Audiovisual e UX Research: algumas considerações para aperfeiçoar processos de pesquisa

Aline Rocha
UXMP
Published in
6 min readJul 15, 2020

Uma vez eu li em algum texto aqui do Medium o qual perdi nessa imensidão de informações, sobre as habilidades do pesquisador, e a autora — que sinto muito por não dar os créditos, mencionava que parte dessas habilidades de um bom pesquisador consistia na bagagem que ele carregava para além de dominar assuntos específicos do design.

Ela dizia que ver filmes, ir ao teatro, consumir poesia ou qualquer outra manifestação artística, contribui de forma direta no que é a construção da sua visão de mundo. Essas formas de consumo são potentes ao ponto que o saberes pessoais e profissionais se interseccionam — a partir da minha leitura.

Como sua vivência externa pode influenciar suas pesquisas

Sem o juízo de valor do que seria um bom ou mau pesquisador de usabilidade, eu enquanto cientista social, pesquisadora, produtora de audiovisual e tudo o que circunda esses universos somados aos marcadores sociais que me atravessam, não consigo separar os processos de interpretação, que nada mais é do que, a forma em que se lê o mundo.

Dito isso, eu gostaria de trazer algumas considerações e reflexões no campo da pesquisa a partir do curta metragem O dia de Jerusa, de Viviane Ferreira.

Foto: Reprodução Youtube — Um dia de Jerusa de Viviane Ferreira

“O filme narra a história de Jerusa, uma senhora que está fazendo os preparativos para seu aniversário de 77 anos, quando recebe a visita de Silvia, uma pesquisadora de opinião que aplica questionários sobre sabão em pó. A pequena visita, estimada para durar apenas 15 minutos, se estende ao longo da narrativa, quando o encontro das duas faz emergir as memórias de um passado translúcido da mais velha.”

Essa sinopse parece interessante, né? Pois garanto que o curta é mais. Confesso que me emocionei com a personagem Sílvia, a pesquisadora, interpretada por Débora Marçal. A narrativa do roteiro traz a tona uma perspectiva tão cara a nós pesquisadores: a subjetividade. Quer dizer, as características que levantamos ao conversar com qualquer pessoa no contexto das diferentes metodologias de pesquisas de experiência do usuário.

Muitas pessoas com que já cruzei no meu caminhar, narram a felicidade em ser pesquisadores a partir do que é a possibilidade de falar com um outro, conhecer novas perspectivas. Compreendo como um processo contínuo e infinito de aprendizagem. Aprender com outras pessoas é sempre muito rico.

No cenário de uma pesquisa, quando fazemos uma pergunta, ainda que sobre um produto — estamos nesse momento adentrando em um novo universo, navegando e jogando com as memórias daquele entrevistado — , que escolheu estar ali. Desta maneira, ficamos ansiosos por pistas para compreender o todo a partir do que imaginamos ao construir o roteiro.

Antropologia e os processos de UX Research

A Antropologia nos oferece um arcabouço de metodologias e escolas teóricas para analisar fragmentos até então subjetivos, explorar o campo simbólico e/ou inconsciente, de maneira que nos auxilie a compreender o todo explorado, ou no nosso caso: apenas o objeto que estamos avaliando no cenário da pesquisa. A Antropologia Estrutural, de Levi Strauss e a linguística com Ferdinand de Saussure, são bons exemplos para isso que trago ao longo desta linha de raciocínio.

Antes de aplicar qualquer metodologia, precisamos estar em contato com esse oceano que queremos mergulhar. E eu, assim como a personagem Sílvia, confesso que por vezes sinto dificuldades em cortar aquela pessoa que está rememorando fatos, memórias afetivas, sonoras, olfativas, para apenas responder uma pergunta objetiva dentro de um tempo cronometrado. É como se molhássemos os pés nesse oceano e rapidamente alguém nos chamasse pra voltar para a areia.

Foto: Reprodução Youtube — Um dia de Jerusa de Viviane Ferreira

Em determinado momento da entrevista no curta, Jerusa responde uma pergunta resgatando diversas memórias afetivas, e Silva , a interrompe, já que a todo momento está buscando apenas respostas para sua pesquisa.

A partir dessa cena, faço uma ponte ao cenário de pesquisas com usuários e me questiono de que maneira podemos aproveitar tudo o que o participante nos traz? O maior desafio, que inclusive coloco dentro do processo de análise, écosturar as memórias compartilhadas de maneira que consigamos interpretar e traduzir a partir do que queremos enquanto respostas. Por exemplo, na sequência do diálogo:

Quantos filhos a senhora tem?

O Carlos Alberto gosta de chá de limão…

Jerusa não responde diretamente, mas oferece uma pista de que tem um filho. Silvia por sua vez insatisfeita com a resposta, avança para a próxima pergunta.

O cenário acima é um cenário em que nós que fazemos pesquisas nos encontramos constantemente. Descartamos a informação totalmente? Pode ser uma opção, mas a partir da proposta de costura de memórias que trago anteriormente, esse seria um bom momento para continuar explorando a narrativa de Jerusa, a partir da pista que ela já nos trouxe.

Em determinado momento, o curta também nos traz a tona o ensinamento de via dupla, a encuzilhada, a abertura para o novo. O que na Antropologia corresponde a observação participante, por exemplo.

Jerusa pode nos ensinar a sermos mais humanos no que tange os processos de pesquisa

Com influência do curta metragem, continuo me questionando e buscando respostas de que maneira podemos tornar essas conversas e práticas mais humanas, no sentido de aproveitar de maneira integral tudo que recebemos do participante. Arrisco a dizer que o que será aproveitado dependerá, por sua vez, da interpretação que faremos a partir do que nos foi compartilhado. Repetindo o que trago no início, a interpretação portanto passa também pela forma em que se lê o mundo.

É importante sinalizar que o conteúdo da conversa de Jerusa, com Silvia, é resultado também das relações raciais que estão postas, com memórias individuais que se cruzam com memórias coletivas. A antropologia nos oferece o aporte teórico dos limites do antropólogo em um trabalho etnográfico como aponta José Magnani, por exemplo

A etnografia é uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica de sua visão de mundo, mas para, seguindo-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de troca, comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente.

Você já pensou nesses limites? Ou de como são dados esses limites invisíveis, por parte das próprias relações? De maneira que, a partir da semelhança entrevistado-mediador, existe a aproximação ou distanciamento, que em um segundo momento incide sob os próprios resultados esperados.

Trago essa observação por já ter vivenciado cenas semelhantes. Em campo, fui a casa de uma entrevistada e quando percebemos que tínhamos algumas características e posicionamentos em comum, a conversa fluiu de uma outra maneira. Nos reconhecemos uma a outra. Imagino que quem faça pesquisa também já tenha vivenciado um “match” com o entrevistado fazendo com que os insumos colhidos tenham sido muito ricos já que ambos estavam mais à vontade. Mas isso pode ser assunto para um outro momento.

Escuta ativa e a importância das palavras

Nós enquanto pesquisadores precisamos exercitar a nossa escuta de forma a explorar o que o participante traz, a partir das palavras que ele traz. Por vezes, fazemos pergunta incisiva, sobre um tema específico, e o participante responde com outras considerações, e a partir disso temos a tendência de pensar que ele não entendeu a pergunta, então, a refazemos, até sair a resposta que queremos, e isso realmente não faz muito sentido se pararrmos para pensar. Neste sentido, como por aí tem se dado essa relação de troca? O que você tem ofertado e o que tem recebido?

Imagino que a essa situação há um ruído de nossa responsabilidade, se não soubemos interpretar o que ele nos trouxe, afastamos portanto, uma noção de que o participante não soube entender a pergunta. E no limite, será que realmente os ruídos de comunicação dentro de uma sala de pesquisa é realmente um problema?

Proponho aqui, a partir de todas nossas limitações, o exercício de troca genuína e diálogo a partir do que são as informações trocadas naquele espaço. É sobre repensar nossa escuta. Uma frase mal colocada do participante pode não servir de insumo para a sua pesquisa, mas com certeza te acrescentará em algo enquanto ser humano em uma sociedade tão plural como a nossa.

Para quem chegou até aqui, obrigada pela leitura, e: consumam artes pretas! Esté é um curta metragem produzido, dirigido e atuado por pessoas negras. Dono de uma riqueza contemplativa e convidativa para pensarmos nossas relações, nossas memórias, solitudes e afetos.

Referências bibliográficas:

Crítica ao Curta O dia de Jerusa http://kinoforum.org.br/criticacurta/o-dia-de-jerusa/

MAGNANI, J. Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 15, n. 32, jul./dez. 2009. 129–156.

Referências visuais:

Curta O dia de Jerusa: https://www.youtube.com/watch?v=0RY3pkRcPiQ

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Aline Rocha
UXMP
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Pesquisadora, malungueira, transoceanica e tantas outras coisas mais…