Uma mente, dois sistemas: a experiência do usuário de acordo com a psicologia

Nem sempre agimos de forma consciente. Os estudos sobre heurísticas e vieses nos ajudam a entender esse fenômeno

Willian Amphilóquio
Hub de Design TOTVS
9 min readJul 30, 2021

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Estrada asfaltada sobre a qual há setas de cor branca pintadas. As setas apontam para locais direferentes.
Têxtil Preto, de Athena

Mona Lisa, uma das mais famosas e enigmáticas pinturas de Leonardo da Vinci. Aposto que sua mente resgatou rapidamente a imagem da icônica mulher do século 16. Como você a descreve? Imagino que você deva estar com pressa, então, me adianto: deixo a seguir a minha percepção sobre ela.

Rosto sem muita expressão, com um leve sorriso; o caimento de seus olhos talvez indique indiferença — ou julgamento? Exercício fácil, eu diria. Vamos um pouco mais adiante no tempo: século 19. O que você diria sobre a obra “O Grito”, de Edvard Munch? Desta vez, deixo você guardar segredo.

Imagem de duas pinturas icônicas. À esquerda, a obra Mona Lisa, na qual se tem uma mulher com um leve sorriso, embora misterioso, e as mãos cruzadas; os tons são terrosos, com predominância do marrom. À direita, a obra O Grito, na qual se vê, ao centro, uma representação de uma pessoa assustada; as pinceladas desta obra também são mais marcadas e abstratas; os tons são igualmente terrosos, com predominância do laranja.
O que você sente ao observar a obra “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, à esquerda? Quanto à obra “O Grito”, de Edvard Munch, à direita, o que ela lhe provoca?

Note como é relativamente fácil e rápido descrever tais expressões. O mesmo acontece no nosso cotidiano. Lemos as pessoas e tentamos deduzir o que sentem. Contudo, um aviso: nem todas as nossas tarefas ocorrem de forma similar.

Vamos a um outro exercício. Analise o seguinte cálculo: 15 x 28. Qual o resultado? Intimidador, não? Diante do desafio, muito provavelmente sua pupila se dilatou, seu fluxo sanguíneo aumentou e sua atenção ficou mais restrita. Encontrar a solução para o respectivo problema demanda muita energia e foco acentuado. Você não possui uma resposta pronta. É necessário recorrer a muitos recursos mentais. Por exemplo, você pode tentar resgatar algumas estratégias do campo da matemática ou utilizar o apoio de uma calculadora. O processo é demorado e laborioso.

Nesses dois cenários, você experimentou dois fenômenos muito específicos da natureza humana. No primeiro exercício, solicitei que você relatasse a sua primeira impressão relacionada à expressão de alguns retratos humanos: você as fez imediatamente, sem pensar demais. No segundo, você precisou encontrar uma solução coerente ao problema proposto: aqui, você precisou pensar bastante. Juntos, esses dois fenômenos formam o que a ciência chama de duplo processamento. Em tese, a interpretação dos estímulos que recebemos ocorre por meio de duas vias.

Uma via é rápida e automática: note como julgar as expressões alheias é rápido e intuitivo. A outra é deliberada e faz uso amplo da consciência: lidar com problemas complexos, como resolver uma charada ou desenvolver um planejamento, demanda atenção plena e esforço.

Em nosso dia a dia, fazemos uso de ambas. Mas, na maior parte das vezes, a via rápida e intuitiva está mais presente. Pense como seríamos se tivéssemos que processar ao mesmo tempo e conscientemente um montante gigantesco de informações que recebemos a cada segundo. Além de desnecessário, seria desastroso. Tente se lembrar da última vez em que você ficou cognitivamente saturado, com muitos problemas para lidar ao mesmo tempo. Torna-se inviável, cansativo e, de acordo com vários estudos recentes, ruim para a sua saúde — alô, estresse? Daniel Kahneman (2012), um renomado psicólogo cognitivo, estudou significativamente esse processo. Ele chama carinhosamente a via rápida de sistema 01, e a via lenta de sistema 02. Neste texto, para simplificar e tornar mais fácil a associação, utilizarei apenas os termos “sistema rápido” e “sistema lento”.

Uma imagem com o nome de várias cores escritas aleatoriamente. Cada uma das palavras tem a sua tipografia (fonte) pintada de uma cor diferente.
Efeito Stroop: tente falar as cores que preenchem as palavras sem falar o que está de fato escrito. Sua mente entra em conflito.

O meu objetivo, no entanto, é discutir sobre um fenômeno particular que nasce da relação entre esses dois sistemas: a heurística. Dela, ainda surge outro desdobramento: os vieses. Se você é designer ou pertence a alguma área correlata, acredito que já deva ter ouvido falar sobre esses termos. Aqui, procuro relacioná-los ao design e encorajar você a pesquisar mais a fundo. Vamos lá?

Pegando atalhos

Atente-se à seguinte pergunta: quem você acredita que irá vencer a eleição de 2022 para governador no estado em que você reside atualmente? Intuitivamente, você pode ter uma resposta. Ou não. São muitas variáveis. Você pode, neste caso, tentar responder a perguntas mais simples e rápidas para tentar formular uma resposta final para a questão principal. Por exemplo, você pode tentar buscar em sua memória alguma pesquisa que você viu recentemente relacionada às intenções de voto da população; ou, de repente, resgatar opiniões de amigos, colegas e conhecidos. É a heurística em ação.

Anteriormente, falamos a respeito do duplo processamento. Neste contexto, preciso que você dê especial atenção ao sistema rápido. É basicamente ele o principal motivo para a heurística existir. Em resumo, a heurística é uma espécie de atalho que a nossa mente toma diante de alguma demanda.

Lembra quando pontuei que é praticamente impossível processar todos os estímulos ao mesmo tempo? Então, eis aqui o papel mais notável da heurística: ela permite com que os indivíduos utilizem referências já catalogadas em sua memória para lidar com as situações cotidianas, sejam elas recentes ou não.

Todas as suas experiências são de alguma forma registradas pela sua memória. Algumas delas, se importantes ou repetidas com frequência, são automatizadas. É como andar de bicicleta: uma vez aprendido, você já não pensa mais em cada movimento. A heurística é uma forma de poupar tempo e esforço. Você utiliza um padrão que já conhece como referência para responder a uma determinada demanda. É o que você fez anteriormente ao se deparar com a pergunta sobre a eleição de 2022.

Ops, esse atalho me levou a um lugar diferente…

Embora a heurística seja importante porque evita que a nossa mente se sobrecarregue, algumas distorções podem surgir desse processo. Deem boas-vindas aos vieses.

Tenho quase certeza que você já encontrou alguém que despertou em você uma primeira impressão muito positiva, mas que, posteriormente, à medida que vocês se familiarizavam, você percebeu que a pessoa era o extremo oposto do que você imaginava. As primeiras impressões podem ser tão perturbadoras porque justamente utilizamos experiências passadas para tentar explicar situações do presente. Geralmente funciona, mas às vezes erramos completamente.

O que passa pela sua mente?

Somos inclinados de diversas maneiras, de acordo com a realidade em que nos encontramos. Vamos a mais um desafio. Dos meios de locomoção a seguir, qual você considera mais perigoso: avião ou carro? Poderia apostar que sua resposta provavelmente é avião. Esse é um exemplo clássico de viés da disponibilidade.

Tudo aquilo que está mais fresco ou apresenta um alto grau de importância em sua mente tende a ser lembrado com mais facilidade. Na mídia, acidentes de avião são abordados geralmente com especial atenção, o que tende a provocar nas pessoas um sentimento de alerta, embora os acidentes de carro sejam mais corriqueiros e matem mais pessoas todos os anos.

A primeira imagem mostra um avião em meio às nuvens; a segunda mostra um carro em uma rodovia rodovia qualquer.
Avião ou carro, de qual você tem mais medo?

Na época do atentado de 11 de setembro, muitas pessoas ficaram apavoradas com as viagens de avião. Há, inclusive, diversos estudos no campo da psicologia que envolvem essa temática. Após ler este texto, por exemplo, muitas palavras vão ficar latentes em sua mente, de modo que você tenderá a utilizá-las com mais frequência dentro dos próximos dias. Por isso que as palavras e as imagens/ilustrações devem ser empregadas com muito cuidado, pois ajudam o usuário a compor todo o cenário que pode ou não facilitar a lembrança e a execução de algumas funcionalidades.

O pacote médio, por favor!

Outro fenômeno curioso é o viés de ancoragem. Imagine literalmente uma âncora. O seu papel fundamental é fixar a embarcação em um determinado local. O barco pode se deslocar em alguns momentos para frente ou para trás, mas sempre ficará em torno do local em que a âncora está alocada. É basicamente dessa forma que ocorre o viés de ancoragem: nossas decisões tendem a ficar restritas quando oferecidas opções.

Uma tabela apresentando três diferentes pacotes de cursos com preços diferentes. O valor médio está em destaque no meio.
A promoção do meio é mais vantajosa, você não acha?

Pense naquela promoção da pipoca do cinema. Geralmente há três potes: um pequeno, um médio e um grande. De modo geral, o pequeno e o grande são utilizados como instrumento para que você leve o médio — o que é mais vantajoso para o estabelecimento. Sua escolha se limita a tais opções. O mesmo acontece em outros cenários, como os descontos aplicados nos supermercados ou aquele um real a mais para aumentar o tamanho do pacote de batatas em seu restaurante de fast-food favorito.

O caso também se aplica quando formulamos questionários para entender a realidade dos usuários/clientes. Sugestões de respostas podem agilizar o processo, pois o usuário não precisará pensar muito para responder, mas também podem deturpar a sua verdadeira percepção sobre a realidade.

Ficou bom esse ângulo?

Para não me alongar muito, vou lhe apresentar somente mais dois vieses — deixo mais detalhes para algum outro momento. Para o próximo, trago um experimento peculiar. Uma pesquisa revelou um cenário altamente contrastante no que diz respeito à doação de órgãos em países europeus: em alguns países, o volume de voluntários chegou a 100%, mas em outros, a quantia ficou próxima de zero.

A resposta para o caso parece estar relacionada à ficha que solicitava a confirmação do indivíduo. Os pesquisadores notaram que nos países com baixo volume de voluntários, a opção a ser assinalada para efetivar a participação do indivíduo compreendia uma mensagem como “assinale aqui para ser um doador”. Em países com alto volume, a mensagem continha o oposto: “assinale aqui para NÃO ser um doador”.

Temos aqui um clássico exemplo de efeito de contextualização ou também chamado de enquadramento. Ou seja, o modo como dispomos uma informação, seja uma promoção no mercado ou uma mensagem em um determinado produto, pode alterar significativamente a percepção do indivíduo. A publicidade faz uso há um bom tempo deste recurso.

Dois potes com tampas verdes e base branca. Em ambos, há a seguinte descrição em inglês: frozen yougurt. A informação adicional, no entanto, é diferente: no primeiro, tem-se: “contém 20% de gordura”; no segundo, lê-se “80% livre de gordura”.
Você prefere um pote de iogurte que contém 20% de gordura ou um 80% livre de gordura? O viés de enquadramento pode ajudar você a decidir.

Eu tinha certeza de que estava certo

Chegamos ao último exemplo de viés, que vai ao encontro do título deste tópico: o viés de confirmação. É difícil assumirmos que estamos equivocados ou deixarmos de acreditar em algo. Nossa tendência é abraçar as evidências que respaldem nossas ideias e crenças e ignorar tudo o que se contraponha a elas. É o que muitos relatam como “apaixonar-se pela ideia”. Inclusive, geramos argumentos (falácias) que justifiquem expressamente nosso ponto de vista, mesmo que intrinsecamente errôneos.

Um caminho mais humano

Cada indivíduo possui uma experiência única sobre a sua realidade. A forma como percebo o quadro “O Grito” pode ser completamente diferente de você, caro leitor. É justamente tal subjetividade que constrói a malha social diversa em que nos encontramos. Todos nós carregamos bagagens diferentes.

Falar sobre os vieses humanos não significa que estamos fadados ao erro. Pelo contrário, sinaliza que possuímos um aparato complexo para lidar com diversas situações. É sempre importante lembrar que nosso cérebro é plástico, o que o permite se ajustar de acordo com os seus aprendizados. É justamente com esse detalhe — dentre muitos outros — que os designers devem se preocupar: entender as facetas do comportamento humano e contribuir para a construção de ambientes e produtos devidamente coerentes a tal realidade, de modo que as pessoas possam superar determinadas barreiras e encontrar as soluções de forma rápida, segura e acessível.

A aliança entre o campo do design e da psicologia é valiosa. Por isso a etapa de pesquisa é tão importante. Um componente visual, por exemplo, não é desenhado de forma meramente arbitrária: muita energia é necessária para entender se de fato o que se constrói faz sentido. Entender as heurísticas e os vieses pode trazer diversos benefícios para um projeto: torna-se possível minimizar as ambiguidades, facilitar a compreensão de uma interface, guiar devidamente o indivíduo em um determinado fluxo, dentre tantos outros. Podemos imaginar o seguinte: nós, designers, pensamos lento para que o usuário pense rápido. Aceita o desafio?

Referências

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Tradução: Cássio de Arantes Leite. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva. 2012.

MYERS, D.; DEWALL, N. Psicologia. 11. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2017.

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Willian Amphilóquio
Hub de Design TOTVS

Designer há mais de nove anos. Defensor da acessibilidade. Apaixonado por tecnologia, pesquisa e comunicação.