O futuro do design é sensorial

juliana franchin
Time de Experiência Globo
8 min readMar 3, 2022

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Um olhar para o design e tecnologia 14 anos atrás e daqui a 14 anos

Texto publicado originalmente para a série “Design 2022: Uma visão brasileira e colaborativa sobre design e comunidade

O ano era 2007. Meu projeto de conclusão de graduação em Desenho Industrial estava prestes a ser apresentado. Acordei de uma noite curta de sono e me preparei para falar sobre um assunto que até hoje me fascina: os 5 sentidos e sua relação com o design. A própria apresenztação já era uma experiência sensorial. Eu levei comidinhas, perfume, deixei um som ambiente… Queria falar de cada um dos sentidos e encantar a todos que estivessem ali para assistir.

Durante 30 minutos, meu ponto era mostrar que design era muito mais que visual.

Sim, nós designers temos uma capacidade incrível de criar soluções esteticamente agradáveis e talvez tenha sido isso que tenha conduzido milhares de outros profissionais por essa trilha.

Durante a faculdade fiz vários projetos e a grande maioria deles era avaliada por diversos critérios, quase todos extremamente visuais. A mensagem está legível? Os elementos estão dispostos de forma equilibrada, com a informação hierarquizada? Os símbolos escolhidos representam bem a mensagem desejada? A entrega está bem acabada? E aquela pergunta subentendida que todo mundo secretamente faz: tá bonito?

Não me entenda mal, esses conceitos todos foram uma rocha sólida para a minha formação. Tangibilizar ideias, conceitos e fluxos é uma ferramenta que um designer só poderá sacar do seu cinto de utilidades depois de ter acesso a essas referências e aprimorar suas habilidades. Mas na medida em que fui avançando na minha graduação comecei a sentir que algumas soluções que via eram esteticamente bonitas mas conceitualmente monótonas e óbvias. Fui entendendo que os recursos visuais disponíveis para destacar nossos projetos, em um mundo cada vez mais saturado de informação, foram ficando ineficientes. Explorar mais as possibilidades dos outros sentidos me pareceu ser um ótimo tema para a conclusão do curso.

Pesquisando sobre branding emocional e o funcionamento do nosso córtex cerebral, muitos dados me fizeram refletir sobre a importância de explorarmos os sentidos para fazer nossa informação sobressair mediante um ambiente cada vez mais saturado de estímulos e pessoas tão diversas:

  • A conversão de um estímulo em um impulso eletroquímico nervoso no cérebro para cada sentido no nosso corpo
  • Como a memória de experiências passadas, estado atual de atenção e estrutura genética tornam a percepção de cada indivíduo única
  • Como o ser humano vive cerca de 25 anos de plenitude dos seus sentidos, não podemos nos apoiar tanto na acuidade dessa percepção
  • Quando aparentemente um sentido está adormecido, ele nos prova que na realidade eles estão sempre em alerta. Por exemplo quando uma mensagem subliminar é absorvida pela nossa mente sem nos darmos conta
  • Há mais conexões entre a região olfativa do cérebro ao complexo amídala-hipocampo (onde as memórias emocionais são processadas) do qualquer outro sentido tem. O aroma não é filtrado pelo cérebro, é instintivo e involuntário.
  • O ser humano é um onívoro, palavra que significa “come de tudo”. A humanidade chegou aonde chegou porque, em todo lugar da Terra, a gente sempre encontra algo pra comer.

Quando chegou para mim a proposta de falar sobre o futuro do design, resolvi resgatar qual era minha visão de design 14 anos atrás e entender o que mudou até aqui. E olha, muita coisa mudou mesmo! No entanto, no que diz respeito aos conceitos do design sensorial que abordei lá no auditório da Federal do Rio de Janeiro, sinto que a base continua bem atual.

Visão

O trabalho do designer continua bastante apoiado no seu resultado visual, talvez mais do que nunca, já que digitalizamos muitos processos na nossa rotina. Smartphones se massificaram, o acesso de internet de qualidade se popularizou e, mais recentemente, o efeito restritivo da pandemia de Covid-19 nos obrigou a enfrentar essa digitalização na marra.

Nunca mais esperei na fila para fazer transações no banco, para comprar de ingressos, não precisei mais (tantas vezes) de dinheiro trocado para pagar o táxi, as mil fotos das minhas viagens foram se acumulando na nuvem! Tudo isso era físico antes e se digitalizou por completo e as interfaces que desenhamos precisam nos ajudar a cumprir essas tarefas com eficiência.

Esse acesso a diferentes dispositivos tornou o design de interface menos artesanal e permitiu que nossos critérios para um bom design considerassem mais o posicionamento de nicho, a experiência da jornada de uso ou uma tecnologia mais avançada. Temos um desafio enorme de tentar transportar jornadas que antes eram presenciais para o digital. Existem telas que cabem no pulso e outras que tem 70 polegadas, pessoas com necessidades diversas e diferentes graus de intimidade com tecnologia.

Com serviços cada vez mais essenciais se digitalizando, veio também a consciência cada vez maior de que designers precisam projetar pensando em acessibilidade. Não só para cegos mas também para quem já tem dificuldade de enxergar letras miúdas. Ou não só para surdos mas legenda em videos para quem não pode ativar o som, só para citar alguns exemplos.

Tato

Não só estamos mais conectados com telas, agora elas são touchscreen! O instinto mais natural do ser humano que é apontar, pegar e mexer com as mãos veio e ficou. Os bebês estão dando swipe em revistas! As interações ficaram mais complexas, precisas e toda uma nova guideline universal de gestos de navegação foi se estabelecendo ao longo dos anos.

A tecnologia ficou tão natural que é comum pessoas (eu) sentirem o celular vibrar sem que ele tenha sequer se mexido. A ativação de lembretes está vibrando nos nossos pulsos. Como designers, estamos usufruindo desses recursos para tentar desviar a atenção do usuário para nós: “Ei, ignore todos os outros estímulos agora que eu quero te falar uma coisa através dessa mensagem”. (É bom que essa mensagem valha a pena para continuar falando comigo!)

“Enquanto a maioria dos sentidos nos informa sobre o mundo, geralmente é o tato que nos permite possuí-lo de fato, de envolver nossa consciência ao seu redor. O consumidor gosta de brincar com o produto e imaginá-lo sendo seu antes da compra.”

Esse trecho do projeto diz muito sobre a experiência de compras online. Ficou muito fácil comprar pela internet e o desafio desses lojistas digitais hoje é representar características do produto de uma maneira que os consumidores sintam o impulso de comprar e tenham a certeza de que estão fazendo a melhor escolha. Como é cor, o tamanho, a textura, a resistência do tecido ou o seu peso real? Quem que se entende com aquela tabela de medida de roupas, afinal?

Os produtos são representados em diferentes ambientes, roupas em modelos de diferentes corpos. Influenciadores são pagos para fazer o unboxing e descreverem a sensação de receber aquele produto pela primeira vez. Experimentação de roupas em casa são cada vez mais utilizadas como recurso para tirar a dúvida que o ambiente do provador antes respondia, mas agora você consegue combinar com suas próprias roupas, seus sapatos, seus acessórios.

Audição

O design e a audição caminharam juntos em muitos avanços na última década. Conseguimos dirigir por uma cidade desconhecida com o Waze, pedir um almoço em um país de língua estrangeira com o Google Translate, pedir pra Alexa pular uma música chata na hora do banho ou permitir que usuários com limitações visuais consigam, sozinhos, cumprir tarefas simples com leitores de tela nativos nos seus smartphones. Tudo isso é design!

A experiência do Waze precisa considerar o estado de atenção do motorista, a velocidade do veículo para dar as orientações a tempo, conciliar o que diz o guia com o que aparece no mapa, além de diferenciar seus guias com vozes personalizadas. Projetar aplicativos acessíveis, para limitações que não enfrentamos, requer muito estudo e feedback dos usuários.

Na minha opinião, temos hoje o melhor dos mundos para a experiência de áudio: uma biblioteca infinita de músicas no meu smartphone, vídeos e séries para todos os gostos com uma conexão de internet ubíqua e rápida, audiolivros e podcasts se popularizando cada vez mais, além de uma tecnologia de áudio sem fios, portátil e super conectada de maneira invisível!

Olfato

Diferente do que todos esperávamos, ainda não foi dessa vez que a TV com cheiro veio para nos deixar com água na boca. Quem sabe daqui a 14 anos…

Brincadeiras à parte, apesar de o olfato ter essa capacidade de nos remeter a um estado de nostalgia, memória afetiva ou desconforto (dependendo do cheiro) ele é um sentido que acabou sofrendo mais impacto no mundo mais digitalizado em que estamos. Isso porque o seu efeito em usuários está muito condicionado ao mundo físico e vivemos uma realidade cada vez mais hermética, fechada com ar condicionado.

Quantas vezes achei que não estava com fome até passar ao lado de uma padaria? Que lembrei que o vestido daquela festa tinha que ser lavado, quando senti o cheirinho de sabão da lavanderia? Que comprei aquele perfume da amostra da sacolinha da loja? Imagino que muitos negócios perderam novos clientes ao se digitalizarem, por precisarem que eles ativamente solicitassem seus serviços, já que muitos deles foram fisgados pelo aroma que involuntariamente ativou a sua curiosidade.

O design desses serviços passa por identificar o melhor momento, localização, aroma que represente seu posicionamento de marca ou ainda representar visualmente essa relação afetiva a qual o aroma do seu produto pode remeter.

Paladar

Os últimos 14 anos foram marcados pela gourmetização: conseguimos trazer um storytelling diferenciado para vender as mesmas coisas mas com um valor beeem mais elevado. Quantas combinações diferentes de pão, carne e queijo são possíveis para continuarem surgindo novas hamburguerias? Essa tem farelo de bacon. Esse é envolto em bacon pro fora. Nesse o bacon é defumado em forno a lenha (isso existe?) Essa hamburgueria tem tema de filmes enquanto a outra tem tema viking. De novo, tudo design (e marketing).

O setor alimentício também passou por um processo de digitalização. Ficou muito cômodo fazer esses pedidos, que antes não tinham a facilidade de ter um cardápio disponível, customizável, com fotos de quase todos os itens, o acompanhamento da sua entrega em um mapa ao vivo. O aplicativo inclusive te ajuda a decidir que tipo de comida você quer comer — o que em um mundo de 2007 seria o equivalente a dar várias voltas na praça de alimentação do shopping e brigar por uma mesinha para sentar.

Também vimos a comida ser diferencial de serviços nada relacionados a restaurantes. Quem aí lembra do saudoso tempo em que o diferencial do Uber eram os carros pretos, com motoristas de terno que ofereciam água e balinha? Vimos surgir as barbearias com cerveja e mesa de sinuca e os salões de beleza com cafezinho e espumante

E o futuro?

Em 14 anos, os fundamentos do que eu gosto de chamar de design sensorial se mantiveram muito relevantes. No final, eles só foram se adaptando à realidade que as transformações da tecnologia e os contextos sociais nos proporcionaram. Fato é que somos seres visuais e sempre vamos ser, mas enquanto adicionarmos às nossas soluções diferentes formas de explorar o potencial de cada um dos sentidos, nos manteremos na frente na corrida pela diferenciação do mercado saturado em qualquer que seja o cenário.

Agora pensando nos próximos 14 anos, aí vem as previsões:

  • Será que nossos corpos se tornarão super corpos, com super sentidos? Como mapear todas essas personas?
  • Que alimentos estaremos comendo em um universo superpopulado? Que experiência de distribuição precisaremos pensar?
  • Será que ainda precisaremos de um smartphone para intermediar nosso contato com estímulos e informação, tal qual um cabo fazia antes da popularização do Bluetooth? Qual vai ser o equivalente do touchscreen no futuro?
  • Será que nossa percepção de mundo físico muda a partir do momento que simulações holográficas nossas podem estar espalhadas por qualquer lugar? O que acontece com a indústria de hotelaria?
  • Que jornadas poderemos começar a projetar quando estivermos mais e mais presentes em outros planetas? A indústria de hotelaria muda para lá?
  • Será que eu tenho mesmo noção do que são 14 anos?

Fica aí o questionamento :)

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juliana franchin
Time de Experiência Globo

Lead UX Designer na Globo+ Recomendadora de podcasts em Eu Amo Podcast ❤