Capitalismo ético e body positivity: uma difícil equação
Dando sequência ao artigo anterior, Alissa Mune trata da relação histórica entre a busca pelo prazer, os ideais de beleza feminino e como a indústria capitalista se apropriou de uma luta feminista em sua lógica de mercado.
Edição: Lidia Zuin
Assim como uma consequência da incessante luta por uma melhor qualidade de vida e bem estar, cada vez mais a publicidade tem sido inundada pelo olhar dos direitos humanos e do politicamente correto. Exemplos disso são as recorrentes desculpas públicas dadas por grandes marcas como a Skol, Dove, H&M e AMP que, após um histórico de anúncios machistas e racistas, fizeram questão de retificar suas ações. Devido a isso, acredita-se ser necessária uma completa revisão de como se comunicar com esse tipo específico de consumidor: o millennial.
Por outro lado, contudo, também os millennials têm sido culpados pelas mais recentes tragédias publicitárias devido ao seu recorte etário e cultural da sociedade contemporânea. Por causa deles, a indústria teve de adaptar seu conteúdo midiático e aprender a falar a língua da população jovem, que não aceita nenhum tipo de preconceito ao consumir propaganda.
E os dados de pesquisas mercadológicas comprovam a validade dessas requisições por mais diversidade na mídia. Como um bom exemplo disso está o pedido pela revisão do ideal de beleza feminino, o qual vinha sendo definido na comunicação a partir de traços muito específicos para se definir uma mulher como bonita ou feia. Não é nem necessário listá-los, todos já os conhecem: é o que a maioria de nós, mulheres, almeja atingir.
Tais traços são construções históricas e sociais, mutáveis ao longo do tempo. Os movimentos feministas no século XX abraçaram a pauta da estética como um posicionamento político, de modo a contrariar o padrão que sempre foi pré-definido de acordo com os contextos culturais e temporais. Daí as queimadas de sutiãs, o abandono das saias no vestuário comum e a contestação da depilação como status quo — todas ações bastante simbólicas para a época.
Após o movimento hippie e a segunda onda feminista, as pautas identitárias tomaram mais força e, de repente, ser mulher significava ter poder — apesar de esse poder ser fictício. Porém, entre 1960 e 1980 começaram a aparecer as primeiras propagandas do famoso girl power, desde cigarros (Virginia Slims) a Legos. A subversão dos valores tradicionais começava a ganhar espaço e as mulheres passavam a ter uma liberdade nunca antes experimentada.
Uma analogia possível e interessante de ser realizada é a do programa de TV Mundo Amish. Os Amish têm políticas muito restritas em relação a qualquer uso de tecnologia, vestuário e comportamento em suas pequenas cidades norte-americanas. É impensável para um Amish, por exemplo, fazer sexo fora do casamento, já que isso é punível pela comunidade. Do mesmo modo, também é estritamente proibido uma mulher Amish ter voz de decisão dentro do casamento.
No decorrer do tempo, porém, integrantes jovens de comunidades Amish renunciaram ao seu lugar na religião e até na própria família, assim mudando-se para as grandes cidades. O impacto da liberdade foi tão grande que comportamentos desviantes até mesmo para a sociedade moderna e capitalista começaram a ser adotados por essa nova geração. Isto é, esses filhos egressos passaram a ter hábitos como uso de drogas, vício em apostas, ninfomania e consumismo excessivo.
De forma semelhante, as mulheres, há pouco “libertas” pelas atividades das militantes feministas, passam também a compreender algo que lhes fora privado por muito tempo: o direito de sentir-se bem consigo mesma. Logo, também a publicidade acelerou em direção ao girl power, discurso que hoje retorna sob a forma da body positivity.
Assim, o conceito de body positivity invadiu as marcas de roupas mais famosas, como a C&A, que constantemente lança campanhas pregando o bem-estar feminino: você é linda do jeito que é. Mas mais do que isso, tais mensagens procuram ser um contramovimento ao padrão de beleza ao mesmo tempo em que também tornam regra se sentir bem e feliz.
Tais estratégias acabam por criar uma polarização antiparalela entre o antes e o depois, como se necessariamente um precisasse ter a intensidade do outro. O movimento é especialmente forte por conta do feminismo negro, que especialmente advoga contra a estética branca europeia e de feministas gordas, que buscam o fim da gordofobia.
É interessante observar que dentro do gênero mulheres, também existem vários recortes a serem feitos e que cada um dos grupos acaba por ressignificar os objetivos estéticos a serem atingidos. Nas comunidades trans, negra e gorda que existem dentro do gênero feminino, existem diferentes padrões estéticos construídos para serem seguidos em busca da plenitude corporal e mental. Tudo isso faz parte do grande maremoto que é a body positivity.
Nesse contexto, a noção da busca pelo prazer, ou jouissance, é de extrema importância, uma vez que a teoria de que todo ser humano está na Terra em busca de prazer físico, mental e espiritual também engloba a mulher. Vivemos na expectativa de eventos que nos proporcionem bem estar, já que agora o entendemos como um direito do ser humano e, enquanto ele não for atingido, permanecemos na mesma jornada.
Assim, quando, na maioria das vezes, o bem estar e a felicidade não chegam, a frustração se torna crônica, o que aumenta o desejo por estes e, assim, a mulher acaba se inserindo em um círculo vicioso de busca e decepção. Na indústria fashion, esse ciclo normalmente se dá pela procura do aparato de moda que fará do seu corpo algo naturalmente belo, do creme que acentuará a sua beleza natural, da maquiagem que chamará atenção aos seus traços da moda.
Apesar disso, porém, a situação nunca estará realmente boa em relação à autoestima feminina. Não interessa se ela já foi eleita a mulher mais sexy do ano em alguma revista: a busca pelo prazer ainda não foi finalizada. É assim que a indústria cosmética e fashion ocidental lucra em cima da parcela feminina no mundo todo.
E não existe um limiar de número de ações a serem tomadas em prol da beleza. Antes, você não passava nada no rosto antes de dormir, não usava nenhuma maquiagem, tinha apenas duas calças e cinco camisetas no guarda-roupa. Depois, introduzem-lhe um creme noturno que ajuda com suas olheiras (opa, tem algo de errado com suas olheiras), começa a passar um lápis e uma máscara nos cílios para acabar com a expressão de quem acabou de acordar (embora isso seja verdade) e compra uns vestidos especiais para o trabalho de modo a parecer mais profissional.
De repente, você tem três cremes para usar durante o dia, uma caixa de sapato lotada de maquiagem e um guarda roupa que não consegue mais fechar. E adivinha: você ainda acredita que precisa comprar mais destes produtos e que eles melhorarão a qualidade da sua vida.
Além da lucratividade da jouissance, também existe um teor de recompensa ao comprar em lojas que aparentam incluir diversidade nos seus catálogos, o que faz com que a definição católica de culpa caia como uma luva na nossa sociedade vigilante. Foi também nesse sentido que o politicamente incorreto instalou a culpa de se desviar do aceitável.
E, novamente, o ativismo feminista toma protagonismo ao transformar a publicidade. Porém, agora não basta praticar a body positivity: a demanda cresceu para algo maior. O patrulhamento de discurso agora prega o consumo consciente e o capitalismo ético, ou seja, comprar apenas de empresas éticas e responsáveis com direitos humanos.
Apesar disso, o consumo consciente parece ser mais atingível do que a ética no capitalismo, já que esta depende do entendimento de consumo, de cadeias de produção e trajetória do produto. O capitalismo ético, por outro lado, não soa plausível, uma vez que a indústria da moda, assim como qualquer outra, responde apenas a um estímulo: lucro. Para existir lucro dos monopólios industriais, é necessário algum tipo de exploração humana e natural.
Embora a consumidora final tenha a noção de que é necessária a mão de obra barata, exploração de recursos naturais e despejo de lixo industrial para produzir a mercadoria desejada, a tendência é esquecer de todo o processo quando lhe é apresentado algum motivo redentor que a convence da bondade da empresa. Senão, a empresa pode ainda tomar o discurso da inclusão e da representatividade/diversidade de corpos como um comportamento a ser reforçado (como um ratinho recebendo cocaína) e que, se ela recompensar a empresa o suficiente, o comportamento virará a regra.
O consumismo é como qualquer vício: um processo de tomada de decisões baseadas em prioridades — e o grau de importância que a sociedade dá ao produto final é menor do que ao processo de manufatura. A ideia é mais visível do que o material, já que temos mais acesso à propaganda do que ao produto e a produção em si. Se pusermos em comparação quantas horas de nossas vidas passamos consumindo propagandas e quantas horas passamos consumindo produtos de fato, acabaríamos com uma altíssima porcentagem de tempo na primeira conta e algo em torno de zero na segunda.
Concluímos, então, que a ideia de padrão de beleza no Ocidente não foi extinguida: ela apenas se transmutou de conservadora para liberal. Aqui lembramos também do impasse entre mulheres do Ocidente e do Oriente Médio ao não conseguir chegar a um consenso sobre os hijabs, já que algumas acreditam que se trata de um símbolo da opressão e outras assumem que toda mulher deve ser livre para vestir o que quiser.
Apesar da própria noção de liberdade ser complicadíssima e quiçá impossível de ser decifrada, o ativismo trabalha excessivamente sobre a pauta sem considerar as bases filosóficas em que se apoia. Como resultado, vemos um grande movimento da indústria cultural que faz a cooptação de movimentos sociais (feminismo, LGBT, antirracismo) em prol do lucro.
Ainda há muito a se discutir sobre a ética no capitalismo, estética feminina e liberdade, mas alguns respiros de alívio já começam a aparecer na nossa rotina. Um exemplo é a body neutrality (neutralidade corporal), que significa, resumidamente, ser neutro em relação ao próprio corpo. A proposta retira a obrigação de se sentir bem consigo mesmo e não prega a punição de quem não se adequa, além de, principalmente, tirar o corpo feminino dos holofotes do mercado e, assim, torna a indústria da beleza desnecessária.
Enquanto a busca pelo corpo perfeito continua, com as particularidades de cada época, algumas mulheres já começam a pensar em estratégias para contorná-la: um exemplo é o estímulo ao pensamento crítico e conhecimento para aumentar, de fato desta vez, a qualidade de vida feminina ao redor do mundo.
Afinal, em um mundo multicultural, com barreiras econômicas e sociais entre territórios e políticas internas específicas, como seria possível acharmos um limiar estético em comum e que, coincidentemente, também seria especificado pela indústria capitalista ocidental?
Alissa Mune é estudante de neurociência e ciência&tecnologia na Universidade Federal do ABC, programadora e pesquisa de maneira independente temas relacionados a gênero e política na internet.