Carta de notícias da U R U B U .001
Nova Realidade
Alguns apressados outros atrasados, mas todos ansiosos com a realidade.
Uma crise sanitária, mas principalmente uma crise política, pois líderes em todo o mundo adiaram decisões e/ou negaram fatos, gerando para além de uma crise com começo, meio e fim, o desencadeamento de uma série de crises, efeitos e reações.
Como avisa Giorgio Agamben, a cultura é, principalmente, uma experiência particular de tempo [1], e a pausa coletiva-global da rotina das cidades, uma rotina exaustiva e que agressivamente transformava todos os intervalos em momentos de consumo, ilumina uma ruptura no modo de viver do começo do século 21.
Um modo que não volta para o ponto seguinte de uma linha reta histórica, idealizada pelo método cronológico de periodização da história [2]. A fragilidade desse método não suporta o atual nível de conexão entre pessoas, mercados e estados e nem a coexistência de temporalidades que faz com que tudo pareça estar acontecendo ao mesmo tempo.
Qualquer tentativa de previsão soa ingênua, mas se faz urgente, como convidou Bruno Latour [3], refletir sobre quais atividades suspensas gostaríamos que não fossem retomadas.
Qual realidade iremos intencionar (intenção de realizar uma ação)a partir dessa experiência de suspensão do modelo pós-fordista [4]?
Daremos um empurrão no contínuo colapso do Capitalismo Cognitivo [5] ou essa seria seu resgate?
Quando tivermos conhecimento suficiente para lidar com a doença (covid-19) e com o vírus (Sars-Cov-2), sairemos dessa necessária intenção de isolamento e voltaremos para nossa natural intenção de convívio social.
Quais serão nossas escolhas para convívios fora das telas?
É imperceptível, apesar de grande, a mudança que vivenciamos nessas primeiras semanas de isolamento. A transição quase natural entre ‘que estranho tudo isso’ para uma nova rotina, assusta.
Nada deve acontecer do dia para noite ou mesmo de um ano para outro. Tentar adivinhar espaços de tempo, especialmente nesse momento, é um jogo de azar. Não é sobre prever, mas sobre crer.
As mudanças nas sociedades acontecem sem uma exata percepção de data ou mesmo sensação majoritária de que algo mudou. Como Multitude [6], sem uma capacidade de unificação como ‘povo’, a sociedade contemporânea vive diferentes e individuais experiências, mas isso não significa que mudanças não acontecerão.
Quando e como, vamos saber no momento que, no futuro, olharmos para trás para juntar os pontos. Nossa maior responsabilidade agora é ter coragem para refletir sobre perspectivas ideais [7] e foco para intensionar futuros possíveis.
Possíveis, pois há muito, conhecemos soluções.
Óbvios exemplos vão desde da adesão (e estruturação para tanto) do trabalho de casa como forma de melhorar problemas essenciais como a mobilidade das grandes cidades e da necessidade de saneamento básico para todos, passando por uma conversa mais honesta sobre o papel do Estado e pela expectativa alta de utilizarmos esse momento para um Green New Deal, tomando consciência dos fatos e ativamente mudando nosso modelo de produção-consumo que está, literalmente, consumindo a Terra.
6 de abril de 2020.
Eduardo Fraga, pesquisador cultural e sócio da Urubu.
Antes do rodapé, um indicação para o momento
Team Human de Douglas Rushkoff.
Notas de Rodapé
[2] organização da história a partir de uma linha reta, exemplo: Pré-história, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Além de contribuir para construção de uma falsa percepção de evolução entre as eras, esse método limita a compreensão do passado, e portanto do presente, por um único ponto de vista. A evolução da tecnologia de informação das últimas décadas, e sua consequente ampliação de fontes e pontos de vista, tornou o método antiquado entre os pensadores da atualidade.
[4] deslocamento da força de trabalho, de uma a linearidade das fábricas que caracterizou a rotina das cidades até o final do século 20, para novas rotinas, com novas habilidades, que representam a mudança de uma economia industrial para uma economia de serviços.
[5] hipótese teórica que acompanha as reflexões sobre poder de Antonio Negri e Michael Hardt, o surgimento da ‘terceira era’ do capitalismo e sua principal característica: o valor imaterial como predominante e determinante na economia. O conhecimento e o ‘know-how’ valem cada vez mais do que a mão de obra (trabalhador), numa tendência sem retorno e que se aplicaria a todos os setores da economia, não só ao setor tecnológico. Por quebrar a característica central do capitalismo, a centralidade do valor do trabalhadro, o capitalismo cognitivo nos levaria ao pós-capitalismo. Mais referências, ver anotações a partir de Razmig Keucheyan no livro The Left Hemisphere (2010, editora Verso)
[6] a partir das reflexões de Antonio Negri e Michael Hardt sobre poder, o termo se refere a multiplicidade de indivíduos, uma multidão sem unidade. Indivíduos que não teriam nada em comum, diferente de indivíduos que se enxergam comuns como trabalhadores, mulheres, negrxs ou homossexuais. Ao mesmo tempo, a falta de unidade não impediria a multidão (Multitude) de existir, não haveria a necessidade (ou possibilidade) de reduzir a um denominador comum. Mais referências, anotações a partir de Razmig Keucheyan no livro The Left Hemisphere (2010, editora Verso)
[7] a partir de Evald Ilienkov, perspectivas ideais são permanentes horizontes para existência humana. “It’s impossible to think about material prerequisites without ideal prerequisites.”
English Version
U R U B U’s newsletter. 001
New Reality
A few in a rush, others late, yet everyone anxious about the new reality.
A sanitary crisis, however, mainly a political crisis, since leaders around the world postpone decisions and/or deny facts, creating not a crisis with begin, middle and end, but triggering a series of crisis, effects and reactions.
Giorgio Agamben reminds us, culture is, first and foremost, a particular experience of time [1], and the global collective pause in cities routine, an exhaustive routine that aggressively was transforming all gaps in moments for consumption, highlight a rupture in the lifestyle of the
beginning of the 21 century.
A lifestyle that will not return to the historic straight line idealized by the chronological method of history periodization [2]. Its weakness doesn’t support today’s high level of connections between people, markets and governments, neither the co-existence of temporalities that makes everything seem to be happening at the same time.
Any prevision will sound naive, nevertheless, it’s urgent, like Bruno Latour’s [3] invitation, to think about which are the suspended activities we wouldn’t like to return.
Which reality we will intend after the experience of suspension from the post-Fordism [4] model?
We will give an extra push in the continuous collapse of Cognitive Capitalism [5] or it will be rescued?
When we learned enough to deal with the disease (COVID-19) and with the virus (Sars-Cov-2), we will leave these, more than needed, isolation mood to our natural vocation to social life.
Which will be our choices of social life out of screens?
Although big, the change we experienced in these first weeks of isolation is imperceptible. A natural transition from ‘this is odd’ to a new routine. It’s scary.
Nothing should happen in a day or even in a year. Trying to guess periods of time, especially right now, it’s a gamble. It’s not about forecasting, it’s about believing.
Changes in society happen without an exact date or also a clear perception from the majority that something has changed. As a Multitude [6], without the traditional unification as ‘people’, today’s society is full of individual experiences, nevertheless, that doesn't mean changes will not happen.
When we look back to 2020 from the future, we will understand when and how society was hit. Now, our main responsibility is to have the bravery to think about ideal perspectives [7] and focus to intend possible futures.
Possibles, because long ago, we knew solutions.
Obvious examples range from the implementation (and structuring for that) of the home from work as a way to improve essential problems such as the mobility of large cities and the need for basic sanitation for all, passing through a more honest conversation about the role of the State and the high expectation of using this moment for a Green New Deal, becoming aware of the facts and actively changing our production-consumption model that is literally consuming our planet.
April 6, 2020.
Eduardo Fraga, cultural researcher and Urubu’s partner.
Before the footnotes…
Team Human from Douglas Rushkoff.
Footnotes
[2] a method that organizes history in a linear model: Ancient history, Post-classical history, Modern history, Contemporary Period. Besides building a false perception of evolution among periods, this method limits our understanding of the past, and therefore of the present, from a unique point of view. The evolution of technological information in the last decades, and the consequent expansion of sources and points of views, has made the method old-fashioned among thinkers today.
[4] displacement of the workforce, from the linearity of the factories that characterized the routine of cities until the end of the 20th century, to new routines, with new skills, which represent the change from an industrial economy to a service economy.
[5] theoretical hypothesis that accompanies the reflections on power by Antonio Negri and Michael Hardt, the emergence of the ‘third era’ of capitalism and its main characteristic: immaterial value as predominant and determinant in the economy. Knowledge and know-how are increasingly worth more than the labour force (worker), in a trend with no return and which would apply to all sectors of the economy, not only to the technological sector. By breaking the central characteristic of capitalism, the centrality of the value of the workforce, cognitive capitalism would lead us to post-capitalism.
[6] based on Antonio Negri and Michael Hardt’s reflections on power, the term refers to the multiplicity of individuals, a crowd without unity. Individuals who would have nothing in common, unlike individuals who see themselves as common as workers, women, blacks or homosexuals. At the same time, the lack of unity would not prevent the crowd (Multitude) from existing, there would be no need (or possibility) to reduce it to a common denominator.
[7] from Evald Ilienkov, ideal perspectives are permanent horizons for human existence. “It’s impossible to think about material prerequisites without ideal prerequisites.”
