ENQUANTO EU DESCOSTURAVA ESSA CALÇA

Marina Linhares
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3 min readSep 8, 2019

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Mais um dia de trabalho, pego as roupas que havia comprado em algum bazar beneficente e coloco algumas peças na máquina de lavar e outras de molho em baldes. Nesse dia eram calças e camisas, todas azuis, do mais claro ao azul marinho. A tarde penduro todas elas no varal, não tem muito vento e nem muito sol, vai demorar para secar. Sigo com outras tarefas e deixo que o tempo faça o seu trabalho.

Dia seguinte, as peças estão limpas, secas, dobradas e já podem ser guardadas com outras que se encontram nas mesmas condições.

Chegou o dia de uma das peças ser descosturada, desfeita, desconstruída. Passar do seu posto de roupa usada para virar tecido para construir uma nova peça. De modo aleatório, escolho uma calça social masculina, ela é azul, quase marinho, mas nem tão escura. A cor e a textura do tecido fazem com que ela se destaque em meio as outras peças semelhantes. Ao longo da perna tem alguns furos e algumas partes já estão meio descosturadas, o que inclusive me fez escolher essa peça em meio a tantas no bazar, afinal ela provavelmente não seria escolhida do jeito que estava.

Percorro meus olhos e mãos por ela atrás de etiquetas e encontro apenas uma: Alírio Alfaiate — P. Alegre. O tecido é fino e ela possui alguns bolsos, inclusive dois internos com abertura em zíper e mesmo que nenhum deles aparecesse eram claramente costurados com primor e atenção.

Chego na bainha dobrada e vejo uma técnica desconhecida, de início não encontro as costuras, elas aparecem no interior da peça, mas não as vejo no exterior. Com o descaseador em punho, desmancho alguns pontos que vejo e descubro o segredo, um misto de dobras, costuras feitas na máquina e ponto invisíveis perfeitos e feitos à mão. Pego rapidamente um caderno de anotações e com ilustrações rápidas e pequenas notas transcrevo o que antes era mistério e que agora havia virado mais uma referência pra mim.

Volto pra roupa e pro descaseador, desmanchando cada pequeno ponto que prendia aqueles tecidos em forma de calça. Primeiro o cós, que havia muitas costuras e camadas, é tirado e aí já se passaram quase duas horas. Enquanto descosturava o cós os bolsos internos foram se soltando também

Eu poderia muito bem ter apenas pegado uma tesoura e cortado em algumas partes, em minutos isso teria se resolvido, mas além de perder centímetros preciosos de tecido para o desenvolvimento de outra peça, teria perdido todo o conhecimento e carinho que essa roupa transmitiu para mim.

Ainda não sei exatamente o que esses pedaços de tecido, que antes eram roupa, irão se tornar em minhas mãos, mas espero que alguém sinta tanto amor colocado em cada ponto e acabamento quanto eu senti enquanto descosturava essa calça.

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