Carta de notícias da U R U B U .004

Monique Lemos
U R U B U
Published in
12 min readSep 18, 2020

a rotina é máquina de moer gente

@asaphluccas.

Viver uma pandemia realoca contextos e práticas.

Principalmente ao vivenciarmos 24/7 os processos de hiperaceleração da infosfera, aumentando a ansiedade e a angústia sobre as incerteza do futuro. Tudo se soma, a impossibilidade do luto, o medo da proximidade e da morte (e da morte da morte) e, quase sem perceber (ou desesperados), transformamos os dias em repetições infinitas de processos automatizados.

Faz sentido, então, observar como as alterações promovidas e evidenciadas pelas ferramentas tecnológicas transformam e produzem variações linguísticas a partir das reconfigurações socioculturais deste período.

____ desorientadores profissionais do sentido

No atual contexto de hipercomplexidade [1] e infoxicação [2], imersos numa pandemia das imagens (de lives a memes) e na precarização das relações sociais, buscamos e seguimos rotas simplificadas por interfaces que mastigam o acesso à tudo o que soa complexo. Afinal, a vida numa sociedade em rede (com sua comunicação distribuída e não mais em massa) sugere e cria predisposições de rotas, atalhos e caminhos pré-definidos.

Mostramos nossos gostos e desejos o dia todo nos apps-que-todo-mundo-usa até que a nossa percepção de valores e verdade passe a ser organizada, e manipulada, por essas marcas (Facebook, Instagram, Twitter e cada quadradinho na nossa tela de início).

É a brandificação do cotidiano [4]. Valores corporativos sobrepostos aos sociais e boa parte das nossas ideias cooptadas e produzidas por estes grupos privados e brancos e héteros (alguns arrependidos). Onde as mensagens são completamente apropriadas pelo discurso publicitário e financeiro, esvaziando o seu sentido primeiro e libertário.

A transmutação dos conteúdos pela publicidade contamina todas as nuances da vida. Transformam palavra em valor, com o index [5] dos algoritmos e mudam o referencial, por tanto, os significados das palavras. Dessa forma, atingem e interferem com eficácia nosso inconsciente [6].

O capitalismo é a primeira ordem socioeconômica que destotaliza o significado: não é global em nível de significado. Além do mais, não existe nenhuma ‘cosmovisão capitalista’, nenhuma ‘civilização capitalista’ propriamente dita: a lição fundamental da globalização consiste precisamente em que o capitalismo consegue se adaptar a todas as civilizações, desde a cristã até a hindu ou a budista, do Oriente ao Ocidente. A dimensão global do capitalismo só pode ser formulada em nível de verdade-sem-significado, como Real do mecanismo global de mercado”. Essa destotalização do significado corresponde ao abandono da ação reflexiva de parte de sujeitos carentes daqueles instrumentos promovidos pela ilustração e que permaneceram como restos arqueológicos de uma história vazia de conteúdo. [7]

É a efetividade, portanto, e não o valor de verdade, o que define a linguagem. Ela assume uma função organizacional, de mera formalidade, que sugere a redução da enunciação à uma combinação simples e conectiva.

____ quais os limites homem-máquina?

Em grande medida, os signos são recursos que nos ajudam na autocompreensão mais profunda das mensagens. Não discernir o pressuposto dos pensamentos ou suas implicações consiste em não compreendê-los em suas totalidades. Não compreender o dilema social que estamos vivendo significa que, cada vez mais, seremos constantemente iludidos pelos nossos pensamentos e sentimentos. Escolhemos perder, a cada clique, o controle sobre quem somos.

A aceleração onipresente [8] — não mais simples aceleração ou redução de distâncias — , nos força a abolir a ideia de espaço e tempo, a ponto de nos propor a virtualização do corpo. Tal que nos transformamos em máquina: quem absorve o trabalho e produz mercadorias. E o preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que oferecemos.

Essa produção e desenvolvimento ‘infinito’ de novas tecnologias nasce do entendimento capitalista de que todo aumento de produtividade envolve benefícios. Para os usuários, a matemática dos benefícios é opaca: recebemos um app “gratuito” e aceitamos entregar atenção como produto.

O resultado é uma atenção completamente fragmentada e empobrecida pela demanda e complexa inteligência que nos condiciona à seleção simplificada de conteúdos. A pasteurização do conhecimento. Temos, então, exaustão e passividade energética, devido ao cansaço forçado e produzido. Condição perfeita para expansão generalizada de “desinformação”. A ausência e a ruína de capacidade crítica e de compreensão midiática e algorítmica [9].

___ a rotina é máquina de moer gente [10]

Estamos frente à impossibilidade de compartilhar noções de verdade. A transferência de nossa vida para o digital inverte as maneiras pelas quais percebemos o mundo e essa mesma mediação técnica da vida [11] transforma nossa capacidade de senti-lo.

Segundo Berardi, é porque a transformação e a produção já não acontecem no campo dos corpos, da manipulação material, mas na pura interação entre máquinas informáticas. A informação toma lugar das coisas e o corpo fica eliminado do terreno da comunicação.

Ou seja, o aniquilamento da sensibilidade estabelece a atrofia da empatia e gera a incapacidade de ter o corpo-condição de coletivo e, consequentemente, sensível, solidário, incapaz de sentir-o-outro e com-o-outro.

Nosso intelecto está separado do corpo: desprovido de capacidades de autopercepção e autoconsciência. E de discernimento. Mesmo para divergir, é preciso entender, compartilhar, apoiar o significado. Sempre há um pequeno momento antes da divergência, a partilha de uma mente comum. De um desejo pela compreensão. A destruição dessa capacidade é a violência em seus meios mais nefastos, coloca fim às relações e ao estabelecimento do conhecimento como fortalecimento da mente e do debate.

Além disso, é muito importante não perder de vista que não é mera coincidência quando Safiya Umoja nos lembra que, “quando mulheres e pessoas de cor finalmente recebem a oportunidade de participar de esferas limitadas de tomada de decisão na sociedade, os computadores sejam simultaneamente celebrados como a escolha ideal para tomar decisões sociais” [12]. A opressão algorítmica não é uma falha do sistema, mas, a estrutura fundamental para o sistema operacional da web. Uma atualização do projeto colonial e da exclusão e desumanização de pessoas negras, pobres e mulheres.

Continuam retirando a capacidade de sermos devidamente compreendidos e governados pelas nossas convicções individuais. Constante reafirmação de que a transmutação antropotecnológica da sensibilidade é indomável.

Nos resta manter e recriar o “idioma da resistência”. Abdicar da epistemologia da ignorância [13]. E elaborar “como podemos sobreviver ao ensombrecer. E, ao mesmo tempo, transmitir o conteúdo da possibilidade” [14].

Conceitos, referências e discussões:

[ 1 ] Hipercomplexidade

“A desproporção entre a taxa de entrada de novas informações e a insuficiência de tempo disponível para seu processamento consciente gera hipercomplexidades. Por conta disso, projetos que proponham a alteração racional do campo social como um todo estão fora de cogitação”

BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[ 2 ] Infoxicação

Uma das doenças (!!), causadas pela sobrecarga de informação a que somos expostos. Alfins Cornella — best-seller e especialista em tecnologia—quem deu origem ao conceito.

Há, também a infodemia, uma epidemia de informações falsas, mas essa já é outra história.

[ 4 ] BEIGUELMAN, Giselle. Reocupar os espaços informacionais. + Da cidade interativa às memórias corrompidas:arte, design e patrimônio histórico na cultura urbana contemporânea.

[ 5 ] Index: Ponto de referência, deslocável, que indica a leitura a fazer numa escala de certos aparelhos ou instrumentos de medida.

[ 6 ] BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[ 7 ] ZIZEK, Slavoj. Problemas no paraíso: Do fim da história ao fim do capitalismo.

[ 8 ] Idem item 6.

[ 9 ] Educação midiática e algorítimica:

A educação midiática é definida como o conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos — dos impressos aos digitais. Muito além da simples leitura, o cidadão alfabetizado midiaticamente é capaz de interpretar a intenção por trás dos textos, avaliar a credibilidade do autor e da informação, resgatar o contexto dos conteúdos (ou constatar a falta dele) e identificar fake news, por exemplo. (Redes Cordiais)

[ 10 ] “A rotina é máquina de moer gente”, poema de Sérgio Vaz

[ 11 ] LATOUR, Bruno. On technical mediation: philosophy, sociology, genealogy. Common Knowledge, v. 3, n. 2, p. 29-64, 1994.

Sob o conceito de mediação técnica, Latour afirma que as tecnologias são resultado de redes de associações entre vários atores humanos e não humanos. Assume a simetria e a ideia de atores híbridos: capazes de agir e influenciar em uma rede de atores. Assim, defende que em um agenciamento homem-técnica ambos se modificam e influenciam na ação.

[ 12 ] NOBLE, Safiya Umoja. Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism. Nova York: NYU Press, 2018.

[ 13 ] Silva Tarcísio. Racismo algorítmico: entre a (des)inteligência artificial e a epistemologia da ignorância. Revista Select 48, p26–27, 2020.

[ 14 ] Idem item 6.

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English Version

the routine is a machine for grinding people

Living pandemic reallocates contexts and practices.

Especially when we experience 24/7 the processes of hyper-acceleration of the infosphere, increasing anxiety, and anguish about the uncertainty of the future. It all adds up, the impossibility of mourning, the fear of proximity and death (and death of death), and, almost without realizing (or desperate), we transform the days into infinite repetitions of automated processes.

It makes sense, then, to see how the changes promoted and evidenced by technological tools transform and produce linguistic variations from the socio-cultural reconfigurations of this period.

____ professional disorientation of meaning

In the current context of hyper complexity [1] and infoxication [2], immersed in a pandemic of images (from lives to memes) and in the precariousness of social relationships, we seek and follow simplified routes through interfaces that chew access to everything that sounds complex. After all, life in a networked society (with its distributed communication and no longer in mass) suggests and creates predispositions of predefined routes, shortcuts, and paths.

We show our tastes and desires all day long in apps-that-everybody-uses until our perception of values ​​and truth is organized, and manipulated, by these brands (Facebook, Instagram, Twitter, and every box on our screen) from start).

It is the branding of everyday life [4]. Corporate values ​​superimposed on social values ​​and a good part of our ideas co-opted and produced by these private and white and straight groups (some of them sorry). Where messages are completely appropriated by advertising and financial discourse, emptying their first and libertarian meaning.

The transmutation of content through advertising contaminates all the nuances of life. They transform a word into value, with the index [5] of the algorithms and change the referential, therefore, the meanings of the words. In this way, they effectively reach and interfere with our unconscious [6].

Capitalism is the first socioeconomic order that de-totalizes meaning: it is not global at the level of meaning. Furthermore, there is no ‘capitalist worldview’, no ‘capitalist civilization’ itself: the fundamental lesson of globalization is precisely that capitalism can adapt to all civilizations, from Christian to Hindu or Buddhist, from East to West. The global dimension of capitalism can only be formulated at the level of meaningless truth, as the Real of the global market mechanism “. This de-totalization of meaning corresponds to the abandonment of reflective action on the part of subjects in need of those instruments promoted by illustration and who remained as archaeological remains of a history empty of content. [7]

It is effectiveness, therefore, and not the value of truth, that defines language. It takes on an organizational function, of mere formality, which suggests reducing the enunciation to a simple and connective combination.

____ what are the limits for a man-machine symbiosis?

To a large extent, signs are resources that help us in the deeper self-understanding of messages. Failing to discern the assumption of thoughts or their implications consists in not understanding them in their entirety. Not understanding the social dilemma we are experiencing means that, increasingly, we will be constantly deluded by our thoughts and feelings. We choose to lose control over who we are with each click.

The omnipresent acceleration [8] — no longer an acceleration or reduction of distances — forces us to abolish the idea of ​​space and time, to the point of proposing the virtualization of the body. Such that we become a machine: those who absorb work and produce goods. And the price of anything is the amount of life we ​​offer.

This ‘infinite’ production and development of new technologies are born out of the capitalist understanding that any increase in productivity involves benefits. For users, the mathematics of benefits is opaque: we received a “free” app and agreed to deliver attention as a product.

The result is completely fragmented and impoverished attention due to the demand and complex intelligence that conditions us to the simplified selection of contents. The pasteurization of knowledge. We have, then, exhaustion and energy passivity, due to forced and produced fatigue. Perfect condition for widespread expansion of “disinformation”. The absence and ruin of critical capacity and of media and algorithmic understanding [9].

___ the routine is a machine for grinding people [10]

We are faced with the impossibility of sharing notions of truth. The transfer of our life to digital reverses the ways in which we perceive the world and this same technical mediation of life [11] transforms our ability to feel it.
According to Berardi, it is because transformation and production no longer happen in the field of bodies, material manipulation, but in the pure interaction between computer machines. The information takes the place of things and the body is eliminated from the field of communication.
That is, the annihilation of sensitivity establishes the atrophy of empathy and generates the inability to have the collective body-condition and, consequently, sensitive, supportive, unable to feel-the-other, and with-the-other.

Our intellect is separate from the body: devoid of the capacity for self-awareness and self-awareness. And discernment. Even to diverge, it is necessary to understand, share, support the meaning. There is always a small moment before the divergence, the sharing of a common mind. From a desire for understanding. The destruction of this capacity is violence in its most harmful ways, putting an end to relationships and the establishment of knowledge as a strengthening of the mind and debate.

Furthermore, it is very important not to lose sight of the fact that it is no coincidence when Safiya Umoja reminds us that, “when women and people of color are finally given the opportunity to participate in limited spheres of decision-making in society, computers are simultaneously celebrated as the ideal choice for making social decisions “[12]. Algorithmic oppression is not a system failure, but the fundamental structure for the web’s operating system. An update on the colonial project and the exclusion and dehumanization of black people, the poor, and women.

They continue to take away the ability to be properly understood and governed by our individual beliefs. Constant reaffirmation that the anthropotechnological transmutation of sensitivity is indomitable.

It remains for us to maintain and recreate the “language of resistance”. To abdicate the epistemology of ignorance. And to elaborate “how can we survive in the dark. And, at the same time, transmit the content of the possibility” [13].

Concepts, references, and discussions:

[1] Hyper complexity

The disproportion between the rate of entry of new information and the lack of time available for its conscious processing generates hypercomplexities. Because of this, projects that propose a rational change of the social field as a whole are out of the question.

BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[2] Infoxication: one of the diseases (yes), caused by the information overload to which we are exposed. Alfins Cornella — bestseller and technology specialist-who gave rise to the concept. There is also infodemia, an epidemic of false information, but that is another story.

[4] BEIGUELMAN, Giselle. Reocupar os espaços informacionais. + Da cidade interativa às memórias corrompidas:arte, design e patrimônio histórico na cultura urbana contemporânea.

[5] Index: Movable reference point that indicates the reading to be made on a scale of certain measuring devices or instruments.

[6] BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[7] ZIZEK, Slavoj. Problems in paradise: From the end of history to the end of capitalism.

[8] Same as item 6.

[9] Media and algorithmic education:

Media education is defined as the set of skills to access, analyze, create, and critically participate in the informational and media environment in all its formats — from print to digital. Beyond simple reading, the media literate citizen is able to interpret the intention behind the texts, assess the credibility of the author and the information, rescue the context of the contents (or verify the lack of it), and identify fake news, for example. (Redes Cordiais)

[10] “A routine is a machine for grinding people”, a poem by Sérgio Vaz

[11] [11] LATOUR, Bruno. On technical mediation: philosophy, sociology, genealogy. Common Knowledge, v. 3, n. 2, p. 29–64, 1994.

Under the concept of technical mediation, Latour states that technologies are the result of networks of associations between various human and non-human actors. It assumes the symmetry and the idea of ​​hybrid actors: capable of acting and influencing a network of actors. Thus, he argues that in a man-technical agency both are modified and influence the action.

[ 13 ] Silva Tarcísio. Racismo algorítmico: entre a (des)inteligência artificial e a epistemologia da ignorância. Select 48, p26–27, 2020.

[ 14 ] Same as item 6.

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Monique Lemos
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creative foresight strategist, digital nomad & founder @topofutures