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Projetando um livro de fantasia diferente

Uma análise da comunicação visual da ficção fantástica (Parte 2)

Sou designer e escritor, e esta é a segunda parte do trabalho que embasou o projeto gráfico do meu livro e meu TCC em Comunicação Visual.

Se você ainda não leu a primeira parte, que tal descobrir quais são os padrões mais recorrentes nas capas de fantasia?

Se você já leu ou é simplesmente teimoso, siga adiante ;)

Padrões das capas de fantasia

Se eu aprendi alguma coisa categorizando as capas de 100 livros de fantasia, foi isso:

Capas de fantasia gostam de revelar seus elementos fantásticos. Se a história tem dragões, pode apostar que tem dragões na capa.

Capas de fantasia gostam de representações figurativas. Se tem dragões na capa, pode apostar que eles são iguais aos dragões da natureza — se eles existissem, é claro.

Podem parecer constatações bobas, mas são bastante simbólicas. Para um gênero que pode quebrar as barreiras da realidade, é curioso como a comunicação visual da ficção fantástica costuma se ater à verosimilhança do conteúdo do livro.

Será que não estamos desperdiçando oportunidades de fazer algo diferente e com mais impacto?

Um bom exemplo de algo diferente é…

Game of Thrones.

Nem estou falando dos livros, mas da série de TV. Mais especificamente, da entrada da série de TV.

Por que a entrada de Game of Thrones é tão boa? Porque ela não é óbvia (e tem uma trilha sonora incrível, é claro).

Não são cenas de castelos, fortalezas e oceanos.

Ao invés disso, o cenário da história se constrói num intricado tabuleiro, onde cada pecinha é uma engrenagem de uma máquina maior, que representa a vastidão e a complexidade do jogo dos tronos.

Pelo menos, essa é minha interpretação — que pode ser diferente da sua. E por isso a entrada de Game of Thrones é boa. Ela representa os conceitos da série sem entregar tudo mastigado.

Então, quero mostrar como busquei fazer o mesmo com meu livro, chamado O Diário Rubro.

A oportunidade do design na leitura

Embora o design de livros tenha como função mais básica materializar o livro como objeto, as possibilidades do design são muito maiores do que isso. É pelo design que se estabelece o diálogo entre as peças que compõem a experiência de leitura: o texto, o papel, o projeto gráfico, as imagens e — é claro — o leitor. Um livro não precisa ser apenas um repositório de palavras, pois não é só o texto que conta a história, mas todo o livro.

“Ao leitor, a obra não deverá parecer como um composto de fragmentos (palavras, imagens, páginas), mas como um universo singular de leitura.” (MORAES, 2008)

O processo editorial pode ser encarado como uma sequência de etapas realizadas por profissionais diferentes — o texto cabe ao autor, as ilustrações ao ilustrador, a diagramação ao designer, a publicação ao editor. Num processo com tantas etapas e tantas pessoas, é difícil unificar a experiência de leitura . Às vezes, cada parte transmite uma mensagem diferente. Outras vezes, só o texto conta a história e todo o resto não passa de decoração.

“Todos elementos influenciam uns aos outros. Por isso, o projeto visual de um livro é uma ferramenta importante para a comunicação e não apenas um elemento decorativo.” (ARAÚJO, 2008)

Foi aqui que vi minha oportunidade. O Diário Rubro é uma publicação totalmente independente, onde faço o papel de autor, designer e editor — e meu objetivo era garantir que todos esses três contassem juntos a mesma história.

Sobre o livro

O Diário Rubro é uma história sobre universos paralelos inspirada no jogo Final Fantasy X, na saga Fronteiras do Universo e na série Lost.

Sinopse:

Perdido num mundo estranho, um rapaz descobre que sua melhor amiga é a deusa de uma sinistra religião.

Para aqueles fiéis de capa escarlate, as palavras da garota num velho diário os salvarão da peste que carrega morte e miséria há dezesseis anos.

Conceituação

Uma das primeiras etapas de todo projeto de design é a conceituação. Quais são as definições do seu projeto e quais valores e sensações você quer que ele transmita?

Um bom começo é listar adjetivos que tem tudo a ver com o projeto e outros que não tem nada a ver.

A partir dessa lista preliminar, agrupei os adjetivos e contrapus grupos de um lado com grupos do outro.

Algumas dessas contraposições parecem óbvias, como ser diferente e não ser clichê, mas nem todas são necessariamente antônimos umas das outras, como ser misterioso sem ser apelativo — Lost foi apelativo quando começou a desandar.

A conceituação funciona para guiar o processo criativo.

Toda decisão do projeto, por menor que ela seja, deve estar alinhada com seus conceitos. Idealmente, qualquer pessoa que segurar seu livro nas mãos deveria descrevê-lo com algum dos conceitos que você definiu.

E se ela usar um dos seus adjetivos vermelhos, algo deu errado!

Linguagem gráfica

Estabelecer uma linguagem gráfica é materializar o que foi definido na conceituação. Como você representa visualmente seus conceitos?

Para a linguagem de O Diário Rubro, foquei nos seus três adjetivos mais marcantes: misterioso, tenso e experimental. Os dois primeiros têm mais a ver com a história, enquanto o último simboliza a trajetória do projeto como um todo.

Afinal, este é meu primeiro livro e fui aprendendo sozinho ao longo dos 10 anos que levei para escrevê-lo. Testei muita coisa, reescrevi muita coisa, aprendi muita coisa, propus coisas diferentes — e queria que esse espírito desbravador fizesse parte do projeto do livro.

Como representar visualmente tudo isso? Algo misterioso não deve ser fácil de definir. Algo tenso não deve passar serenidade. Algo experimental não deve ser limpo e polido.

Por isso, minha linguagem gráfica foi construída com manchas de tinta.

Algumas referências que inspiraram a linguagem gráfica do projeto

Produzi todo tipo de mancha — não só com pincéis, mas com qualquer outra coisa. Meus dedos, moedas, anéis, seringas, pentes de cabelo. E os mais estranhos instrumentos davam os melhores resultados.

Algumas das manchas produzidas

O segundo passo foi integrar as manchas ao livro — e elas não podiam ser decorativas. As manchas também contam a história.

Repassei todos os 90 capítulos do livro, inserindo as manchas no texto, procurando por manchas que simbolizassem os momentos mais memoráveis da história. Às vezes as manchas só acompanham o texto, às vezes elas o empurram, às vezes elas o aprisionam, às vezes elas até o expulsam.

Aplicar as manchas foi uma experiência pessoal, subjetiva e abstrata. Nenhum leitor vai interpretá-las do mesmo jeito que eu — e esse é o valor do projeto. As manchas não afunilam num só significado, elas se abrem em mil possibilidades, tornando O Diário Rubro diferente para cada pessoa.

Sinais das manchas são visíveis pelo lado de fora

Quebra entre cenas

Com o coração da linguagem gráfica aplicado, era hora de avançar sobre alguns aspectos mais específicos do livro. O primeiro era a quebra entre as cenas.

Cada capítulo em O Diário Rubro é dividido em cenas, e na escrita essa divisão me ajudou a construir a história em blocos e marcar mudanças de ponto de vista entre os personagens. Para os leitores, quebras são importantes porque ditam o ritmo da leitura e fornecem pontos onde podem parar para continuar depois.

Geralmente, existem duas formas de representar essas quebras: espaços em branco ou elementos gráficos. Considero os espaços em branco problemáticos — além de menos perceptíveis, eles geram confusão quando caem no início ou no final de uma página. O uso de elementos gráficos é uma solução mais funcional, porém cria o risco de se tornar repetitiva se forem todos iguais, especialmente em livros mais longos.

As quebras em Harry Potter são espaços em branco (primeira edição de HP1, onde o Draco ainda se chamava Drago ;p )

Em O Diário Rubro, decidi que usaria elementos gráficos para separar as cenas, mas não faria todos iguais, nem adotaria uma solução puramente decorativa. Afinal, faz parte da minha proposta de projeto integrar a comunicação visual à leitura, no menor detalhe que seja.

Como cada cena é narrada sob o ponto de vista de um único personagem e como tenho dez personagens com pontos de vista, decidi criar um elemento de separação para cada um deles. Já que as manchas de tinta nanquim ao longo do texto refletem uma estética manual e orgânica, usei canetas também de nanquim para criar dez linhas diferentes, cada uma representando a personalidade de um dos personagens.

De novo, representar a personalidade é algo subjetivo — cada um pode interpretar as linhas do seu jeito, e alguns podem sequer perceber que elas correspondem a personagens diferentes. Para os que perceberem, fica uma forma visual de antecipar de quem vai ser a próxima cena.

Um mesmo capítulo pode ter cenas de diferentes personagens

A solução das linhas diferentes foi inspirada na HQ Asterios Polyp, onde a personalidade de cada personagem se reflete na tipografia e no estilo do seu balão.

Abertura de capítulo

Eu vou confessar, sou fã de ilustrações de abertura de capítulo. Talvez seja nostalgia de lembrar das minhas leituras de Fronteiras do Universo ou Harry Potter (as edições estrangeiras, no caso).

Amo as ilustrações dos capítulos de Fronteiras do Universo

Queria fazer algo similar para O Diário Rubro, só que alinhado à linguagem gráfica do projeto. Tratando-se de um livro de mistérios sobre dimensões paralelas e seitas sinistras, apostei em símbolos — símbolos enigmáticos, que lembrassem hieróglifos que precisassem ser decifrados. O livro tem 90 capítulos, então ilustrei um ícone para cada um deles — alguns mais explícitos, outros crípticos e abstratos.

Primeiros rascunhos, que mostram que nem todo designer precisa saber desenhar ;)

Meu objetivo era que os símbolos tivessem formas simples, de uma geometria inquietante, mas que também carregassem o acabamento manual de tinta nanquim que perpassa toda a estética do livro.

Tratamento de um dos símbolos

E assim ficou meu alfabeto de símbolos — toda a história de O Diário Rubro, contada de maneira misteriosamente visual.

Em todo projeto que você faz, existem algumas sutilezas que lhe dão um orgulho especial. Pois bem, uma das minhas nesse projeto é ter usado o mesmo estilo de texto para o nome do capítulo e o texto corrido da história. Nada de negrito, letras enormes ou capitulares — neste projeto, tudo isso parecia decorativo. Afinal, detalhado e ornamentado estão nos adjetivos vermelhos da minha conceituação.

Capa

Por fim… A capa.

A parte do livro que me inspirou a categorizar os 100 livros de fantasia. A parte do livro que mais chama atenção. A parte do livro onde costuma começar o projeto editorial… Foi a parte do livro criada por último.

Não foi planejado, mas fez todo sentido. Este foi um projeto feito de dentro para fora. Começou no texto, e aí as palavras ganharam forma nas manchas, depois nas linhas, depois nos símbolos… E a capa — tanto a frente quanto o verso — é uma síntese disso.

Misterioso. Tenso. Experimental.

Os símbolos são misteriosos. Vermelho é tenso, mas é óbvio demais — vamos com um tom mais sombrio. Experimental é não escrever nada na capa — nem título, nem autor.

Este foi o resultado final:

Pode parecer loucura não colocar nem o nome do livro na capa, mas loucura é não considerar o contexto e o ecossistema de cada projeto. Este é um livro independente, de tiragem limitada. Ele não está à venda nas livrarias, nem compete nas estantes. Ao invés disso, ele é vendido na internet — e na internet o título não precisa estar na capa, porque ele pode estar em milhões de outros lugares. E eu quero uma capa enigmática.

Se algum dia tivermos O Diário Rubro nas livrarias, pode apostar que um contexto diferente pede uma capa diferente.

O verso da capa foi divertido. No verso da frente, temos o mapa da história — porque toda fantasia fica mais legal com um mapa, não é mesmo? Tentei quebrar várias tradições da fantasia neste projeto, mas ter um mapa não foi uma delas. Eu gosto de mapas.

Os mapas de fantasia costumam estar na primeira ou na última página do livro — às vezes até nas duas, o que é super confuso. Confinar o mapa ao miolo é confiná-lo ao espaço limitado do seu tamanho de página, que pode não ser suficiente para uma boa legibilidade. Além disso, costuma ser difícil encontrá-lo quando você mais precisa — e sempre há o risco de ler palavras indesejadas na hora de procurar pelo mapa, especialmente se ele fica no final do livro. Integrar o mapa ao verso da capa o deixou mais acessível e muito, muito maior.

Já no verso de trás, temos uma padronagem das linhas de todos os personagens. O verso de trás é o fechamento da história — e essa é uma história focada nos personagens.

Conclusão

Projetar meu próprio livro foi um dos maiores desafios de design que já encarei — tanto pela importância dessa história para mim, quanto pela orquestração dos papéis de autor, designer e editor, tudo de uma só vez.

Assumir todos esses papéis é um risco. Ou seu projeto vai romper no elo mais fraco da corrente, ou você conquistará um resultado onde o todo é maior que a soma das partes. Eu acredito que O Diário Rubro é uma prova desse último — e espero que você sinta o mesmo depois de ler esse texto.

Se interessou pelo livro?

Leia os primeiros capítulos no site! Se você gostar, ficarei feliz em assinar um livro para você!

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Designers, pesquisadores e pessoas design ops apaixonados por fazer diferença na vida de 100 milhões de pessoas, através da experiência com produtos digitais da Globo.

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