Um conto do designer do futuro

Henrique Peixe
Hub de Design TOTVS
4 min readNov 27, 2018

“Olá, bom dia, Sr. 303.123.127.093–23. Tudo bom? Você tem 43 documentos para assinar, 312 procurações de amigos para avaliar no Facebook e 5.134 seguidores esperando seus likes esta manhã.”

“Caramba. Mais um dia e não mudei essa porcaria. Vou configurar hoje essa mensagem.”

O assistente T-33 da Google ainda não sabe como o designer gosta de ser chamado, afinal foi contratado ontem, mas sabe seu nome completo.

Ele prefere ser chamado de "Vinte e Três", era assim que seus amigos do 4º diploma o chamavam e ele vai lutar para manter esse apelido. Da mesma forma que o Google validou que sua marca seria mais querida por seu público se o chamassem (somente em português) com artigo feminino, “a” Google, o designer validou que seu futuro profissional estaria melhor direcionado somente com os dígitos de seu nome completo e caso alguém não seguisse essas diretrizes ele faria de tudo para processá-lo em primeira instância.

Claro, esses processos são descomplicados, um holograma com a equipe de 3 juízes com todos os registros do acusado avaliariam o ocorrido em tempo real com checagem dupla. Após o julgamento seriam necessárias algumas assinaturas e pronto, a sentença viria no perfil de todas suas redes sociais, mas o mais chato seria o dígito no nome do réu, acrescentariam um "X" por 90 dias corridos. Já nos casos mais extremos um filtro com um "X" vermelho seria adicionado a todas as fotos de avatares que o acusado tiver.

“T-33, mudar configuração de nome.”

“Claro, Mister 303.123.127.093–23, estou pronto.”

“Quero ser chamado somente por 'Vinte e Três'. E aproveita para configurar a sua voz.”

“Claro, Vinte e Três. Qual voz você prefere?”

“Adoro a voz da minha avó materna, mas que seja em inglês. Meus vizinhos não precisam escutar nada em português.”

“Sure, my dear. But now you have to address a letter to @googlet33 with the subject #changingSettingsInVoiceOrders to confirm the changes. The text is already ready, to confirm you’ll have to double scan your retina in your iEye. Please. If you want to I can cook that corn porridge that you love, honey.”

“Ok, confirmado. E não precisa da personalidade, somente a voz já está bom. Aceito o mingau de milho, pode gerar o ticket.”

A vida é muito mais simples quando você tem um assistente para facilitar as obrigações do dia a dia. Durante esse diálogo ele já tinha recebido a melhor e mais barata proposta de transporte coletivo para o trabalho, havia assinado digitalmente 13 dos documentos e também, solicitado que abrissem seus últimos arquivos gráficos em seu ampliador de realidade da Apple. Ele precisava revisar algumas coisas antes de validar seus protótipos de alta fidelidade e pretendia iniciar os trabalhos já na esteira que o levaria a entrada do condomínio.

O 99, modelo autônomo, aproximou-se assim que o portão magnético flutuou, abrindo a passagem para a saída de Vinte e Três, em uma sincronia invejável. A terceira cabine da esquerda se abriu indicando qual seria seu escritório móvel pelos próximos 133 minutos.

Ao entrar, aquela voz familiar ressoou dos alto falantes, sua vó o estava recepcionando muito bem.

“Your corn porridge is already at your desk and don’t worry, it still warm for the next 24 hours. It’s a pleasure for us to make your mornings happier, I’m loving it, McDonald’s. You now have 5.533 followers waiting for your likes.”

O caminho era longo e no momento em que o designer olha pela janela, percebe algo que ele não tinha reparado nesses 5 anos passando diariamente (incluindo finais de semana, feriados e férias) pela Hyperlapse Road, uma das paredes prateadas estava desencaixada e caída. Claro que seu olho humano fora de moda não assimilou aquela imagem, não com aquela velocidade.

“Grandma, voltar 15 segundos da minha memória e parar a imagem.”

“Sure, the ticket is already at your Facebook account.”

“Voltar mais 5 segundos e parar.”

“Sure, the ticket is already at your Facebook account.”

Ele encontrou a imagem do vão. Sua visão demorou alguns outros segundos para organizar e encaixar aquela realidade à sua percepção.

Na imagem, existiam muitas casas amontoadas com suas janelas primitivas e manuais, algumas abertas, outras fechadas e em sua maioria quebradas, todas viradas para uma rua de asfalto com rachaduras, porém o que mais o impressionou foram as pessoas andando a pé. Eram milhares de pessoas. Com certeza, as casas não eram de madeira, ninguém dali teria dinheiro para pagar tantas multas por utilização imprópria da madeira, as casas eram moldados por chapas de plástico já gastas pelo tempo e algumas ainda mantinham os logos das empresas que as utilizavam com neon sobre as lojas. Muitas das cores e marcas que Vinte e Três usava diariamente.

O designer ficou impressionado com a imagem do "mundo de fora". Foi um bombardeio de ideias!

Imaginou sessões fotográficas, aplicativos imersivos de iEye, hologramas temáticos e muitos prêmios com todos esses projetos. Já estava com as palavras na boca para solicitar as vias dos documentos para iniciar novos projetos ao Órgão Nacional de UI Designers (ONUID) quando aconteceu o 3º acidente da história da Hyperlapse Road.

Foi rápida…. Indolor… Sua morte apagou o seu registro da cidade baixa, claramente não dos backups de 3 corporações que o monitoravam com todos os direitos legalmente garantidos, suas ideias já estavam devidamente salvas no 2CC (Coletor de Conhecimento Creative Commons) e seus pedidos de vias de entrada para novos projetos se perderam no tempo.

O registro de seu assistente T-33 foi automaticamente transferido ao familiar mais próximo, bem como todos os tickets gerados naquela manhã, junto com as 432 procurações de seus antigos amigos para avaliar no Facebook, 6.301 seguidores que esperavam seus likes e 23 documentos para assinar.

Burocracia, vida social, assistentes virtuais e nossas novas banalidades convergirão bem no futuro?

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Henrique Peixe
Hub de Design TOTVS

Designer de contextos complexos. / Complex contexts’s designer.