntou primeiro à Anta. “Saudações, eu venho em busca de uma estrela […]”. Mas a Anta não a indicou, olhou de lado e se virou. A Ema escondeu seus ovos na garganta e se virou também. O homem-velho também ouviu, resmungou perguntando: “Primeiro se apresente! Depois pergunte por algo! Se eu vou responder ou não já não sei, vou pensar no seu caso”. A flor em sua tranquilidade de planta não se incomodou. “Sou Aguapé, venho lá de baixo em busca de uma estrela que desceu e me beijou, de cores azuis bem claras e rosadas”. Mal sabia a flor Aguapé que a estrela era sobrinha do homem-velho. Que logo se enfurece e como um rugido de trovão, se levanta do banquinho, toma seu cajado, e tudo que era claro se escurece. “Estrela daqui não se mistura com coisa da terra! Ainda mais com flor! Pegue seu trecho e não volte mais!”. Aguapé que tinha pétalas amarelinhas como as cores de um alvorecer, entristeceu-se se colorindo de um azul bem clarinho. E desceu, e desceu devagarinho, corroendo sua própria haste. E quando viu, já estava perto das nuvens, e era noite. Quem lhe aparecera era Lua, que pergunta o que fazia uma flor tão longe da terra e das águas. “Eu venho do caminho da anta. Estava em busca de minha amada estrela, ela, que desceu e me beijara, em uma noite que sequer eu esperava. Mas não a encontrei, e me disseram para lá nunca mais voltar”. Lua sensibiliza-se com a história da flor que acabara de conhecer e passa a minguar. “Conte-me como ela é. Conheço todo o céu noturno, talvez eu possa ajudar”. “Azul bem clarinho e rósea”. Mal sabia Aguapé que esta estrela já fora amante de Lua, mas Lua nunca pode superar sua separação, e tinha muito ciúme. Enraivou-se se tornando cheia de repente, avermelhou-se e gritou a Aguapé que nunca, jamais iria voltar a ver essa estrela. Anos-luz e um rio celeste — que era o caminho da anta — separavam Aguapé e a estrela. Desceu para terra soltando-se da própria haste, flutuou e flutuou despejando suas pétalas, e se estirou na primeira poça de lama que encontrara, e lá ficou. Deveras entristecida encontrava-se Aguapé, a flor cujo se enfraquecia severamente em força vitalícia do amor.
Mãe Sol surgiu trazendo o dia e logo percebeu que uma florzinha andava triste e isolada de tudo aquilo que a amava. Perguntou-lhe. “Ó flor de meu jardim, por que tanto martírio em um dia tão lindo? Qual seria a causa de suas lamentações?” Ao ouvir a preocupação da própria Mãe Sol, Aguapé sente novamente a vontade de viver e passa a produzir raízes que fixam na terra ao fundo da lama que estava. Suas poucas pétalas que restaram se limpam rapidamente, e responde: “Fui à busca de conhecer uma estrela que descera dos céus e me beijara, penso eu, que muito amor ainda podíamos trocar, eu viveria em qualquer lugar, e faria qualquer coisa por aquela companhia. Mas quando subi aos céus em sua busca, não a achei. E ninguém ajudou-me. Disseram-me para nunca mais voltar por lá, até mesmo Lua, aconselhou-me em desistir e voltar de vez para cá”. Mãe Sol ao escutar suas lamentações irradiou um brilho ainda mais forte por entre as nuvens, colorindo o céu como jamais visto. “Veja, que a luz clareie sua vida, não há motivo para martírio. Assim como as estrelas são minhas filhas, você também é. Aguarde tranquilamente, pois, todos os dias eu hei de visitar — com minha luz — tudo que é vivo. E enquanto estiver vida em você, não se esqueça de sua força vitalícia, antes de tudo, perceba sua própria luz, lembre-se que você também ilumina vidas à sua volta. Somente depois de perceber isto, poderá seguir o seu novo caminho”. Com o grande apoio de Mãe Sol, Aguapé recobrou sua força vitalícia, mesmo estirada em lama, arruinada com poucas pétalas, e ainda lentamente produzindo nova folhagem espinhenta para novamente preservar-se, emanou seu doce aroma, essência de sua força vitalícia. E as vidas voltaram a rodeá-la, não era relevante o fato de estar suja em meio à lama e arruinada. Pois, novamente o amor a cercava. E Aguapé esperou, e esperou, tranquilamente, assim como Mãe Sol aconselhou. Até que chegara o dia em que a estrela reapareceu, depois da Mãe Sol se deitar. E finalmente puderam conversar. A estrela explicou-lhe que não era todas as noites que ela poderia vir a lhe visitar. Deuses da morada celeste eram extremamente rígidos e não a permitiam descer e nem ficar por muito tempo à vista. Contudo, a flor e a estrela estavam completamente apaixonadas. Por longo período, de total prazer e harmonia, o casal por todas as noites se encontrara, seja no céu ou na terra, nas fugas repentinas, nada impedia os amantes de se amarem. Todos já sabiam desse romance, Lua, Mãe Sol, homem-velho, Anta e a Ema. Lua até mesmo percebeu que a flor não estava em busca de sua antiga amada, mas sim da irmã dela. E logo fez as pazes com Aguapé. A Anta e a Ema, por ora não se importavam com o romance que lá de cima espiavam, mas o homem-velho não tolerava de jeito algum. A flor Aguapé decidiu fazer uma semente de sua própria essência para presentear a estrela. Lua até mesmo animou-se e brilhou intensamente neste dia. “Ela irá simplesmente amar mais que tudo, minha amiga!” Mas Lua e nem Aguapé imaginara. Nesse dia, estrela não aparecera.
Ao alvorecer da velha Mãe Sol, Aguapé encontrava-se novamente desolada, murcha, em prantos fungos. Quase sem cor, mas ainda com seu aroma de amor. Mãe Sol pergunta-lhe o que acontecera de tão trágico que explicasse o seu estado. “Minha velha Mãe Sol, eu estava a viver a mais bela forma de amar que já pude provar. Em harmonia de danças estelares, na companhia de tão belas formas de vida, vivíamos nosso romance de fios cósmicos entrelaçados. Mas ela me disse que não poderia mais voltar a me ver, que não poderíamos ao menos uma conversa de olhares estelares, ter. Eu a preparei minha única e primeira semente, feita de minha própria essência, para dá-lhe, mas ela nem ao menos aparecera […]”. Mãe Sol, a mais sábia, rapidamente compreendeu. E na tentativa de consolá-la: “Minha flor, de meu jardim. Há forças que impedem o que mais se deseja na vida perene. Resta-lhe saber qual força será maior para decidir o rumo das danças eternas, que formam galáxias. Pegue todas suas lembranças que criou com sua amada, e sobre teu âmago, guarde-as. Pois, você é uma flor, e ela uma estrela, diante deste imenso obstáculo que é o seu caso de amor, você precisará nascer novamente”. Aguapé, por possuir a força vitalícia propriamente dita, sendo em completude, o amor, não pode enxergar o que realmente a Mãe Sol queria dizer, não enxergou que aquele romance era plenamente impossível de acontecer, mas sim, que o que lhe precisava fazer para realizar o amor com sua amada era simplesmente… Morrer. E assim o fez tentar. Pediu-lhe que todos que a amavam e a rodeavam ajudassem-na. Gastando sua própria energia vitalícia, cresceu, subia e subia em uma única haste, aos céus. Ao ver a façanha da flor, a Anta, a Ema e o homem-velho passaram a tentar impedi-la. A Ema secava os rios que lhe hidratavam, a Anta nublava os céus para que não tivesse tanta luz da Mãe-Sol, e o homem-velho pedia aos trovões que lançassem relâmpagos para derrubá-la. Mas a cada relâmpago que a derrubava, ela se levantava. A cada vez que caía, perante a seca, ela se reerguia. E a cada tortura que a enfraquecia, a flor incansável, se fortalecia. Durante muito tempo subiu e subiu, até alcançar o céu mais profundo. Lá, ela viu. De um resplandecer sem igual, via sua amada tão perto como nunca antes. A estrela se surpreendeu e indagou fortemente: “Por que você veio?! Não sabes onde está?! Queres se matar? Não faça isso com você. Não queria dizer que a amo, mas eu a amo, e não posso mais fazer isso com você. Você sabe muito bem o que é melhor para si!”. Mas Aguapé não parava de subir, e subir. Ao mais próximo que pode chegar da estrela, abriu completamente suas pétalas, mostrando novamente a forma completa de sua beleza, essencialmente sua forma mais perfeita, que não era mais vista há tempos. A flor revelara seu segredo e seu objetivo. “Antes que eu pereça, deixo tudo para trás, beije-me uma última vez, e eu morrerei em paz…”. Seu pedido é realizado com firmeza, a estrela toma a forma de um pássaro que plana pelo espaço, e o beija realizando a exuberante forma do amor em troca mútua.
Do âmago da flor, surge, a semente. Aquela cujo fora preparada para presentear sua amada. Em estupenda forma renovada. A singela semente era agora uma joia de brilho infinito. Que explode no espaço em cores e em forma de suas pétalas. Da explosão, caem da imensidão pequenas sementes que vão parar depois de muito tempo, em terra. Sem mais forças, a haste de Aguapé não aguentara mais as torturas incessantes, e acaba por secar. Suas exuberantes pétalas, murcham e também secam, é chegada o fim. Finalmente o objetivo da flor se completa. As sementes caídas em terra dão vida a flores totalmente distintas. Em diversas cores, cujo cabia a estas novas flores compartilhar com os outros seres o ensinamento de amar e o de transformar-se.
Da semente, formou-se o núcleo vivo radiante. Com o mais forte desejo de amar, Aguapé não era mais flor aquática ou terrestre, plantou-se nos céus e tornou-se propriamente uma flor estelar.
Por: Daniel Lira, também conhecido como “Lira da Floresta”.
Daniel é discente do curso de Ciências Sociais (UFAM), no meio artístico/literário escreve contos, crônicas, poemas, poesias, e possui alguns romances em produção.