Sobre contar histórias

Universos Narrativos
Universos Narrativos
3 min readJul 18, 2019

Ao compartilharmos nossas vivências em diversos suportes materiais, múltiplas linguagens e inúmeros formatos, vamos construindo os enredos da nossa cultura. Nesse percurso surgem variados modos de contação; alguns nos quais o próprio ato de contar, em suas soluções (eu poderia dizer poções) de encantamento narrativo e performático, nos fazem refletir sobre a condição humana assim compilada e expressa em sua linha espaço-temporal de vida e morte.

No desenrolar desses temas podemos encontrar histórias ancestrais sob a guarda de mitos, lendas, contos populares, e performances teatrais. Podemos ainda perceber com mais acuidade o nosso cotidiano refletido em gêneros literários diversos, tais como o conto e a crônica, ou ainda experimentar a imaginação na elaboração de visualidades gráficas, como as HQs ou mesmo a criação de audiovisualidades contemporâneas em estratégias de comunicação transmídia. Mistura de linguagens em ato contínuo de convergência, em apropriação sinestésica uns dos outros.

A narrativa árabe das Mil e uma Noites, por exemplo, materializa em texto-livro esta nossa vocação para o desfiar de enredos, a composição de tramas, e a construção de personagens. Sherazade, assegura a continuidade de sua existência quando noite após noite convence Shariyar que a próxima história será ainda mais admirável e espantosa, instigando no príncipe o desejo de saber o que acontece em seguida quando este lhe concede um pouco mais de tempo.

Uma história que de boca em boca passa aos traços delineados no papel, cuja capilaridade, em diálogo com outros autores, também seus disseminadores, transforma-se em uma espiral de sentidos múltiplos. Para o escritor argentino Jorge Luis Borges, as várias traduções mileumanoitescas adquirem contornos de um livro infinito, e delas se tiram símbolos-chave ao seu projeto literário. Já nas reflexões do filósofo Michel Foucault a obra remete à significação do apagamento do próprio sujeito autoral em favor do discurso, em favor da linguagem.

Em nossa cultura audiovisual, filmes adaptados de literatura distópica, como Farenheit 451, também nos resgatam para a relevância das narrativas quando, ao final, surgem pessoas que se tornam voluntariamente livros ambulantes. Enquanto histórias vivas, essas pessoas-livro passeiam por um jardim/paisagem, impregnando-o de memórias em movimento, de desejos em latência, nos falando de um futuro que não deve ser esquecido ou de um passado que se possa vir a ter — assim mesmo — como um paradoxo. Corpo e voz, como fenômeno de tradução intersemiótica, na grande tela do cinema.

Narrar e ser narrado fez e faz emergir questões fundamentais para a compreensão de nossas subjetividades, alteridades, ideias e ideais, memória e imaginário. Relaciona-se ao conhecimento de si e do ambiente em que habitamos. Refere-se ainda às nossas situações de incertezas e falibilidades e, principalmente, ao nosso desejo de continuar no tempo presente mesmo quando somos ausência. Por isso criamos ficção e não-ficção, e materializamos diversas outras possibilidades de constituir existentes.

Portanto, ao criar e contar histórias, proliferamos continuidades e também transformações, nas quais se pode estender, amplificar, ou fazer desabar, despedaçar e reconstruir novas experiências. Desencadeamos processos de acionamento, replicação e/ou recodificação, que às vezes apenas fortalecem uma teia de significados, mas em outras constroem novas teias, gerando caminhos inesperados, improváveis, contudo realmente possíveis. E isso basta como garantia de que a vida sempre vai insistir em continuar.

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