Das ruas às urnas

Caio Tendolini
Instituto Update
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7 min readFeb 1, 2017

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Ao longo dos últimos 10 anos, presenciamos grandes manifestações em diversas partes do mundo, reunindo milhões de pessoas indignadas com os governos de seus países, com a irresponsabilidades das grandes corporações e com a crueldade e injustiça que abate milhares de pessoas todos os dias.

Mas de fato o que mudou?

Há quem diga que protestos sem uma construção capaz de disputar os lugares de poder tornaram-se espetáculos ineficientes, e que a pergunta mais importante é o que fazer no dia seguinte? Mais especificamente, como saímos das ruas e miramos nas urnas?

Antes de falar sobre os casos que têm tentado nortear sua ação por essa pergunta, é importante fazer um discernimento.

Transformação é diferente de impacto.

No mundo de Trump, a realidade é tão avassaladora que qualquer vitória deve ser celebrada. Seja sustentar a tarifa do ônibus num valor já alto, impedir uma lei que criminaliza mais ainda o aborto, ou derrubar um governo hegemônico, ativistas têm sistematicamente mostrado sua capacidade de organizar-se para impactar a realidade. E isso está diretamente conectado com a indignação real das pessoas — antes dela ser ou não apropriada por estruturas/grupos de poder que não têm nenhum interesse em ouvir os interesses da população.

Transformação, por sua vez, tem mais a ver com a sustentação do impacto. Com resistência. Com constância. Com cuidado. Temos que cuidar dos processos para que eles tenham a capacidade de gerar e sustentar transformações.

O Marco Civil da Internet (MCI), por exemplo, é a maior referência de uma lei construída de baixo pra cima no Brasil, e a forma como foi feito é exportada mundo afora por quem está buscando caminhos para construir leis partindo da cidadania — seu impacto tanto na regulamentação da internet no Brasil quanto como referência mundial de legislação colaborativa é enorme.

Passados oito anos da primeira versão e quase três de sua aprovação no Congresso Nacional, o MCI vem sofrendo ataques que pouco a pouco corroem a integridade inicial do projeto em nome de interesses das grandes empresas de telecomunicação, da vaidade dos políticos e das forças de vigilância do Estado.

Mesmo com milhares de ativistas, órgãos públicos (como o CGI) e organizações da sociedade civil (como o ITS Rio) mantendo-se no front de defesa do MCI, não é difícil ver o projeto inicial cedendo aos incansáveis ataques dos que ocupam as estruturas de poder no Brasil.

Ou seja, mesmo com uma sociedade civil forte e persistente, para garantir a transformação e sua sustentação, precisamos encarar a realidade de que temos que disputar e ocupar os espaços de poder na sociedade.

Isto é, precisamos construir uma estratégia que nos leve do impacto à transformação.

E a real é que cada vez menos funciona ter um ou um par de aliados lá dentro. A estratégia pulverizada (onde o coletivo X lança a sua candidatura, a ONG Y constrói uma carta compromisso, o partido Z tenta emplacar uma bancada) já não dá mais conta se não houver uma costura entre eles pra construir uma força capaz de disputar e ocupar.

Não uma força hegemônica e centralizadora, mas sim uma que esteja, de fato, conectada e a serviço da cidadania.

A má notícia é que não há fórmula vitoriosa, não há garantias, não é nem um pouco fácil e sim, vamos ter que lidar com muitos traumas e medos de construções amplas que nos desafiam pessoal e coletivamente.

A boa é que já tem gente tentando e conseguindo bons resultados, ou seja, temos onde nos inspirar. (e quem mais tem experimentado com isso estão em lugares mais próximos do que a gente imagina)

Os Experimentalistas

Pra começar, é importante dizer que cada experimentação aqui é única, por seu contexto, as estratégias e táticas adotadas, sua composição, seus objetivos e resultados. Em linhas gerais, o que as une é que basicamente não seguem especificamente uma fórmula já conhecida, mas bebem de diferentes fontes (lugares, experiências, gerações, identidades) para cozinhar uma mistureba potente.

Os Espanhóis

A Espanha é hoje a grande referência de movimentos municipalistas para o mundo. Após o 15M, onde os indignados tomaram as ruas, as redes e as praças, a efervescência da sociedade civil foi catalisada para dois lugares: o Podemos, para disputar as estruturas federais; e as confluências municipalistas, com o objetivo de tomar os governos locais. Estas tiveram um sucesso surpreendente, com movimentos locais que conseguiram diversas prefeituras, dentre elas Barcelona e Madrid.

Além do resultado surpreendente, os espanhóis vêm fazendo uma convocação global para o movimento municipalista, e tem muito do que fizeram organizado para compartilhar com quem estiver disposto.

Os Mexicanos

Entre o #YoSoy132 (manifestações inicialmente estudantis que tomaram as ruas no México em 2012), o movimento pela reforma política e Ayotzinapa (o desaparecimento de 43 estudantes de uma escola rural que levou milhões de mexicanos às ruas contra a impunidade do Estado), um grupo de jovens começou a se organizar para formar o WikiPartido, um movimento nacional para ocupar a política no país. De aí surgiu o WikiPolítica, movimento que acabou optando por trabalhar com candidaturas independentes pela alta burocracia de criar-se um partido político no país (detalhe que lá é bem mais fácil que aqui no Brasil).

O Wikipolítica lançou candidaturas em 2015 na Cidade do México e em Jalisco, tendo conseguido emplacar na segunda o Pedro Kumamoto, cuja campanha e mandato são referências pra qualquer ativista que quer fazer uma campanha potente.

Os Chilenos

Lá no Chile, após a revolução dos pinguins em 2006 (que gerou um material referencial para os Secundaristas aqui no Brasil nos últimos anos) e o movimento estudantil de 2011, algumas lideranças se lançaram candidatas e conseguiram entrar ao congresso nacional. De lá pra cá, algumas delas tem começado a organizar processos diferentes, como o Revolución Democrática (RD: partido recém criado por diversos movimentos no país) e o processo de Primárias Ciudadanas en Valparaíso (PVC). Esse segundo, que contou com participantes locais do RD, realizou um processo de prévias abertas onde mais de 5 mil pessoas saíram para votar para selecionar um candidato independente para a prefeitura.

Detalhe: num país com quase 70% de abstenção de voto (o voto no Chile não é obrigatório), as PCV conseguiram mobilizar milhares de cidadãos para um processo de votação informal!

Criando uma alternativa à proposta da esquerda e da direita tradicional, o jovem candidato selecionado nas primárias ciudadanas conseguiu mais de 50% dos votos, a partir de um processo amplo e participativo inédito na cidade.

Os Argentinos

Em 2013, os hermanos lançaram uma proposta de democracia semi-direta para tentar disputar uma cadeira na cidade de Buenos aires (lá, diferente daqui, você pode criar um partido só municipal) — o Partido de la Red (PDR). O PdR tinha uma proposta simples: nosso candidato eleito vai sempre votar de acordo com o resultado da votação em nossa plataforma (o DemocracyOS), como um Cavalo de Tróia. Ou seja, ao nos eleger, vocês está se dando a oportunidade de influenciar diretamente em cada votação dentro da câmara de vereadores.

Como os demais experimentos, com poucos recursos, o PdR conseguiu fazer cerca de 25 mil votos na cidade e o DemocracyOS roda hoje em mais de 20 cidades de todo o mundo como uma ferramenta de democracia semi-direta.

Os Mineiros

Em 2015, após uma série de processos locais, coletivos de Belo Horizonte (principalmente urbanos, de mobilidade, carnaval de rua, cultura, jornalismo, sustentabilidade, entre outros) sentaram numa praça para discutir a cidade a partir da perspectiva individual e coletiva. Daí surgiu o Cidade que queremos BH, um processo de construção de um programa colaborativo para a cidade, que desembocou no Muitxs, um coletivo de 12 candidatas lançado pelo Psol para disputar a câmara de vereadores.

Entre presença constante nas ruas e redes, mobilização da classe artística para produzir conteúdo e leiloar obras, e uma proposta coletiva inédita, o muitxs fez uma das campanhas mais lindas que o Brasil já viu. E os belo-horizontinos reagiram: o Muitxs conseguiu mais de 35 mil votos, elegendo duas vereadoras, inclusive a mais votada da cidade.

Os Paulistas

Em São Paulo, nós criamos a Bancada Ativista, um coletivo que prototipou uma estratégia de campanha para apoiar candidaturas à vereança na cidade a partir de 3 critérios: candidatos deveriam ser ativistas (ter uma construção prévia na sociedade civil em torno de alguma pauta); nunca antes terem sido eleitos; e dispostos a inovar na forma de fazer campanha, sendo mais participativos, transparentes e pedagógicos. Entre flertaços, panfletaços e ação nas redes sociais, os 8 candidatos da Bancada Ativista somaram mais de 73 mil votos (1 em cada 100 paulistanos votou na Bancada) e a Sâmia Bomfim iniciou esse ano seu mandato ativista.

Entre as diferentes estratégias adotadas em cada experimento, podemos encontrar alguns elementos em comum: a cidade como lugar de ação e disputa; o baixo custo e as formas inovadoras de levantar recursos para campanha (de leilões de obras de arte doadas por artistas locais ao crowdfunding); o foco no envolvimento de cidadãos diversos através de ações criativas nas redes e nas ruas; a despriorização de partidos políticos como atores centrais no processo (mas não a negação de sua importância na construção); o rechaço das formas tradicionais de organização, construção; a preponderância do papel das mulheres nos processos internos e públicos; o elemento de indignação e da necessidade de uma outra política presente nas narrativas (fazendo contraponto à sua apropriação por forças como Trump); e a remixagem de técnicas e ferramentas desenvolvidas na sociedade civil para a lógica eleitoral.

Por fim, vale destacar que enquanto os espanhóis se organizaram para disputar a cidade, aqui na América Latina nós ainda estamos focados no legislativo.

A pergunta que fica na cabeça é: será que para os próximos ciclos eleitorais municipais no Brasil e em outras partes da América Latina conseguiremos construir experimentos municipalistas e assim disputar não apenas o legislativo mas também o executivo, visando uma transformação mais ampla de nossas realidades?

*Além dos casos mencionados acima, houve diversas campanhas interessantes em todo Brasil em 2016. Caso você conheça alguma, joga um link aqui nos comentários.

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Caio Tendolini
Instituto Update

Amante de projetos colaborativos que geram impacto positivo na sociedade. @update-politics