Carta de Notícias da U R U B U .003

Eduardo Fraga
U R U B U
Published in
6 min readJun 25, 2020

Convite para Dançar

Acervo pessoal.

Ansiosas tentativas de prever o futuro consideram como únicas métricas possíveis a velocidade e o crescimento. Do público ao privado, em planejamentos estratégicos de grandes corporações ou em propostas de políticas públicas, a ordem é uma, devemos sempre seguir em frente. Apesar dos tombos — das crises — fazer mais rápido, investir pouco e ter o máximo de retorno.

Desde o ‘fim da história’ [1], com a queda do muro de Berlin em 1989, há um triunfo do capitalismo como única alternativa possível de sociedade. Liderados pela dupla Thatcher-Regan e maravilhados pelas promessas da era da informação, o ocidente liberal abraçou o slogan-doutrina ‘there is no alternative’ [2].

Sem concorrentes ideológicos, os últimos 30 anos criaram uma ilusão de estabilidade universal. A qualquer crise, análises se apressam para mostrar que estávamos no caminho certo, foi só um tombo. Afinal, a economia estava crescendo.

A falta de alternativa resultou no domínio da ética do realismo capitalista [3]. A certeza ilusória dos que só enxergam uma opção recomenda não pensar muito e seguir em frente. Fazer mais rápido, investir pouco e ter o máximo de retorno. Seguir crescendo.

Da inclusão dos países da ex-União Soviética no modo operante capitalista até eventos globais de massa (copa/olimpíadas), o que melhor representa o espírito capitalista — o que gera mais dinheiro — é a constante destruição/construção.

Por isso, especialmente nos últimos 20 anos, vivemos a constante sensação de que estamos pulando de crise em crise. E também, a certeza de que seus intervalos foram diminuindo até a atual sensação de crise permanente.

O Comitê Invisível [4] afirma que o capitalismo não está em crise, mas que ele triunfa na crise. Pela relatório Billionaire Bonanza 2020 do Institute for Policy Studies, a crise gerada pela pandemia não parece fugir à regra. A rede de apoio que os governos proveram para os bancos na crise de 2008 não nos deixa esquecer. O tamanho da crise é proporcional ao tamanho da oportunidade para quem tem dinheiro e do prejuízo para quem não tem.

Com a pandemia, assim como a mentalidade eternamente escravocrata da nossa elite do atraso, os privilégios ficam explícitos. Como explica o sociólogo Jessé de Souza [5], ao invés de celebrar a evolução da nossa sociedade, a elite brasileira sabota a construção de um país em benefício próprio. Uma elite ampla, para além do 1% mais rico, que é contra qualquer perda de privilégio. Mesmo durante uma pandemia, como destacou o episódio sobre empregadas domésticas do Greg News.

A crise é um modo de governo encaixável em qualquer ideologia: a restauração permanente de tudo. Uma doutrina do choque: aproveitar ou criar um momento de choque — de atordoamento coletivo — para impor ajustes que não geram mudanças significativas ou mesmo, significam prejuízos e piores condições [6].

Frustrante, pois nunca é o que se esperaria de uma crise clássica: um momento de decisão. Ao invés disso, uma crise presente e omnilateral. Uma insegurança existencial crônica, lenta e fedorenta. “Previnir, por via da crise permanente, toda e qualquer crise efectiva”.

Especialistas correm para sugerir um novo normal, a mais recente repetição do mantra fazer mais rápido, investir pouco e ter o máximo de retorno. Como pontua a historiadora Lilia Schwarcz, o novo normal é conservador. Assim como Make America Great Again, sonham com um passado desigual e não possuem nenhuma empatia pela maioria. Afinal, normal para quem?

O novo normal soa como uma reafirmação do slogan conservador de que qualquer outra alternativa ao que temos seria pior. Pior para quem?

O novo normal atua no curto prazo, essencial para sobrevivência de alguns, mas inútil para atravessarmos o nevoeiro que ficou mais denso depois da pandemia. Com a pandemia, um modo de viver foi interrompido. Negar essa interrupção, mesmo que temporária, soa como uma criança mimada que, aborrecida com o tédio do seu quarto, esquece de pensar nos outros e sai do isolamento.

A negação do momento é como a negação da degradação ambiental. Os mesmos grupos e as mesmas fases: negação da existência, justificativa de que ‘é caro de mais para consertar’ e por fim, ‘é tarde demais.

Reflexões econômicas que não propõem novos modelos, mas sim a manutenção do antigo nos dizem que será como antes, mas um pouco menor. Intenções de seguirmos em frente a qualquer custo. Crescer é a única alternativa, gritam como sempre. Mesmo depois dessa experiência coletiva de dúvida-insatisfação-espera, exigem que ainda seja mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo [7].

O normal de agora, sem uma previsão clara de mudança, é a dança do machado. O movimento entre o abrir e o fechar. Entre os diferentes graus de isolamento e abertura. Entre a crença da imunização e a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde.

Seja pela subnotificação de infectados ou pela manipulação do Estado, o Brasil está pouco preparado para essa dança. Por isso, é incontornável assumir ‘a condição amorfa, movediça e nebulosa[8] do momento que vivemos para conseguirmos compreendê-lo e ativá-lo. Um momento de existir, resistir e projetar perspectivas ideais.

Um momento de re-existir. Afinal, mudanças que pareciam impossíveis, vivem debates e ações concretas, como a renda básica universal. Salve Suplicy, exemplo da importância da persistência e resistência.

Há uma fresta nos permitindo pensar alternativas com horizontes ideais para a maioria. Alternativas ágeis, mas com investimento altos e retornos equilibrados para uma construção de longo prazo. A possibilidade de um inimigo comum, seja a pandemia ou a caquistocracia [9], nos permite repensar sistemicamente e sem limitações conservadoras sobre o que, pelas lentes do passado, parecia certo. Certo para quem?

25 de junho de 2020.
Eduardo Fraga, pesquisador cultural e sócio da Urubu.

Links e referências

na ordem de aparição.

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