Há vida depois do purgatório?

Nicoli Silveira
Universus Jornalismo UniRitter
18 min readJun 15, 2021

Ex-detentos lutam por reinserção na sociedade

Domenico di Michelino (1417–1491), La Divina Commedia di Dante. Essa imagem está sob domínio público
Domenico di Michelino (1417–1491), La Divina Commedia di Dante. Essa imagem está sob domínio público

Qual é a diferença do purgatório para o inferno? Na verdade, é bem simples distingui-los, um corrige, o outro castiga. Dante Alighieri, poeta florentino do século XIV, imaginou esses dois locais em sua obra A Divina Comédia, escrita entre 1304–1321. No trabalho de Alighieri, os feitos terrestres são os critérios que definem para qual lugar a pessoa será destinada após a morte, tudo depende da quantidade ou intensidade dos pecados. Existem uma variedade de delitos, uns terríveis, outros nem tanto e alguns mais brandos. A punição quase sempre é uma consequência desses atos, porém, há aquelas que duram até o fim e geram mais pecados. Rodrigo Rodrigues Batista foi um pecador que esteve no inferno, foi para o purgatório e teve correção, mas ainda não lhe foi entregue o perdão por completo.

Inserção na vida pecaminosa

Em Encruzilhada do Sul, aos 15 anos, começou no crime por influência de seus primos. Um deles fazia parte de um grupo onde todos eram usuários de narcóticos. Eram filhos de pessoas importantes na região, como fazendeiros e advogados. Rodrigo viu ali uma fonte de renda fácil. Ele ia até a Vila Maria da Conceição, na zona leste de Porto Alegre, buscar a “Viviane”, uma cocaína que só havia lá, e revendia no interior. “O tráfico naquela época não era faccionado. Até 2006, qualquer um podia vender drogas”, explicou Batista.

Durante a juventude, traficar pareceu um caminho interessante, talvez empolgante. Até que surgiu outra atividade, bastante lucrativa, o assalto e roubo de veículos. Foi quando se mudou para a região do Vale dos Sinos, tentando fazer uma fuga geográfica. Ele se inseriu mais no meio em que já estava e se tornou líder de uma quadrilha. “Eu tinha o contato de todos os desmanches do estado, conhecia muitos ladrões. Eu montei um e os caras faziam a mão para mim. Mas todos foram presos e restou eu”, relembrou.

Entrada no inferno

Popularmente, há a crença de que a criminalidade acaba de duas formas: cadeia ou morte. Quase sempre, acontece os dois. Rodrigo Batista, o ladrão de veículos, foi preso quatro vezes, a última teve a maior pena. Ele acreditava que com ele as coisas seriam diferentes, porém, não foram. “Uma certeza que se tem, no mundo do crime, é que se tu sair da cadeia, tu vai voltar. Às vezes tu pensa que é muito bom e que não vai ser tão fácil, mas foi”, disse.

Após sair a sentença, ele foi levado para a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ). O Rio Grande do Sul ainda não possui presídios federais. Por essa razão, todas as cadeias gaúchas são administradas pelo próprio governo estadual, por meio da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), subordinada à Secretaria da Administração Penitenciária (Seapen). No último levantamento, feito em 2020 pela Susepe, 41.199 pessoas cumpriam pena no sistema prisional gaúcho.

Penitenciária Estadual do Jacuí, em Charqueadas, considerado o pior presídio do interior do Rio Grande do Sul — Crédito: Divulgação / Susepe

De acordo com o primeiro artigo da Lei de Execução Penal (LEP), “execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Isso quer dizer que o Estado tem como obrigação legal proporcionar aos presos condições para uma reinserção social efetiva.

Para o Procurador de Justiça Gilmar Bortolotto, a distância entre o cumprimento da LEP e a realidade prática é muito grande. “A Lei de Execuções é uma lei bastante avançada, mas quando chega o momento de concretizar, de transformar em políticas públicas, o Estado falha muito, há muitos anos. É por isso que o sistema não funciona e tem altas taxas de reincidência. É caro para fazer um trabalho ruim”, constata.

A falta de atuação efetiva do Estado para administrar as penitenciárias deu lugar para outros comandarem. Quem domina as cadeias no Rio Grande do Sul, e no Brasil inteiro, são as facções. Lá dentro quem faz as leis são líderes de organizações criminosas. Aprender a conviver com o crime dentro dos presídios foi a opção escolhida pelo Poder Público para evitar tragédias. Essa escolha possibilitou que o tráfico recrutasse mão de obra. O cárcere contém o criminoso, entretanto, não o impede de cometer crimes na rua. “Todas as políticas públicas que o Estado não fomenta, as facções compreenderam isso e tentam preencher esse espaço. Eles fornecem coisas básicas aos presos, além do endividamento, isso gera um sentimento de gratidão. Depois, nós sabemos o que acontece na saída”, explicou Bortolotto.

O submundo do sistema penitenciário

É natural que o inferno seja gerido pelos demônios, porém, tudo é extremamente organizado por eles de forma que o mais forte possa subjugar o mais fraco. O primeiro a ser dominado é o dependente químico. Rodrigo Batista relata que o usuário de crack, dentro da cadeia, se assemelha a um zumbi, não há nada que possa ser feito por ele. “Eu morava em uma galeria que tinha 250 presos. Desses, dá para contar 50 que tinham uma vida tranquila lá dentro e 200 na pior situação possível”, recorda.

A superlotação das cadeias no Rio Grande do Sul é um problema antigo e conhecido. Segundo Marcos Rolim, mestre e doutor em Sociologia pela UFRGS, a maioria dos presos cometeu delitos nas ruas, como furtos, assaltos e tráfico. Esses crimes são cunhados com o termo ‘’flagrante’’, conceito do judiciário que significa a captura possível de um suspeito até 24 horas após o fato criminoso. Quem é responsável por efetuar prisões desse tipo é a Brigada Militar. As polícias militares são a maior força policial do país e realiza mais de 95% das prisões no Brasil. Crimes mais graves, como estupro e assassinato, requerem investigação, sendo assim, fica a cargo da Polícia Civil. “O sistema opera seletivamente, isso começa pela estrutura do nosso modelo de polícia”, explicou Rolim.

O sociólogo ainda destaca que, em quase todas as penitenciárias brasileiras, detentos ficam confinados nas próprias galerias e não em celas. Isso ocorre para que seja possível aproveitar o espaço dos corredores. Para evitar massacres, cada apenado que entra na cadeia é alocado na galeria pertencente a sua facção criminosa. Aqueles que não pertencem a nenhuma, acabam sendo recrutados por estarem naquele ambiente. “Na prática, o sistema funciona como uma espécie de parceria público-privada entre o Estado e as facções”, comparou Marcos Rolim.

Sob o domínio das organizações criminosas, as cadeias possuem regras criadas pelos próprios líderes das facções. Rodrigo Batista revela que uma delas é a proibição de fugas. Ele conta que até o ano 2000, o preso entrava na galeria e treinava para ter preparo físico, e, com isso, conseguir fugir. Depois que traficantes passaram a comandar o sistema carcerário, isso mudou. Se alguém escapa, ou apenas planeja, essa pessoa é morta. A razão é o desfalque nas chamadas “prefeituras” compostas pelo plantão, prefeito, vice-prefeito, mestre da limpeza, mestre das panelas, entre outros. “Se um preso foge da galeria, todos aqueles que estão ligados são ‘viajados’, eles pagam um castigo. Normalmente, pagamos o castigo na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Lá ninguém gosta, porque é um por cela, tem 10 minutos para o banho quente, a água é fracionada para não fazerem ‘piscininha’, porque no verão é muito quente”, lembrou Batista. Ele ainda relata que conheceu um preso que tentou sair e foi marcado com um “fogão em espiral” nas costas.

Assista abaixo ao documentário “Central: O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil” e entenda mais sobre o assunto.

Começo da mudança

Dos quatro anos em que esteve na Penitenciária Estadual do Jacuí, Rodrigo Batista não esquece da primeira vez que começou a dizer não lá dentro, pois quando isso acontece a convivência com os demais passa a ser mais complicada. Batista foi líder de uma quadrilha por muitos anos, isso o ajudou a ganhar o respeito entre os outros detentos. “Como nunca trabalhei para nenhuma facção, eu tinha o livre acesso em qualquer lugar. Mas quando tu diz ‘não’, as pessoas começam a te olhar de uma forma diferente”, disse ele.

Essa negativa gerou muitos questionamentos entre os colegas apenados. Alguns pensaram que Batista possuía uma quantidade significativa de dinheiro. Na verdade, não. Ele afirmou que o crime tirou a preocupação com as finanças, mas não lhe trouxe paz de espírito. “Eu descobri que o dinheiro não é a solução dos problemas”, ressalta.

Família, esse foi o seu real motivo. Batista via sua esposa, Gisele Batista, na fila durante os dias de visitas, muitas vezes ela não contava o que acontecia. Contudo, ele sabia que Gisele tentava ser forte. Eles têm um filho de 16 anos, Erick Batista. No dia dos pais, Rodrigo ligou para Gisele e ela lhe respondeu dizendo que não tinha vontade de fazer nenhuma comemoração porque o pai do seu filho não estava ali. “Aquilo me marcou muito e eu disse ‘vou deixar de ser egoísta’. Foi quando eu tomei a decisão de descer para a galeria dos irmãos”, relatou.

A ida para a parte evangélica da prisão não foi fácil. Nessa galeria não há separação por facções. Ali se encontram condenados por diversos crimes, incluindo os de cunho sexual. Rodrigo Batista teve uma “vida correta” dentro do crime, para qualquer outro descer para a galeria dos irmãos seria um problema. Ele apenas perdeu a voz lá dentro, o que pode ser difícil para alguém com uma pena muito longa, mas não chega a ser fatal. Contudo, permanecer no erro não era mais uma alternativa. Se Batista pudesse dar um conselho aos amigos que ainda estão presos, seria para largar essa vida. Isso porque, segundo ele, um dia você pode estar comendo com um amigo, e no outro terá que matá-lo. “Um amigo meu confraternizou com outros em uma festa, depois ele ganhou liberdade e mataram ele no semiaberto. Eu conhecia os filhos dele, a esposa e toda a história dele. Também conhecia os caras que o assassinaram, foram os que ele mais ajudou. Al, eu vi que não pertencia mais àquele mundo”.

Pecan dos pecados

Logo depois, Rodrigo foi transferido para a Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan), que, de acordo com ele, é a pior do estado. Ele até cita um apelido, dado ao local, “Pecan dos pecados”. Batista afirma que o preso sofre, a própria visita sofre e comida só é consumida para sobreviver. “Lá, o filho chora e a mãe não vê”, disse.

Ainda no outro presídio, Batista havia participado de uma palestra sobre a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac). Foi dito a ele que esse era o lugar para quem desejava mudar de vida, o que era exatamente o que Rodrigo queria. Então, escreveu uma carta pedindo para participar e entregou nas mãos da palestrante e voluntária do projeto, Patrícia Couto.

Rodrigo queria voltar para a PEJ, mas não era possível. A situação ficou pior com a chegada da pandemia de Covid-19, pois foi proibida a entrada de pessoas de fora. Porém, mesmo com as restrições, ele recebeu visitas inesperadas: Joel Pedroso de Moura, encarregado de segurança da Apac, Célia Amaral, presidente da Apac, e o Procurador de Justiça Gilmar Bortolotto. Primeiramente, foi dito a ele que quem o estava convocando era o Ministério Público, o que normalmente não significa coisa boa para um detento. “Geralmente quer dizer mais cadeia, não é nada bom”, lembrou Batista.

Joel, o encarregado de segurança

Dessa vez não era esse o real significado daquele chamado, e sim uma nova possibilidade. Joel Pedroso de Moura já é um antigo conhecido seu, os dois dividiram cela e prato de comida na PEJ, depois Joel entrou em condicional e Rodrigo Batista acabou não tendo mais notícias dele até aquele momento.

Rodrigo Rodrigues Batista e Joel Pedroso Moura já na Apac — Crédito: Divulgação

Seu Joel, como é conhecido, tem 44 anos. Assim como Batista, ele também esteve envolvido com tráfico de drogas. Começou na vida do crime aos 18 anos, na região do Vale dos Sinos. Joel realizou muitas fugas do sistema prisional até que, em 2014, ele cumpriu sua pena na galeria dos irmãos, onde acabou se convertendo. Os companheiros de quadrilha foram soltos, mas ele continuou preso. Na época, não entendia o porquê de ser o único a permanecer na prisão, mas agora ele entende. “Deus já estava preparando e limpando o caminho para mim, preparando uma nova história, uma nova vida”, disse Joel.

Em 2018, conseguiu a condicional. Não tinha onde morar, pois sua esposa não o aceitou de volta por ele não querer mais fazer parte da criminalidade. Eu Joel tinha amigos da igreja e foi morar na casa de um deles. Conseguiu emprego em uma reciclagem de pneus e ficou ali até que recebeu uma ligação de Gilmar Bortolotto, coordenador do Núcleo de Apoio à Fiscalização dos Presídios do MPRS, o convidando para fazer parte de um projeto na cadeia. No primeiro momento, Moura ficou confuso. “Mas acabei de sair da cadeia, vou trabalhar em um presídio”, ponderou.

O Procurador de Justiça explicou um pouco por cima, mas disse que ele devia ver para entender. Então, Seu Joel foi até a Apac no bairro Partenon, em Porto Alegre. A Apac é uma associação, sem fins lucrativos, que se mantém através do fomento do estado do Rio Grande do Sul. O objetivo é recuperar presos para que possam voltar à sociedade, além de promover a humanização das cadeias. É um lugar onde não há guardas armados, os recuperandos (forma como chamam os detentos) ficam com as chaves, cada um possui uma cama, diversas atividades são feitas durante o dia, entre outras coisas que a diferencia do sistema comum.

No começo, o Governo do Estado ainda não direcionava recursos para manter a instituição. Por essa razão, Joel não seria pago. Era algo complicado para ele, pois tinha recém saído da cadeia e precisava se manter. Mas decidiu aceitar a função. “Aquilo me tocou no coração, mas até então eu não entendi o porquê. Eu disse que aceitava e trabalhei um tempo até o dia 1º de fevereiro de 2019, como voluntário, tendo uma ajuda do próprio bolso dele (Bortolotto) e do pessoal da direção”, relembrou.

Enquanto Joel de Moura atuava como inspetor, o encarregado pela segurança do projeto pediu para sair e o convidaram para assumir o cargo, mas ele negou. Achava muita responsabilidade para alguém que não tinha o segundo grau e não entendia de informática, não sabia ligar um computador ou mexer em um telefone. Isso porque na época do avanço da tecnologia ele estava preso. Entretanto, a direção da associação insistiu e ele acabou aceitando. Todas as inseguranças ficaram para trás. Ele está terminando o colégio e foi aprendendo a função com a própria equipe. “Agora já fazem dois anos e dois meses que estou nessa missão que eu digo que é uma obra de Deus’’, disse o encarregado de segurança.

Por dentro do purgatório

Apac é um lugar onde os apenados podem expiar seus pecados para vislumbrar um futuro. A razão é a metodologia da instituição, que diferentemente dos cárceres padrão, busca mostrar o valor que aquele ser humano tem, independentemente dos seus atos no passado. Foi isso que impressionou Célia Amaral, presidente da associação. Ela nunca compreendeu como o sistema esperava recuperar alguém apenas punindo, sem oferecer oportunidades. “A partir do momento que eu comecei a conviver com essa realidade, mudou tudo na minha vida. É como se eu tivesse bebido água da fonte que eu a vida toda quis beber. É mais ou menos isso”, relatou Célia.

Associação de Proteção e Assistência aos Condenados Apac — Crédito: Divulgação

O ambiente também é diferente. Existe um incentivo prático para que os recuperandos possam encontrar emprego depois de cumprir a pena. O compromisso da Apac é “matar” o criminoso e socorrer a sociedade. “Muitos pensam ‘matar o criminoso é matar uma pessoa’, não. Matar o criminoso é resgatar vidas, almas e fazer com que eles reconheçam os valores que eles têm, como eu reconheci os meus”, explicou Joel de Moura.

Esse processo é complicado, foi o que afirmou Rodrigo Batista. Apesar da condição estrutural, superior à do sistema comum, a Apac possui uma série de regras, como acordar todos os dias às 6h, socializar com os colegas, realizar faxinas e funções diversas. “Para entrar tem que querer muito mudar de vida”, reconhece Batista.

Célia Amaral explica que esse é um dos critérios para que um apenado possa fazer parte da Apac, ter a vontade de ser uma pessoa diferente, não mais atuar na criminalidade. A capacidade da organização em Porto Alegre é de 200 pessoas. Eles recebem uma lista de cartas, escritas pelos próprios presidiários ou familiares pedindo para cumprir a condenação na instituição. As solicitações são enviadas ao juiz que decidirá se aquele indivíduo pode ou não fazer parte. Depois, a direção da associação recebe outra lista e, por ordem cronológica e de acordo com o número de vagas disponíveis, entrevista os presos e as próprias famílias. “Chegamos lá, perguntamos se a pessoa ainda tem vontade de ir para a Apac, se ela sabe o que é a Apac, falamos um pouco sobre isso e entrevistamos os familiares, porque eles também têm que querer”, relata a presidente.

Do amor ninguém foge

Há recuperandos com diversos tempos de condenação, até 120 anos. Joel de Moua busca dar exemplo, pois ele, mesmo sendo encarregado de segurança, está sob condicional. Moura também demonstra que confia neles, um exemplo foi o momento em que entregou a chave da Apac para Rodrigo Batista. “Eu disse para ele: ‘se tu me larga essa chave em 2016, tu ia perder o emprego. Mas hoje não, porque eu realmente quero mudar’”, contou Batista.

Na Apac, cada recuperando possui uma cama para si. Periodicamente, há uma troca para que todos possam confraternizar com todos — Crédito: Divulgação

Outro critério para cumprir pena dentro do projeto é a família residir próxima a Apac. O motivo é que, segundo a metodologia da associação, a recuperação do indivíduo necessita da participação dos parentes próximos. Seu Joel Moura lembrou de um reencontro que teve a oportunidade de presenciar. Mãe e filho estavam há dez anos sem nenhum tipo de contato, até que o rapaz pediu para vê-la, o que foi providenciado pela associação. “Nós buscamos a mãe dele, fizemos a surpresa para o recuperando, ele não sabia, mas estava sempre pedindo para vê-la. Foi bem emocionante e a família voltou a acreditar”, disse Moura.

A Apac no Rio Grande do Sul ainda é muito nova, era apenas um projeto de Minas Gerais, até que em 2018 foi trazida para o estado gaúcho. Desde o início, houve desconfiança sobre a sua eficácia. Uma cadeia, sem polícia armada, sem grade e onde os presos possuem a chave, como o próprio Rodrigo Batista possuía, é de se gerar estranheza. Entretanto, há uma frase lá que talvez explique a razão para que a iniciativa dê certo: “Do amor, ninguém foge”.

Reinserção social na prática

Outra diferença entre a Apac e o sistema carcerário padrão é o investimento na reinserção social dos recuperandos. Para que isso ocorra, a educação e o trabalho são essenciais. A passagem pela prisão, mesmo que o preso tenha sido absolvido, gera uma marginalização perante a sociedade. Marcos Rolim destaca que toda prisão funciona como uma condenação perpétua, o que irá estimular a reincidência. O estigma para ex-detentos é muito forte e, muitas vezes, acaba sendo herdado por familiares. “Conheci muitos casos de mulheres que foram demitidas quando seus patrões descobriram que os maridos haviam sido presos”, relata o sociólogo.

O encarregado de segurança da Apac, Joel Pedroso Moura (à esquerda da foto), em uma palestra com seus recuperandos — Crédito Divulgação

A associação possui oficinas para o preparo desses indivíduos, através de parcerias. A direção da Apac já solicitou ao governo do estado a implementação de uma escola. Porém, ainda não obteve resposta. Por meio de um convênio com o Sesi, Senac e Sebrae, terá Educação de Jovens e Adultos (EJA) e módulos para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Também estão disponíveis computadores em que eles fazem cursos online, todos coordenados com software de controle. “Temos três recuperandos fazendo universidade, temos recuperandos fazendo cursos técnicos, temos recuperando que fez cursos de padeiro e confeiteiro e que já trabalha na rua com a questão de confeitaria e assim por diante. Mas ainda não temos essa estrutura para cuidar de todas as fases”, relatou a presidente Célia Amaral.

Políticas públicas para regressos, que saem do sistema ou que ainda estão sob condicional, no geral, não existem. Para Gilmar Bortolotto, o Estado falha nesse trabalho, entretanto, no crime sempre haverá oportunidades de emprego para ex-presidiários. “Essa oferta ele sempre vai receber, o que é improdutivo”, explicou o Procurador.

Como Rodrigo Batista viveu na realidade carcerária, ele tem um lugar de fala assertivo ao comentar sobre a negligência do Estado que ocorre dentro das cadeias gaúchas. “Muita gente precisaria só de uma oportunidade, sabia? Eu conheço amigos meus que estão puxando 30 anos e eles falavam para mim, ‘meu, só por trabalhar’. Conheci grandes assaltantes de banco da região que não querem mais. Porém, lá dentro (no sistema comum) não tem essa oportunidade”, lamenta Batista.

No entendimento de Marcos Rolim, um vínculo formal ao trabalho pode evitar inúmeras reincidências, assim como casamento, a paternidade, o alistamento militar, a conversão religiosa. “Há muitas evidências científicas encontradas em estudos longitudinais com egressos que mostram os fatores mais importantes para o processo conhecido na literatura especializada como ‘desistência criminal’”, informou o sociólogo.

Ainda existem aqueles que desejam permanecer no crime. Dentro dos presídios não é feito nenhum tipo de acompanhamento psicológico ou um trabalho de valorização da vida. Por esse motivo, o Procurador de Justiça afirma que não se pode ter essa lógica, de que apenas o trabalho irá recuperar essas pessoas. “Infelizmente, o que eu vi ao longo de todo esse tempo é que o sistema não é concebido para ajudar ninguém. Ele é concebido para conter mal e porcamente, é só”, relatou Bortolotto.

O abandono do Estado não é apenas no momento em que um indivíduo é preso. Se a falta de oportunidades para regressos os faz voltar à criminalidade, na juventude os faz começar no crime. As desigualdades sociais no Brasil são, em parte, um potente catalisador para que as pessoas se voltem a uma realidade violenta. Porém, outros fatores também contribuem para que isso ocorra, como negligência, maus tratos, abusos sexuais em crianças e evasão escolar. “Superar a desigualdade social é uma urgência e uma obrigação moral da nossa civilização. A redução do crime e da violência, entretanto, não será uma sobremesa a ser servida após o fim da desigualdade social. É possível e necessário reduzir o crime e a violência agora”, defendeu Rolim.

Em nota, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) afirmou que são proporcionados aos presos trabalhos nas cozinhas, limpeza e manutenção. Segundo a Susepe, essas atividades não apenas a reinserção, como também “à economicidade e à remissão da pena”. Sobre a educação dos apenados, a pasta relatou que é disponibilizado EJA e cursos de reciclagem para os interessados dentro do sistema carcerário.

A Susepe ainda explicou que não possuem dados sobre reinserção social de ex-detentos ou de reincidência criminal do Rio Grande do Sul. Marcos Rolim, mestre e doutor em Sociologia pela UFRGS, especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford (UK), também disse que não há números confiáveis que refletem a situação de regresso nos estados.

Esperança para o futuro

O trabalho de Joel Moura com os recuperandos da Apac é completamente o contrário de abandonar. Juntamente com sua equipe, o encarregado de segurança procura ajudar todos aqueles homens que chegam abalados fisicamente, emocionalmente e espiritualmente. Por isso os chamam de recuperandos, porque não é com o castigo que os fazem enxergar os erros do passado, para que não voltem a cometê-los. Mas com o real comprometimento em gerar uma transformação concreta em cada vida.

Rodrigo Rodrigues Batista, junto com sua esposa, Gisele Batista, e seu filho Erick Batista — Crédito: Arquivo Pessoal

Esse trabalho é para o bem da sociedade, o que inclui os detentos, pois eles também fazem parte dela, mesmo que a exclusão indique o contrário. “Eu digo para eles e para a minha equipe de inspetores de segurança que nós somos os pastores, aqui deixamos 99 ovelhas que já estão garantidas para ir atrás de uma que está perdida. Nós não podemos deixar que ninguém se perca, é a nossa responsabilidade, porque se algum deles sair daqui e voltar a cometer delitos, alguma coisa nós falhamos”, explicou Joel.

Rodrigo Batista disse que só terá certeza que foi recuperado quando já estiver velhinho, ao lado de sua esposa. Todos os dias ele luta para se manter firme. Com lágrimas nos olhos, contou que ainda está buscando um emprego, contudo, quando puxam a ficha de antecedentes, acabam o rejeitando. Batista não quis dizer os nomes, porém, ele lembra com tristeza os lugares que não o aceitaram. “Imagina, eu fui capa de um jornal conhecido no Vale dos Sinos, saiu até na TV. Ficou muito conhecido. Então, quando eu chego na empresa querendo trabalhar, ninguém vai acreditar”, lamentou.

Por meio da própria fé, Batista continua tentando. Ele tem o desejo de ajudar outros regressos que, assim como ele, querem vidas diferentes. Pois, acrescenta, é simples achar que bandido bom é bandido morto e não agir para recuperá-lo. “As pessoas que saem não querem mais o crime, querem apenas uma oportunidade. Pois se dessem para mim, eu jamais iria desperdiçar”, garantiu.

A única coisa que o impede de viver plenamente é o rótulo de ex-presidiário. No passado de crime, parecia mais fácil. Entretanto, ele já percebeu que não vale à pena. É no caminho difícil que Rodrigo Batista encontrou a paz. Antes dormia com uma pistola embaixo da cama. Agora, ele e a sua família possuem um ritual de todo sábado: colocar um colchão na sala e, juntos, ficarem ali. No tempo em que esteve na Apac, quando tinha a chave e a possibilidade de sair, foi neles que Rodrigo pensou e foi desse amor que ele escolheu não fugir. Sua luta sugere que a vida é possível após o purgatório.

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