Como pré-aceleramos startups (parte 1): descobrindo quem é o cliente.

NEU
Núcleo de Empreendedorismo da USP
10 min readJul 1, 2018

(Esse post é o primeiro de uma série sobre primeiros passos no processo de suporte a uma startup. Ele foi criado com base nas experiências do NEU dando suporte à startups criadas por alunos da USP e, especialmente, na experiência de execução do programa de investimentos em TCC's AWC junto à equipe da Caos Focado)

O professor Steve Blank já havia avisado desde 2005, mas só aprendemos realmente após ver diversas startups passando pelos nossos processos: a arrogância é o que mais mata projetos de startups em fase de nascimento. E que arrogância é essa? A de achar que a sua solução é genial, a de querer construir um negócio sem ouvir os usuários, a de conversar com pessoas somente do seu círculo para alimentar uma ilusão confirmatória das próprias premissas. Regra número 1 para todo empreendedor: a arrogância custa muito caro.

Em seu famoso livro 4 steps to the epiphany”, Steve Blank apresenta os casos que sucumbiram à bolha.com, apresentando sempre o mesmo padrão: estavam sempre dentro dos escritórios, sem querer entender o seu usuário e suas dores principais. Disso surgiu o modelo que influencia boa parte das startups atualmente (inclusive inspirou a criação do livro "Startup Enxuta"): o Customer Development. Nesse modelo, primeiro se entende o usuário, depois se valida o produto — e somente a partir disso se constrói a empresa.

O segredo das startups segundo o professor Blank? User obsession. E é sobre essa primeira etapa de descoberta de quem é o usuário/cliente que iremos tratar nesse post.

Photo by SpaceX on Unsplash

Meta principal: encontrar um cliente com o cabelo pegando fogo.

A analogia proposta pelo pessoal da Sequoia Capital (um dos principais fundos de investimento do mundo), é simples: um cliente com cabelo pegando fogo é aquele cuja dor é tão grande que qualquer solução que você oferecer ele vai se interessar. Esse tópico é sobre dor do usuário, é sobre sempre se questionar: isso é um "nice to have" ou um "must have"? Boas startups procuram dores profundas, especialmente em contextos B2B, onde a complexidade de decisão é tão grande que as coisas só acontecem para soluções que resolvem problemas realmente relevantes.

"At Sequoia, they talk about finding customers who “have their hair on fire”. As a founder, I never took the time to really understand what that meant and I thought it was just an investor marketing saying. Now, when I talk to founders I extend the metaphor to illustrate it more clearly. If your friend was standing next to you and their hair was on fire, that fire would be the only thing they really cared about in this world. It wouldn’t matter if they were hungry, just suffered a bad breakup, or were running late to a meeting — they’d prioritize putting the fire out. If you handed them a hose — the perfect product/solution — they would put the fire out immediately and go on their way. If you handed them a brick they would still grab it and try to hit themselves on the head to put out the fire. You need to find problems so dire that users are willing try half-baked, v1, imperfect solutions." —Fonte: Y Combinator — The real product market fit

Mudança de mindset é o objetivo principal desse primeiro momento. O foco é diminuir a atenção dos empreendedores à própria solução e à tecnologia e torná-los obcecados pelo usuário. E aí você deve estar se perguntando — "legal, esse conceito de encontrar um cliente com cabelo pegando fogo é incrível, mas como eu realmente o encontro?". Agora a gente vai para o coração do nosso texto que é o passo a passo que usamos nos nossos processos de desenvolvimento de startups. :)

Passo 0 — Preparando a imersão: possibilidades e cenário atual.

Antes de começar o processo de descoberta dos clientes, gostamos de fazer um alinhamento no entendimento de mercado dos alunos. Para isso, o primeiro passo é uma busca em diversas fontes sobre soluções similares e aplicações para as tecnologias que eles estão trazendo. Aqui é mergulhar em sites como TechCrunch, ProductHunt, The Verge, CB Insights, MIT Technology Review, Life Hacker e outros para buscar o que as pessoas estão construindo no mercado/tecnologia da ideia do aluno. Nesse exercício o aluno já começa a descobrir o que tem sido criado, quais os mercados mais comuns e as soluções similares existentes. A ideia é seguir o modelo do professor Bill Aulet, do MIT: encontrar um beachhead market. Esse beachhead market usa a analogia de invasões militares pela costa. Busca-se primeiro a "cabeça da praia", o ponto mais fácil para atracar. Para o professor, um beachhead market é um mercado não tão pequeno a ponto de te matar, nem não tão grande a ponto de estar cercado de concorrentes e potenciais entrantes. Além disso, é de fácil acesso (menos burocrático, com algum contato estratégico, mais aberto a inovação etc.), sendo aqui o momento que geralmente orientamos os alunos a não tentar vender para clientes públicos, que por natureza são lentos, burocráticos e competitivos.

Após esse primeiro exercício, trazemos uma outra ferramenta do professor Steve Blank: o petal diagram. Nesse diagrama de pétalas, o aluno é provocado a pensar em 5 pétalas, ou seja, 5 mercados diferentes em que pode aplicar a sua solução (provocando assim uma exploração mais criativa e fora da caixa). Além disso, em cada pétala ele é orientado a procurar identificar quais competidores e potenciais entrantes ele encontrará nesse mercado. Esse primeiro exercício garante maior compreensão de possibilidades e de soluções existentes, já trazendo um amadurecimento prévio na visão do aluno sobre o seu projeto.

Nessa imagem feita pelo Steve Blank, uma startup de educação por vídeos explorando mercados diferentes e analisando concorrentes potenciais. Aqui se explora o Customer Segment, ao passo que as outras atividades temos um foco na proposta de valor.

Passo 1 — quem é meu arquétipo? O começo do nosso Ciclo de compreensão do usuário.

Poderíamos chamar de persona, de usuário, de arquétipo ou de qualquer outra coisa (*Pedimos desculpas aos mais puristas. Prometemos aprofundar no segundo texto da série). Utilizamos o conceito de arquétipo como um "usuário ideal", uma representação de características principais das pessoas cuja dor estamos tentando resolver. O primeiro momento vem com um exercício para hipotetizar quem seria esse usuário. Para construir a primeira versão do arquétipo, o importante é responder algumas dúvidas centrais sobre esse usuário . Estas são: Quais são as dores que ele tem nesse contexto que quero resolver? Qual é o contexto e a rotina em torno dele? Aqui, a ideia é fazer um ranking das dores nesse determinado contexto.

O output esperado aqui são: (i) uma ideia sobre o arquétipo do cliente/usuário que se está atacando (pode-se ter clientes diferentes dos usuários e, em fase inicial, pode-se ter mais de uma ideia de mercado possível, com arquétipos diferentes); (ii) um ranking de possíveis dores desse arquétipo; (iii) uma montanha de dúvidas sobre os arquétipos.

Passo 2 — transformando a montanha de dúvidas em orientação à coleta de dados.

Com a montanha de dúvidas em mãos, o passo seguinte é organizar uma matriz de "sei / não sei". É simples: duas colunas — uma das coisas que eu sei sobre meu usuário e outra das coisas que não sei e preciso descobrir. Atenção: você só coloca na coluna "sei" as coisas que você conseguiu validar em entrevistas e com um volume de dados relevantes. Esse processo é chamado pelo Steve Blank de "empreendedorismo científico" por causa disso — é sempre orientado a hipótese e validação por meio de coleta de dados na rua. A capacidade de organizar o pensamento nesse formato "científico" é considerado fundamental nos nossos programas, especialmente no AWC.

"When I start peeling back the assumptions around product, words like “when we interviewed thirty potential users” resonate more strongly than “because I read it in a report.” (…) The best investors are more interested in how you think than what you know." Kate McAndrew — Bolt VC

Passo 3: os "não sei" se transformam a partir da coleta de dados.

Agora que se tem as dúvidas organizadas em uma matriz, isso é transformado em um plano de entrevistas (a coleta de dados também pode ser feita por observação e outros, mas nos concentramos em entrevistas). Dado que o aluno tem diversas dúvidas, quem é a pessoa certa para entrevistar? Quais perguntas ele vai fazer? Construir um protocolo de entrevistas baseado nas dúvidas levantadas é elemento central nesse processo cíclico de aprendizado. Além disso, temos bastante cuidado em orientar sobre como fazer boas entrevistas (lembrando que entrevistas são muito diferente de formulários ok? sempre lembramos que é muito importante falar com as pessoas), trazendo as regras como (i) pergunte questões somente sobre o passado e o presente, pois questões sobre o futuro tendem a entrar em um campo de viagens e irrealismos; (ii) ESQUEÇA SUA SOLUÇÃO, vá entender a dor do usuário, falar sobre a solução pode gerar um viés no entrevistado e também te colocar com foco em convencimento em vez de entendimento; (iii) siga o protocolo "what do you ask?":

  1. Me conte a última vez que você vivenciou o problema (inserir problema).

2. O que te agonizou mais nesse momento?

3. Por que isso foi tão difícil? (aqui tente estressar bastante, vá perguntando "porquês" e mais "porquês" para chegar à causa raiz do problema).

4. Como você resolve esse problema atualmente? (tente descobrir as gambiarras utilizadas, e também tente perguntar por que ele não utiliza as soluções atuais)

5. O que falta para essa solução atual ser nota 10? (perguntar deste modo ajuda a tirar o entrevistado da zona de — "está bom desse jeito")

Depois de chegar à quinta pergunta, tentar repetir por três vezes essa sequência ("me conte uma outra vez que você vivenciou isso"). O aluno pode usar o protocolo de maneira mais leve, sendo mais sutil e interessante, não necessariamente falando dessa forma exata, ok? Além disso, entendemos que toda abertura desse tipo é uma oportunidade para receber feedbacks sobre a ideia, e que geralmente as pessoas não se controlam e acabam falando sobre, então o melhor é orientar a apresentação da solução no final da entrevista, buscando coletar feedbacks, coletar indicações sobre outras pessoas que podem se interessar e sugestões de outros mercados possíveis. Nessa sugestão de mercado possíveis, já vivenciamos diversos momentos em que surge um mercado cheio de clientes com o cabelo pegando fogo não antes vislumbrados. :)

Terminou a entrevista? Compile os aprendizados e conecte com o passo 1 desse ciclo: melhore o entendimento do seu arquétipo. Esse processo cíclico de arquétipo > "sei/não sei" > entrevista > arquétipo melhorado é incrível e traz muito amadurecimento, especialmente quando conectamos com outros elementos, como as participação de mentores, especialistas e outros formatos de feedback que falaremos mais abaixo. Após 30/40 entrevistas, os participantes já começam a identificar grandes mercados com cabelo pegando fogo, e após 60/70 entrevistas já se tem muita consistência do usuário, do mercado e de detalhes (trataremos isso mais pra frente, na parte 2 dessa série). A meta é sempre 100 entrevistas. Chegando nesse número, temos certeza que a maturidade na compreensão do usuário é realmente bem embasada em dados e em um processo pouco enviesado.

Dicas para agentes de aceleração: não é sobre replicar o processo, mas sobre domá-lo.

Os "agentes de aceleração", ou qualquer outro nome que tenham no seu programa, desempenham um papel muito rico no guiar desse processo. Uma coisa importante é que processos como estes existem aos montes, e há muita gente replicando — o que não necessariamente significa sucesso. Um bom acompanhamento exige experiência, intuição e compreensão diferenciada do processo de amadurecimento de uma startup em estágio nascente. Só replicar fazendo barulho com isso é um desserviço aos ecossistemas brasileiros. Algumas dicas importantes sobre o "domar o processo" de descoberta do cliente:

  • O papel do agente de aceleração se resume em três pontos: garantir que os participantes estão (i) falando com as pessoas certas, (ii) fazendo as perguntas certas, (iii) aprendendo com o processo. Parece simples, mas são 3 tópicos desafiadores. Ter isso em mente ajuda sempre na orientação. Muitos mentores se perdem exigindo conhecimentos de livros sobre empreendedorismo ou qualquer outra coisa para se posicionar como superior — o bom mentor é socrático e, pela experiência adquirida, sabe orientar sem precisar reforçar sua auto-imagem.
  • A orientação também deve ter mentalidade científica: bons orientadores não dão as regras ou ditam os próximos passos, mas sim fazem boas questões, provocam com perguntas do tipo "me convença" e estimulam sempre a argumentação baseada em dados. Se a premissa não foi baseada em entrevistas, provoque-o a ir pra rua. 3 entrevistas não são suficientes, nem 10, nem 20. É preciso dar o sangue.
  • Comunidade vibrante importa: puxar uma salva de palmas quando se fazem muitas entrevistas, animar os participantes com competições saudáveis, entender as motivações e trabalhar com elas faz muita diferença nos programas. Bons agentes de aceleração são bons com gente.
  • One-to-one's dão profundidade: conversas individuais entre agente de aceleração e equipe ajudam a deixar mais claro quais os próximos passos, a criar compromissos de metas e a ajudar a limpar problemas que possam estar existindo no processo. Essas conversas, geralmente com duração de 1 hora, ajudam muito no engajamento dos participantes e no desenvolvimento de uma visão estratégica mais madura.

Além desses tópicos, consideramos muito importante o formato de flipped classrooms que utilizamos. As flippeds são encontros remotos quinzenais nos quais eles apresentam a solução para os coordenadores do programa (agentes de aceleração) e para outros empreendedores. Todos ficam no Slack enchendo de feedbacks e sugestões sobre o projeto. Fazemos isso por acreditar que muitas vezes outros alunos tem insights mais importantes que um agente de aceleração, o que é ótimo. Hoje em dia, também contamos inclusive com uma Rede Alumni contribuindo nesse momento. Reforçamos que o papel do agente de aceleração nesse momento é “trucar” bastante as premissas apresentadas pelos alunos, com o objetivo de fazer com que o aluno leve muitas dúvidas para casa, tendo a obrigação de convencer, na próxima interação, com bons dados coletados.

Enfim, já são mais de 200 equipes que passaram por uma estrutura similar a esse processo — e podemos garantir que esse processo cíclico de amadurecimento faz muita diferença. É de arrepiar quando um aluno chega contando que uma entrevista trouxe algum breakthrough que sequer imaginávamos e que passa a fazer muito sentido. Nos próximos textos vamos contar as etapas seguintes que têm sido implementadas especialmente no AWC, e como isso tem gerado resultados legais em 3 anos, como 80 projetos gerados e mais de 10 startups dando certo, com mais de 1,5 milhão em faturamento gerado por elas. Conheça o programa em: https://awc.institutotim.org.br/

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Até a próxima! :D

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