Do lixo dos outros à própria vida

Juan Link
Universus Jornalismo UniRitter
9 min readJun 11, 2021

Reportagem conta história de homem que saiu de Carazinho, a 289 quilômetros de Porto Alegre, em busca de oportunidade de trabalho na capital e encontrou na reciclagem uma forma de sobrevivência.

Sem trabalho em Carazinho (RS), Carlos Ribas, de 38 anos, viu sua vida mudar nas ruas da região central de Porto Alegre — Crédito: Juan Link

Por Juan Link e William Cardoso

Com o peito encostado em uma barra de ferro, segura pelas mãos, espaçadamente, para empurrar o carrinho pesado que carrega os mais de 200 quilos de resíduos recicláveis arrecadados, em cerca de 12 quilômetros percorridos diariamente, o catador Carlos Ribas, 38 anos, traz a força da massa trabalhadora junto de um sorriso estampado no rosto. Vindo do interior para tentar a vida na capital gaúcha, embarcou em Carazinho apenas com o dinheiro da passagem no bolso e as experiências de pintor e trabalhador de serviços gerais. Com o certificado de ensino médio na bagagem, chegou no fim de 2018 atrás de oportunidades que não encontrava mais onde vivia. Passou dias perambulando pela Zona Norte de Porto Alegre. Dormia em um albergue no bairro Navegantes e conviveu, por um curto período de tempo, com a fome.

Embora tenha passado maus bocados logo que chegou em Porto Alegre, aos poucos o destino foi mudando. O trabalho cansativo de catador tem pago o aluguel que garante a Ribas as noites de sono, momentos de descanso, além do sustento do lar onde vive com sua esposa Eliana Maria Pascoal Vieira, 43 anos. A cada pausa durante uma manhã ensolarada do mês de março, o trabalhador limpa na camisa a dignidade que carrega em seu suor. Trabalhando sem máscara, diz ter medo da covid-19. “Como eu trabalho sozinho, não vejo problema. Se eu disser que me higienizo a cada parada vou estar mentindo. Até porque, não faz sentido eu me higienizar, sendo que vou por a mão no lixo daqui a pouco de novo, né?!. Mas, quando chego em casa, faço a minha higiene completa e não toco mais em nenhum material. Tenho muito medo”, conta o catador, já colocando a máscara para conversar com a reportagem.

A exemplo de todos os setores econômicos, a pandemia também impactou a vida do reciclador. No entanto, de uma maneira diferente. “Vou te dizer que pra mim até melhorou. Como as pessoas estão mais em casa, acabam fazendo o que faziam na rua, mas dentro de casa e fazendo o descarte correto”, destaca. O crescimento no número de resíduos coletados refletiu em aumento de, aproximadamente, 30% na renda do trabalhador. “Antes da pandemia eu ganhava, mais ou menos, R$ 70,00 por dia, às vezes R$ 80,00. Hoje eu ganho R$ 100,00, mas de vez em quando consigo fazer R$ 150,00. Depende do dia”, pontua. Os valores são levantados em uma jornada de horário comercial, que vai das 8h até às 17h, com cerca de uma hora de intervalo para o almoço. “A forma como eu trabalho me permite fazer um horário mais tranquilo”, ressalta.

Companheira de jornada

Apesar de ter passado longos anos em Carazinho, município com pouco mais de 62 mil habitantes a cerca de 289 quilômetros da Capital, Carlos Ribas já conhecia a cidade e já havia se encantado nas suas viagens anteriores. Mas lembra que foi difícil sair da cidade natal. “Não consegui emprego por lá, mas arrisquei tudo para buscar uma vida melhor na cidade grande”, lembra. Deixando para trás os pais e cinco irmãos, de cara, chegando em Porto Alegre, conheceu uma mulher pela qual seu coração bateu mais forte.

Eliana Maria Pascoal Vieira e Carlos Ribas se encontraram em uma manhã nos meses iniciais de 2019 e nunca mais se desgrudaram. Mas Eliana não mudou a vida de Ribas apenas no amor, mas na profissão. “Logo que cheguei aqui ela me comentou que eu poderia ganhar dinheiro trabalhando como catador”, recorda. A companheira diz que não lembra a última vez que ambos discutiram. “Ele é um bom homem, uma pessoa calma e de boa convivência”, relata.

Apesar da vontade, o casal não tem filhos. Eliane, ainda jovem, fez uma laqueadura — método que impede a fecundação e o desenvolvimento da gravidez — logo após ter seus dois filhos com um outro homem que conviveu antes de conhecer Carlos. “Tenho o filho Giovane Vieira Luis, de 25 anos, e a Caroline Vieira Luis, 24 anos, com quem sei que posso sempre contar. Mas sinto falta de uma criança correndo pela casa”, conta. Para tentar amenizar a angústia, o casal tem um amigo de quatro patas que alegra o lar, depois de um dia corrido pelas ruas da Capital.

O caso vive de aluguel em um prédio da avenida Voluntários da Pátria, na entrada de Porto Alegre. “Me acordo todos os dias com o objetivo de ter a minha casa própria e viver em paz com a minha esposa. Eu tenho orgulho do que eu faço. Eu estou trabalhando. Posso ter oportunidades de trabalho no futuro, mas vivo a minha realidade”, declara Ribas.

Dona de casa, Eliane Vieira acompanha o marido na jornada quando “o trabalho aperta” — Crédito: Juan Link
Dona de casa, Eliane Vieira acompanha o marido na jornada quando “o trabalho aperta” — Crédito: Juan Link

Rede de contatos

De acordo com a técnica de proteção social da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) Patrícia Mônaco, há dois perfis de catadores. “O catador profissional tem instrumentos de trabalho mais qualificados, como carrinho. Faz da ‘catação’ sua profissão. Diferente da população em situação de rua, que recicla para sobreviver”, define. Carlos Ribas encaixa-se no primeiro perfil. Ele contou que tem parceria com uma sucataria do Centro de Porto Alegre, onde ganha o carrinho para trabalhar com a condição de vender os resíduos arrecadados somente para essa empresa. “A única contrapartida é a confiança de que só vou vender pra eles (donos da sucataria). Só isso. Não tem desconto no valor que ganho, nem nada”, salienta.

Confiança e parceria que vão além da sucataria. Conforme o tempo passou o reciclador foi ficando conhecido na região central da capital gaúcha. A partir disso, iniciou uma rede de contatos com condomínios, que facilitou o trabalho. “Hoje eu tenho parceria com mais de 30 condomínios residenciais e comércios, onde passo semanalmente para fazer a coleta”, relata.

O trabalhador conta que, conforme ia passando com frequência nos locais, começou a ser chamado por síndicos e zeladores dos prédios, formando assim sua clientela. “Eu faço sempre a mesma rota. Eles me viam passar ali todo dia. Eles têm que sentir confiança na gente. Precisam ver que a gente é sério. Não dá pra chegar mal arrumado, sujo, fedendo, com o cabelo bagunçado, falando gíria. Tem que passar credibilidade para ganhar a confiança do pessoal”, explica. Ribas criou um grupo no WhatsApp com todos os zeladores, síndicos e responsáveis pelos prédios onde passa. “É como se fosse a minha agenda. É a minha forma de organizar o trabalho”.

Carlos Ribas e o amigo Vladimir Ferreira, responsável por prédio residencial localizado na rua Demétrio Ribeiro, no Centro de Porto Alegre — Crédito: Juan Link

Carrinheiros e catadores Segundo dados de 2019 da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, cerca de duas mil pessoas atuam como carrinheiros e catadores na capital. Desses, 927 já estavam cadastrados pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e com algum tipo de auxílio social; enquanto 720 famílias recebiam o Bolsa Família ou alguma outra ajuda do governo federal. Nenhum destes auxílios são voltados diretamente a recicladores.

Comunidade consciente

Embora não auxilie diretamente o trabalho de catadores no bairro, a Associação de Moradores da Cidade Baixa orienta a comunidade no descarte correto de resíduos. Através do blog Vizinhança na Calçada, gerido por Carla Santos, jornalista e uma das responsáveis pela associação, é realizado um trabalho de conscientização para o descarte de lixo. Em um grupo de WhatsApp, alguns moradores do bairro deixam suas reclamações quanto ao descarte incorreto. “Teve um vizinho que descartou itens de informática na calçada. Moradores o avisaram, ele não tomou providências, outra moradora denunciou e ele foi multado”, exemplifica Carla.

Perguntado se há algum auxílio quanto a separação dos resíduos que recebe dos condomínios, Ribas conta que houve uma grande melhora desde quando começou no trabalho de catador. Diz que os prédios grandes contam com containers de separação entre lixo seco e orgânico. “O pessoal está mais consciente e tem me ajudado bastante”, destaca.

A consultora da Associação dos Comerciantes da Cidade Baixa Maria Isabel Nehme explica que a associação estimula a orientação e a adoção do Programa de alimentos seguros (PAS) — programa desenvolvido em parceria com o Senac e Sebrae. O projeto, segundo ela, tem como alguns de seus principais tópicos a manipulação segura dos alimentos e também a separação e o descarte correto de resíduos.

Além desse projeto, a consultora argumenta que em 2019 foi criada um outro programa em parceria com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), chamado de Descarte consciente dos resíduos sólidos, que buscava trabalhar a educação, a separação adequada e o descarte em um ponto de venda (PDV). “Este resíduo é descartado pelas empresas em local adequado e recolhido pelo DMLU para destinação aos galpões de reciclagem da cidade. Porém, este projeto atualmente está parado em função da pandemia, pois as empresas em sua grande maioria estão com suas atividades suspensas”, alerta a profissional.

Laços de amizade

A vida de reciclador não é apenas por necessidade. Ribas relembra que já teve outras oportunidades de trabalho, mas preferiu seguir como está. “Eu estou acostumado a ter meu dinheiro todo dia. Acostumei a chegar no fim de semana e poder fazer o que tenho vontade”, salienta. No entanto, a remuneração não foi o ponto principal para não abandonar a vida de reciclador. “Não é ‘pelo ganho’, mas pelas amizades que eu já tenho. Eu construí muita amizade nesse meio”, pontua.

O catador destaca que, através deste trabalho, criou laços de amizade com profissionais de outras áreas. No entanto, diz que há muito preconceito com sua atividade. “Tem muito mais gente pra julgar do que ajudar. Muitas vezes me oferecem comida e quando digo que já comi, perguntam como já comi, se estou na rua”, revela. Além disso, explica que, ao contar um pouco da sua história e falar de sua estrutura, muitas pessoas não acreditam. “As pessoas pensam que todo mundo que puxa um carrinho é usuário de droga”, lamenta.

Ribas conta que já teve a chance de voltar para o interior do estado, mas que preferiu seguir como reciclador na capital. “Por enquanto a vida tá boa por aqui”. Afirma sentir muita saudade da família que permaneceu em Carazinho, mas que, por conta da pandemia, fica inviável fazer uma visita. “Eu e minha esposa queríamos ir visitá-los, até porque ela não conhece eles”, comenta. O trabalhador diz que mantém contato com os parentes via WhatsApp e ligações.

A fala sempre empolgante despertou na reportagem a curiosidade sobre como se sente realizando este trabalho, já que parece muito feliz. Em um tom tranquilo e com os olhos alegres que indicavam um sorriso por debaixo da máscara: “Essa é a minha forma de sobreviver, se eu reclamar, não vai adiantar. Eu tenho que correr de trás”.

Ao embarcar no ônibus em Carazinho tendo Porto Alegre como destino, o então desempregado vinha à capital apenas em busca de um trabalho. Após encarar diversas dificuldades, encontrou sua esposa. Eliane lhe indicou o meio de sustento que hoje garante a vida do casal. Carlos está longe do luxo, mas encontrou no lixo sua vida.

Sistema sucateado

Mas qual a importância de catadores como Carlos para o sistema sanitário de Porto Alegre? De acordo com o engenheiro agrônomo e vice-presidente de planejamento e finanças da Associação Interamericana de Engenharia Sanitária e Ambiental, Darci Campani, os catadores são um dos principais responsáveis por desafogar o sistema.

Segundo ele, a prefeitura da Capital foi deixando de investir ao longo dos anos no lixo da cidade, muito por conta de novas gestões municipais e falta de investimentos. “Nós já tivemos políticas bem claras quando o governo de Olívio Dutra tomou posse, lá em 1989. Implantamos a coleta seletiva no ano de 1990”, conta.

O especialista relata que, na época, existia um fórum mensal, onde o grupo ligado ao governo, pessoas ligadas ao movimento sanitarista, como ele e os catadores, se reuniam para debater a política do lixo. “A política era essa: fazer mais galpões de reciclagem e levar essas pessoas que cantavam para dentro desses locais. Ou seja, ao invés da pessoa ficar catando lixos nas ruas, eles faziam o trabalho de triagem próximo de sua casa com um galpão construído pela Prefeitura”, explica.

Segundo Campani, em 2002, ano em que deixou o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), eram coletadas 70 toneladas de lixo por mês, com uma coleta por semana. Conta que a gestão seguinte passou a fazer duas coletas por semana e arrecadavam 100 toneladas de lixo mensalmente. “Ou seja, tinha o dobro do gasto, para fazer a coleta, mas não tinha o dobro de eficiência para fazer a coleta”, ressalta.

De acordo com o DMLU, o departamento recolhe nas residências, com a coleta seletiva, cerca de 1126 toneladas de lixo diariamente. A reportagem calcula que a capital produz 31.528 toneladas de lixo mensais. Quase 20 anos após a saída de Campani do DMLU, os números de coleta de lixo caíram mais que o dobro.

A reportagem não encontrou números relacionados à população da capital no ano de 2002. No entanto, o Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2000, a população de Porto Alegre era de 1.360.033 habitantes. A última estimativa populacional da capital gaúcha, divulgada no ano passado pelo IBGE, aponta que Porto Alegre conta com 1.488.252. Ou seja: são quase 130 mil habitantes a mais, para mais 35 toneladas mensais de lixo arrecadados a menos.

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