O processo criativo na transcriação

Como estruturamos a criatividade na Decolar

Adriana De Souza
UX Despegar
8 min readSep 24, 2021

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Quando entrei na Decolar, há 4 anos, a transcriação não existia. O que havia nesse momento era um punhado de excels, apresentações e e-mails desorganizados gritando por ajuda localizada. Arregacei as mangas e comecei a colocar o jeitinho brasileiro onde tudo era “habitacao”, “desayunacao” e “hotelinho”. O tempo foi passando, as coisas foram mudando, o site ganhou outras cores, outros textos, outra voz. Quando viam que os números justificavam as abordagens que usava, me perguntavam como eu fazia aquilo e eu não sabia o que dizer. Para mim era algo tão mágico e ao mesmo tempo tão natural, que não tinha explicação. Era como explicar a fé para um cético ou resumir saudade em nostalgia.

Porém, quando começamos a estruturar a área, definindo os primeiros templates para as solicitações de tradução, vi que algo maior unia tradux: idioma, cultura, mercado e, especialmente, pessoas. Com esses quatro pilares, começamos a construir a base da nossa casa, que não era um lugar de tradução literal, era uma pousada bem pé na areia, alternando Tom Jobim e Raça Negra com Iracema, Dom Casmurro e Vidas Secas. Uma casa com cheiro de café passado na hora e pão de queijo quentinho, que compartilha um “se tu quiseres” com um “porra, meu” no meio de tanto “uai”. E sem nenhum glamour e muitos “migs”, percebi que o processo criativo sempre esteve ali, como oração de benzedeiro, esperando o 25 de dezembro para passar adiante em um papel.

O que você vai ler nas próximas linhas é o resultado de um processo feito por uma equipe que se divide entre biscoito e bolacha, que compartilha a faixa etária, os gostos e o apelo à consciência social&ambiental. E você vai ver que isso explica muita coisa sobre como fazemos nosso trabalho e também as nossas crises com o fazer.

Vamos lá, primeiro o café. Nenhum dia pode começar 100% se não tivermos o cafezinho para acompanhar o brief.

1.O Brief, el brief, THE BRIEF

O Brief dentro da transcriação se divide em 2 partes: investigação interna e externa.

Uma boa transcriação é como recriar uma obra de arte, o artista não pode fazer o seu trabalho sem antes observar com atenção todos os detalhes. O mesmo fazemos com um texto. Nesse brief, começamos pela investigação interna:

  • Identificamos se existem termos que se repetem.
  • Vemos se todas as palavras podem ser traduzidas ou se precisamos de informação extra.
  • Falamos com stakeholders para entender melhor o contexto da história, ver se será destinado a uma região específica do Brasil ou não, por exemplo. Isso nos ajuda a definir o uso de expressões ou pronomes próprios da região.
  • Conversamos com companheiros do squad que solicitaram o pedido para ver se já fizeram algo parecido no passado.
  • Se é um produto novo, vemos com o jurídico se existe alguma palavra ou expressão que não podemos utilizar.

Com tudo isso em mãos, vamos para fora, ao mundo mágico do Google.

  • Analisamos se há algo parecido no mercado.
  • Vemos que palavras ou expressões estão sendo usadas para comunicar o tema fora da companhia.
  • O que os usuários estão falando nas redes sociais e, especialmente, como estão falando sobre o assunto.

Terminado a análise, partiu tradução.

2. Prototyping, o rascunho estilizado

Nessa etapa o que fazemos primeiro é a tradução operativa. Traduzimos o documento considerando o idioma e estilo do nosso manual de voz e tom.

  • Utilizamos o EVA CONTENT, nosso backoffice de conteúdo, uma ferramenta interna para buscar termos recorrentes e evitar inconsistências.
  • Se ficarmos em dúvida entre dois termos, vamos ao Google Trends para comparar qual é o mais utilizado.
  • Se ainda assim não estivermos satisfeitas, pedimos ajuda aos universitários, que, no nosso caso, estão em um chat amizade chamado “content BR”.

Tradução feita, correção na área.

  • Revisamos a acentuação, pontuação e concordância. Cada uma no seu quadrado, esse ainda não é o momento do peer review com a coleguinha.
  • Lemos em voz alta uma ou duas vezes a fim de identificar algum termo confuso que possa gerar estranheza na frase.

Revisão pronta, hora do espetáculo! Aqui é onde a transcriação entra em cena, melhor dito, na casa. Com a estrutura do texto já definida, a nossa pousadinha pé na areia vai ganhando ares cada vez mais brasileiros.

  • Identificamos oportunidades de usar expressões ou palavras brasileiras. Tem horas que é simplesmente trocar o “desfrutar” por “curtir” ou “Bora” por “Vamos lá” ; outras vezes, reescrever todo o texto. Para fazer isso:
  • Consultamos o imaginário cultural brasileiro, ferramenta interna disponível para consultas.
  • Conversamos no chat BR sobre as possibilidades de uso de palavras ou expressões para o contexto, sempre considerando: produto, o objetivo de negócio e do usuário.
  • Geralmente, a ligação cultural está no imaginário de quem faz a transcriação, conforme o seu vínculo com a cultura e com o consumo de conteúdo brasileiro nos distintos meios de comunicação/redes sociais. Por isso as pessoas são um dos pilares fundamentais dessa equipe.

Mas, bom, se não é possível fazer alguma relação cultural porque a história vai para um fluxo de checkout ou pós-venda, por exemplo, tudo bem. Nem todo lugar dá para colocar uma rede, não é mesmo?

Terceiro ponto, peer review.

3. Peer review, critique, peerzinho

A transcriação dentro de UX não se faz sozinha. O que mais temos no dia a dia são chats que começam assim:

Oi, migs, tá boa? Você pode fazer um peerzinho pra mim?

E quem diria que uma simples palavra conseguiria evitar auditorias de conteúdo, e-mails chatos e usuários frustrados, não é mesmo? Mas o nosso peer review não é só uma olhadinha básica. Nessa etapa:

  • Checamos que o uso da voz e tom estejam corretos.
  • Revisamos pontuação, acentuação, concordância, número de caracteres, contexto de uso, etc.
  • Validamos a transcriação através do nosso índice de qualidade.
  • Fazemos provas de conteúdo com Friends &¨Family, sempre e quando o conteúdo não seja confidencial, e, quando possível, com usuários reais.

Além disso, nesse momento temos alguns segredinhos.

Por mais que ninguém fale quantas colheres de açúcar são ideias para fazer uma boa caipirinha, no nosso caso a transcriação precisa de:

  • Descansar pelo menos 1h antes de ser revisada pela pessoa que fez o texto. Assim evitamos estar enviesados na leitura. Se é um fluxo grande e podemos esperar, o ideal é voltar a ler depois de um dia.
  • Ler em voz alta. De novo e de novo. 3x no mínimo.
  • Se o conteúdo é de uma página, uma pessoa pode ser a responsável pelo peer review, mas se estamos falando de um fluxo longo, pelo menos mais um par de olhos é importante.
  • Nunca, nunca mesmo, entregar a transcriação sem a revisão de outra pessoa. Se não tiver companheiros de equipe, peça para alguém: amigo, amor, cara do quiosque.

E, por último, com a pousada já toda mobiliada com cadeiras de praia, rede, quiosque, tucanos de madeira pendurados, é hora de registrar nosso inventário e esperar os hóspedes, observando como eles interagem nesse lugar para poder fazer alguma alteração no futuro.

4. Acompanhar e documentar

Essa é uma das etapas mais importantes do processo, porque é onde vemos o que fizemos e registramos o que trabalhamos para as futuras tradux. Aqui é momento de:

  • Acompanhar as provas de usuário, métricas e seguimento da história para definir possível alteração de wording.
  • Observar e registrar o que as pessoas usuárias entendem ou fazem em determinada parte do fluxo.
  • Registrar novas palavras e expressões em nosso glossário interno.
  • Quando sair à produção, incluir as telas em uma ppt de exemplos de transcriação. Isso é fundamental para levar em algum evento externo ou apresentar para a companhia. Se ela vier acompanhada de dados, melhor ainda. Because in data, we trust!

Para terminar, e acho que as meninas vão concordar comigo, se pudéssemos dar só uma dica sobre a transcriação seria esta:

VIAJE.

Dentro e fora do Brasil, para perto e para longe de casa. Passe alguns dias ou anos em lugares totalmente diferentes; absorva ao máximo a cultura local, e você vai ver que os conselhos técnicos serão menos importantes do que as dores e delícias de representar um país inteiro.

Mas se ainda quiser as dicas técnicas, confira algumas que saíram da nossa oficina:

  • Crie uma pasta de referência no pinterest, notion, doc, com seus sites e apps favoritos.
  • Leia muito material em sua língua materna e na que você usa para transcriar.
  • Escute música e podcasts nos dois idiomas.
  • Crie um excel ou doc com suas gírias e expressões favoritas.
  • Observe: cores, sons, gostos. Pode parecer uma bobagem, mas te ajuda a criar textos mais sinestésicos.
  • Todas às vezes que estiver transcriando, pense se você está conseguindo explicar o mar para quem não conhece. Fuja dos lugares-comuns. Inspire o leitor.
  • Estude mais sobre transcriação, participe de eventos, faça cursos, conecte-se com as pessoas.
  • Conheça a pessoa usuária da sua empresa: idade, gostos, região.
  • Busque referências quanti.
  • Participe de testes com pessoas usuárias.
  • Crie imaginários para o seu produto e defina onde poderia aplicá-lo. Use data quali!
  • Veja pelo menos 1x por semana o seu conteúdo no app da sua empresa ou no site. Melhor em mobile, já que nosso dia a dia é mobile first.
  • Teste, teste, teste. Se a informação não é de algum produto confidencial, teste sua transcriação no grupo da família, com os amigos, com todo mundo.
  • Leia poesia brasileira, argentina, russa. Você vai ver que isso vai te ajudar a sintetizar. Leia romances, isso vai te ajudar a inspirar.
  • Faça das redes sociais e das suas revistas&jornais preferidos o seu canal de inspiração e contato com a cultura popular.

E nunca se esqueça do filtro solar.

Obrigada pela visita. Volte quando quiser, a casa é sua.

Com carinho,

Equipe Tradux

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