Prepare-se para uma pesquisa de sucesso

Um guia com erros comuns e como se prevenir contra eles

Gabriel Bastos
Time de Experiência Globo
13 min readMar 13, 2020

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Entrevistar usuários é uma prática imprescindível no dia a dia de trabalho de um designer. No entanto, apenas ter uma conversa com essas pessoas pode não te levar a lugar algum. Você já terminou uma entrevista com a sensação de que nada do que o usuário falou foi muito profundo e impactante?

Considerando que o perfil desse usuário estava alinhado ao perfil dos usuários do seu produto/serviço, provavelmente a culpa não foi dele.

O que pode ter acontecido:

#1 — A forma como você pergunta pode estar inadequada

Entrevistar não é conversar, e também não é fazer qualquer pergunta. Por isso um roteiro de entrevista é preparado antecipadamente e de forma planejada.

Existem formas diferentes de se perguntar sobre o mesmo assunto, e cada forma te trará um tipo de resultado.

Perguntas abertas x perguntas fechadas

Basicamente podemos dividir as perguntas nesses dois grupos.

Perguntas abertas são aquelas que podem ser respondidas de muitas formas diferentes, e permitem que o usuário elabore sua resposta e se explique.

Perguntas fechadas são aquelas mais direcionadas, que vão direto ao ponto e, na maioria das vezes, terão 2 respostas: ‘sim’ e ‘não’.

Em geral, quanto mais perguntas abertas você fizer, maior será a quantidade de insights e pontos de vista inesperados na sua pesquisa. Você não quer apenas saber se o usuário gostou da sua solução de interface ou se não gostou. Você quer saber o que ele entendeu dela, o que fez ele ter esse entendimento e o que ele acha que é possível fazer nela. Essas informações serão importantes pra você continuar aperfeiçoando sua solução de forma mais precisa.

Exemplo de aplicação em uma entrevista em profundidade:

A. Resposta para uma pergunta fechada:

Gabriel, você gosta de comer chocolate?

Gosto sim / Gosto muito / Adoro, como todo dia

B. Resposta para uma pergunta aberta:

Gabriel, o que você gosta de comer?

Nossa, tanta coisa…Gosto de chocolate, pipoca, lasanha, strogonoff, sorvete…Eu sou uma pessoa que gosta muito de comer, não importa se é doce ou salgado.

Viu como é diferente? Com a segunda pergunta, você dá abertura pra que o usuário possa responder de forma mais completa, e assim podem surgir informações importantes e inesperadas, como saber que eu sou uma pessoa que gosta muito de comer, não importa se é doce ou salgado.

Isso quer dizer que você não deve usar perguntas fechadas?

Não, mas evite começar por elas. Perguntas abertas são boas para iniciar porque te dão um panorama geral: seja em relação à contexto de uso, opinião, entendimento de interface etc. Depois que você entende esse panorama, você tem mais propriedade pra mirar em assuntos/elementos específicos. Além disso, pergunte sempre o porquê. Um ‘sim’ ou ‘não’ é menos relevante do que o raciocínio do usuário por trás dessa resposta.

Gosto sempre de usar a analogia do funil. Pense em forma de funil: começando pelos assuntos e perguntas mais abertos e seguindo para os mais fechados.

Exemplo de um funil de perguntas:

1. Quando você pensa na palavra “notícia”, o que te vem à mente?

2. Como você se mantém informado sobre os acontecimentos do dia a dia?

3. O que você sente que é importante para você saber?

4. Em quais momentos você consome notícias?

5. Quais sites/portais você acessa para se informar?

6. Você acessa algum site de notícias estrangeiro? Qual? O que te motiva a acessá-lo? Que tipo de notícias você consome nele?

7. Você costuma acompanhar algum canal de notícias da sua região? Quais? Por que você consome?

8. Você é o tipo de pessoa que sente necessidade de acompanhar algumas notícias em tempo real? (no momento em que estão acontecendo). Por quê? Que tipos de notícias? Como você faz pra acompanhar esses acontecimentos?

Conseguiu perceber como as perguntas vão se tornando cada vez mais específicas? Eu comecei perguntando de forma aberta sobre notícias em geral, e terminei perguntando de forma fechada sobre notícias em tempo real.

Perguntas conducentes

São perguntas que, através das palavras utilizadas, conduzem de forma enviesada a resposta do entrevistado. Elas tornam difícil uma resposta que expresse uma opinião diferente e, em um teste de usabilidade, acabam dando pistas sobre elementos e fluxos da interface.

Perguntas enviesadas resultam em respostas que não correspondem de fato ao que o usuário pensa, como ele se comporta ou à forma como ele usaria seu serviço na vida real. Quanto mais enviesadas são as perguntas, menores serão os insights.

Vamos ver dois exemplos:

1

A. Pergunta enviesada

O que você acha que esse botão faz?

Se o usuário ainda não tiver falado sobre isso, você acabou de informar a ele de que o elemento específico se trata de um botão, e perdeu a oportunidade de descobrir que talvez ele não percebesse como um botão, mas apenas como o título de uma sessão.

B. Perguntas corretas

O que você acredita ser capaz de fazer aqui?

Você viu isso aqui? (botão)

O que você entende que é isso?

Qual a finalidade disso?

2

A. Pergunta enviesada

Você clicou naquele botão pra ver mais episódios?

  • Talvez o usuário nem soubesse pra que servia o botão e estava apenas tentando descobrir o que ele encontraria ao clicar. No entanto, como ele clicou no botão e encontrou outros episódios, há grande chance dele responder ‘sim’ pra sua pergunta ao invés de falar ‘não, estava apenas tentando entender pra que servia’.
  • Talvez o usuário esperasse encontrar diversas coisas ao clicar no botão: sinopse da série, classificação, elenco E episódios. Mas a resposta dele pra sua pergunta pode ser ‘sim’ porque ele realmente esperava encontrar os episódios. Agora, pra que ele dê uma resposta completa, vai precisar assumir uma posição contrária à você e dizer ‘não, na verdade eu esperava acessar a página da série’.

B. Pergunta correta

Com que finalidade você clicou naquele botão?

Dessa forma, além de não influenciá-lo com qualquer informação, você vai dar abertura pra que ele pare, reflita e te diga sobre o que ele estava pensando no momento em que clicou no botão.

Duas perguntas seguidas, uma pergunta respondida

Durante a entrevista, você começa a aprofundar o assunto. O usuário responde algo interessante e, como um brainstorming (literalmente), você começa a pensar em diversas perguntas que quer fazer, ao mesmo tempo, e acaba saindo algo como:

E o que você fez quando isso aconteceu? Já tinha acontecido com você antes?

Seguida de uma resposta parecida com:

“Já…já tinha acontecido sim, quando eu estava na rua.”

Percebeu que uma das perguntas ficou sem resposta? Se você quer que elas sejam respondidas, pergunte uma coisa de cada vez.

#2 — O usuário pode não ter compreendido a tarefa

Quando planejamos um teste de usabilidade, tão importante quanto o escopo do que será testado e a ordem das tarefas, é pensar em como as tarefas serão pedidas para o usuário.

Contextualização é a palavra-chave. O storytelling da tarefa é muito importante para que o usuário entenda o que você deseja que ele faça e de que forma. O que você contará para ele para fazer com que ele acesse o ambiente que você precisa que ele acesse?

Dica: Cenários fictícios funcionam bem porque são uma forma da pessoa realmente imaginar a situação e se colocar nela.

Exemplo:

A. Vamos supor que você está na rua, o jogo do seu time começou e você quer saber o que está acontecendo. O que você faria?

B. Vamos supor que você estava na casa de uma amiga, vocês decidiram assistir uma série e pra isso escolheram acessar o Globoplay. Como vocês fariam pra escolher uma série pra assistir lá? Pode ficar à vontade pra acessar e me mostrar.

#3 — Você pode estar perdendo o controle da entrevista

Lembrando novamente, uma entrevista deve parecer uma conversa, mas não é uma conversa. Existem pessoas que são faladeiras, outras que são mais caladas. Em ambos os casos, é sua responsabilidade como moderador conduzir a entrevista até onde você quer chegar.

Entenda com quem você está falando

O perfil da pessoa pode influenciar no quanto ela vai ser aberta pra responder suas perguntas de uma forma completa. Algumas pessoas simplesmente falam de forma curta, enquanto outras falam de forma longa. É preciso aprender a conduzir a entrevista com ambas.

Isso não quer dizer que pessoas que falem muito necessariamente são melhores de entrevistar. Cada perfil tem seu próprio desafio. Em geral:

Pessoas que falam pouco costumam dar respostas mais curtas e incompletas, e não fogem do que foi perguntado. É muito importante estimular essas pessoas a sempre desenvolver mais a resposta. Abuse de perguntas abertas. Algumas formas de fazer isso:

O que você quer dizer com isso?

Me conta mais…

Você me falou que …, certo? De que forma você lida com isso?

Em contrapartida, pessoas que falam muito costumam dar respostas mais completas e normalmente respondem muitas perguntas do seu roteiro sem que você precise perguntar. É bom ter um cuidado de não perguntar o que já foi respondido, principalmente porque essas pessoas costumam levar mais tempo em cada pergunta, o que acaba prolongando o tempo da entrevista.

Algumas pessoas que falam muito têm uma tendência de fugir do assunto e conectar com outras coisas que não têm relevância pro estudo. Por exemplo, você pergunta ao usuário sobre consumo de streaming e 2 minutos depois você se pega ouvindo sobre a cor do cachorro dele…Sempre que isso acontecer, retome o assunto que você deseja investigar. Se você sempre esperar que ele termine de falar, você vai perder muito tempo da sua sessão de teste e não vai conseguir explorar tudo que desejava. Por isso, às vezes é necessário interromper uma fala. Mas faça isso de forma muito sutil, pra que você não crie um clima ruim e estrague a entrevista.

Dica: Tente conectar sua próxima pergunta com algo que ele disse antes pra interromper o assunto de forma elegante.

Exemplo:

[Usuário] quando eu sento pra ver televisão, meu cachorro vem ficar do meu lado, inclusive outro dia ele blá-blá-blá Whiskas sache… (interrompe)

[Moderador] Você tinha me dito que vê televisão com o seu cachorro né? … E o que você costuma assistir na TV?

#4 — O usuário pode estar se sentindo intimidado

Se você tentar se colocar no lugar dele, é possível entender como pode ser intimidador ir para um teste. O usuário chega em um ambiente diferente, pra conversar com uma pessoa estranha e ainda está sendo filmado. Provavelmente eu também me sentiria assim.

Uma das coisas mais importantes antes de começar uma sessão de teste é a ambientação. Bons insights costumam surgir de pessoas que estão se sentindo confortáveis para falar o que pensam e o que sentem, ainda mais se precisarem falar mal do seu produto. Você precisa fazer com que seus usuários se sintam acolhidos antes de começar o teste.

Alguns pontos são importantes pra isso:

Cenário

É importante levar em conta o conceito de psicologia ambiental. O tempo todo criamos julgamentos através do que vemos. O que o seu usuário vai ver quando chegar ao local do teste e o modo como ele se relacionará com o ambiente é uma das coisas que influenciarão seus pensamentos.

Alguns cuidados podem ser bem vindos para gerar uma impressão inicial acolhedora, como ter um local bacana para ele aguardar a entrevista, assim como não passar com a pessoa por dentro do escritório todo, onde ela vai ser observada por diversas pessoas (no caso de uma empresa grande). Vai do tato de cada um.

Indo um pouco além, nossa equipe de UX da Globo.com criou uma sala de espelhos decorada de forma semelhante à uma casa, para que o usuário literalmente se sinta em casa ao chegar. Sabe o que é mais legal? As pessoas que vêm participar dos nossos testes de fato reparam nisso e expressam como o lugar é acolhedor.

Sala de espelhos da globo.com

Instruções

Muitas pessoas que são chamadas para participar de uma entrevista ou um teste de usabilidade nunca fizeram isso antes. Elas não sabem o que esperar, e também não sabem o que nós esperamos delas. Normalmente a expectativa inicial é querer “ir bem”, responder certo.

É muito importante iniciar a entrevista quebrando essas expectativas pra que o usuário saiba de verdade o que nós queremos.

Geralmente, inicio minhas entrevistas falando algo como:

Oi João, muito obrigado por ter aceitado participar do nosso estudo! Aqui nós fazemos pesquisas com diversas pessoas pra entender sobre o uso de produtos e serviços digitais, saber se eles estão funcionando ou se tem coisas que não estão funcionando, porque é justamente sabendo disso tudo que a gente consegue melhorar os serviços, certo? Por isso, é muito importante ter você aqui.

A gente vai começar conversando um pouquinho, eu vou te fazer algumas perguntas, e é importante você saber que não existe resposta certa ou errada, ta? O mais importante pra gente é saber sobre você: o que você pensa, como você usa, porque é sabendo das suas necessidades que o serviço vai poder ser melhor pra você…Então fica muito à vontade pra falar o que você quiser.

Depois desse papo, eu vou te mostrar um aplicativo pra gente fazer algumas atividades, e também vou querer saber um pouco sobre as suas impressões.

Ao fazer essa breve introdução, eu tento quebrar uma imagem de entrevistador x entrevistado e criar um pensamento colaborativo no usuário.

Depois da entrevista, quando vou iniciar o teste de usabilidade, reforço novamente:

Então João, como eu te disse antes, vou abrir aqui um aplicativo no celular pra gente fazer algumas atividades. Esse aplicativo na verdade é uma versão de teste, ok? Então talvez nem tudo funcione. Pode ser também que dê algum erro, mas se por acaso acontecer eu te ajudo.

Também queria deixar claro que eu não to aqui te testando, ok? Na verdade você que vai testar o aplicativo. Se você não conseguir fazer alguma coisa ou se estiver difícil, é porque o aplicativo precisa melhorar, certo? E não fui eu que fiz haha. Então fica super à vontade pra falar o que você quiser, tanto bem quanto mal.

Nome da empresa

As pessoas naturalmente querem agradar, ainda mais recebendo uma bonificação como estímulo para participar da pesquisa. Isso quer dizer que pode ser difícil pro usuário que você chama falar mal do seu produto durante o teste quando ele sabe que está na sua empresa, falando com uma das pessoas que desenvolve o produto.

Dependendo da situação, principalmente se for um teste que envolva percepção de marcas, é importante que o usuário tenha o mínimo possível de influência do ambiente sobre as opiniões dele. Isso envolve garantir que ele não saiba em que empresa ele está.

Vocabulário

Dependendo do seu produto, você poderá ter contato com uma diversidade de pessoas: de locais diferentes, classes socioeconômicas diferentes e, principalmente, que falam diferente.

Seres humanos procuram semelhanças no outro para formar conexões sociais. É importante lembrar disso já que você precisa criar rapidamente uma conexão, mesmo que pequena, com a pessoa que está sendo entrevistada. Em relação à isso, valem alguns cuidados:

1

Não conserte a forma como o usuário fala uma palavra ou expressão

A não ser que isso seja estritamente necessário, você só tem a perder fazendo isso.

2

Não use termos que fazem parte do seu contexto, mas não do contexto do usuário (ou que você tem dúvidas se fazem)

Além dele possivelmente não entender o que você está falando, começará a te ver como especialista no assunto. Não queira parecer um especialista (explico sobre isso no próximo capítulo de comportamento).

Exemplos de termos que não devem ser usados: protótipo, scrollar, fluxo, interface, usabilidade, layout etc.

Como eu costumo evitá-los:

Protótipo = Versão de teste do aplicativo ou site; Interface = Tela; Scrollar = Descer / Subir; Fluxo = Caminho / Sequência.

3

Não fale palavras que tenham relação com a ideia de estar certo ou errado, principalmente se envolver o usuário

Palavras como teste e tarefa (muito usada nos testes de usabilidade) podem passar a percepção de que é uma questão de acertar ou errar, justamente o que temos cuidado desde o começo para quebrar.

Pode parecer um detalhe, mas já parou pra pensar qual o significado de teste?

Definitivamente você não quer que o usuário sinta que está em um exame crítico, prova das qualidades ou avaliação dos conhecimentos dele.

O que deve ser evitado:

A. A gente vai fazer um bate papo agora e depois um teste

B. A primeira tarefa que eu quero que você faça é…

Como eu costumo evitá-los:

A. A gente vai fazer um bate papo agora e depois vamos acessar um aplicativo…

B. A primeira atividade que eu quero que você faça é…

Comportamento

Pra finalizar, também é importante estar atento ao seu comportamento diante do usuário, já que a impressão que você causa nele pode contribuir ou dificultar a participação dele no estudo.

1

Não pareça sabe-tudo

O usuário não deve ter impressão de que você é uma autoridade no assunto que está sendo abordado. Isso pode despertar insegurança nele e consequentemente prejudicar o que ele expressa pra você.

Dica: Se ao longo do teste ele te perguntar “é isso mesmo?”, pode ser um sinal de que isso está acontecendo. Ou a pessoa ainda não está tão confortável.

2

Não demonstre impaciência

Em alguns casos, o teste simplesmente empaca por conta de uma dificuldade que o usuário está tendo. Para ele notar sua impaciência através do comportamento e da expressão facial é muito fácil e vai fazê-lo se sentir mal. Se for inevitável que você se sinta assim, Poker Face. No entanto, mais importante que isso é trabalhar sua paciência para entender o tempo de cada um. Afinal, você está fazendo isso justamente pra identificar o que pode melhorar, certo? E isso envolve observar o que está dando errado e com quem.

O aprendizado acontece na prática

Apesar de ter demonstrado aqui muitos pontos pra se atentar, essas mudanças não acontecem da noite pro dia. Durante uma entrevista, é realmente difícil prestar atenção no que o usuário fala, nas perguntas que você já fez, nas próximas perguntas, na forma como você está perguntando, no seu comportamento e mais uma série de coisas, tudo ao mesmo tempo.

Não se preocupe. E não se cobre. Aceite que “erros” vão acontecer. Essas questões servem pra você começar a perceber o que pode melhorar. É o primeiro passo. Conforme for praticando, “errando” e identificando os resultados disso, seguir esses conselhos vai se tornar um processo natural e lógico para você.

Keep Researching!

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Gabriel Bastos
Time de Experiência Globo

UX Researcher na globo.com / Pós graduando em design de serviço. Fala comigo no Instagram! @ gab.insights