Case de UX/UI: NEGRITAR — Uma proposta de redução do racismo estrutural no mercado de tecnologia

Mikaela Alencar
UXMP
Published in
11 min readAug 1, 2021

Em 2020, participei de um projeto colaborativo online em que propusemos uma solução, baseada em pesquisas e estudos, para tornar ambientes corporativos de tecnologia mais acessíveis, diversos e representativos.

O projeto foi uma ação da Discovery Week da Zup Innovation em parceria com a UX para Minas Pretas. Após um breve período de inscrição de participantes e também de temas, foram selecionados 5 temas e 20 mulheres negras de vários estados, com experiências e expertises diferentes. Sendo Edilene Mendes, Fernanda Paixão e Neide Lucanga e eu no grupo 3. Nós contamos com o acompanhamento e mentoria da excelente madrinha, Renata Bastos.

Desafio

O desafio proposto pela organização do projeto ao nosso grupo foi:

Como podemos ajudar a reinserção de mulheres, em situação
de vulnerabilidade socioeconômica, ao mercado de trabalho?

Contexto

Em meio a crise política e socioeconômica no país, os números evidenciam o perfil mais atingido. As mulheres brasileiras, muitas vezes responsáveis financeiramente por suas famílias, não conseguem um emprego de carteira assinada e garantia dos seus direitos. Visualizando a pesquisa do PNAD — (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), temos a taxa de desemprego de 16,6% entre as mulheres negras, enquanto as mulheres brancas é de 11% e dos homens negros entre 12,1% e homens brancos é de 8,3%.

Recorte

Diante dessas informações, se faz necessário fazermos um recorte racial, já que a quantidade de mulheres negras desempregadas é maior e elas se concentram nos empregos mais vulneráveis. Porém, segundo o IBGE houve um aumento expressivo no número de pretas e pardas (10.4%) com o ensino superior concluído. Mesmo com um bom nível de escolaridade, a inclusão dessas mulheres em cargos de chefia em empresas são raros e carregam um histórico cruel e dolorido. O racismo estrutural demonstra que a problemática vai além dos esforços feitos para alcançar uma vaga e fatores como características físicas e vestimentas determinam a ocupação da vaga por pessoas de outros grupos raciais.

Investigando

Planejamento

O planejamento de pesquisa foi estruturado para que alguns pontos chave fossem parametrizados, como: objetivos gerais, premissas, perfil de recrutamento, os 3 porquês, metodologia, ferramentas e entregáveis.

Desk Research*

Nesta etapa buscamos entender um pouco mais sobre pontos de risco para a situação de vulnerabilidade socioeconômica dessas mulheres:

  • Mercado de trabalho
  • Escolaridade
  • Violência, contexto familiar e enfrentamento

Realizamos buscas na internet, conversamos com pessoas que tem ligação com o tema, buscamos dados abertos do governo e notícias.

Matriz CSD

A partir das Certezas encontradas nessa primeira pesquisa, elaboramos o que tínhamos de Suposições e Dúvidas.

Fonte: própria
Matriz CSD desenvolvida durante o projeto

Entrevistas

Realizamos pesquisas usando duas metodologias que julgamos necessárias para entender dados demográficos e comportamentais dos perfis considerados para o estudo: quantitativa e qualitativa.

Para a pesquisa quantitativa, elaboramos o roteiro de perguntas em um formulário com fluxos diferentes para as respondentes, baseados em alguns filtros criados em dados demográficos. As perguntas foram categorizadas em sessões como: localidade, acesso a serviços públicos, gênero, identidade étnico/racial, composição familiar, escolaridade e mercado de trabalho.

Após a análise dos dados coletados na etapa anterior, elaboramos uma pesquisa qualitativa semiestruturada* com sete mulheres com perfis que identificamos como os principais.

Foram entrevistadas 7 pessoas, que se identificam como mulheres e negras, entre 18 e 40 anos, moradoras da periferia de Recife. Em grande maioria haviam contribuído com a pesquisa quantitativa. É importante ressaltar que dividimos as entrevistas em duas frentes:

  • Mulheres em busca de recolocação no mercado de trabalho
  • Mulheres que já estavam alocadas no mercado

Nesse momento também tivemos a oportunidade de conversar com uma consultoria em Diversidade e Inclusão, que nos ajudou a ampliar o olhar para entender mais sobre o ambiente corporativo e os serviços prestados por eles. Foi uma conversa com o obtivo de fazer conexão e levantar dificuldades do negócio, mercado e estratégia.

Consideramos as informações coletadas suficientes para continuarmos com os estudos.

Board de Aprendizados/Insights de pesquisa

Para tabularmos os resultados das pesquisas quantitativa e qualitativa, optamos por fazer um board de aprendizados e insights, otimizando o tempo e facilitando a visualização das dores para o próximo passo do processo. O board tem a função de transformar:

  • a informação bruta -> em conclusões.
  • as conclusões -> em insights.
  • os insights -> em hipóteses.

A partir da criação das hipóteses, iniciamos o “como poderíamos” (também conhecido como “how might we”), para conseguirmos delimitar o problemática a ser resolvida. Por fim, fizemos uma votação entre o grupo para decidirmos qual seria o caminho viável que seguiríamos e chegamos a:

Como poderíamos auxiliar na contratação de mulheres sem experiência nas áreas de tecnologia e facilitar o treinamento por parte das empresas?

Board com consolidação da entrevista em etapas

Entendendo as necessidades e dores, buscamos oportunidades de fazer com que as empresas enxerguem, diante das habilidades dessas mulheres, profissionais com potencial para contratação.

Mapa de empatia

Com os dados tabulados e os cards do “como poderíamos?” definidos, decidimos criar um mapa de empatia para identificarmos o que pensa, sente, ouve, faz e fala. Também visualizando dores, necessidades e desejos dos perfis abordados.

Mapa de empatia desenvolvido durante o projeto

Personas

As pesquisas foram fundamentais no processo de criação de cada persona, identificando de forma mais nítida a compreensão das dores e potenciais soluções.

Contexto da usuária

Persona principal (Evellyn Moraes)

Era uma vez Evellyn, uma mulher negra e periférica, que estudava e amava tecnologia e sempre estava atualizada dos assuntos. Iniciou sua carreira no telemarketing e tinha muito interesse em migrar para sua área de formação.

Todos os dias Evellyn buscava vagas em sua área de TI e encontrava muitas com seu nível de conhecimento; no entanto, não tinha sucesso de ser contratada por nenhuma empresa que realizava as entrevistas.

Até que um certo dia, ela foi entrevistada para uma vaga perfeita. Além de ficar encantada com o tratamento do entrevistador, foi selecionada. Até se identificou com a sua chefe que era preta igual a ela.

Por causa disso, Evellyn ficou mais animada e estimulada com a sua carreira profissional e buscava a cada dia estar mais atenta sobre as atualizações da área.

Até que finalmente ela conquistou o seu sonho de conseguir a vaga dos sonhos e de ajudar financeiramente a sua família.

Persona desenvolvida durante o projeto

Jornada da usuária

Com o estudo da jornada da usuária identificamos que seria uma oportunidade de estruturar a empresa para receber essas profissionais. Pois por mais que essas mulheres fossem estimuladas e mais preparadas para o mercado, as empresas teriam que saber acolher, receber e contratá-las. Definimos que a área que queríamos fazer esse recorte seria a das mulheres que estão em busca de oportunidade no âmbito da tecnologia na capital pernambucana Recife.

Jornada da usuária desenvolvido durante o projeto

Benchmarking

Selecionamos sete empresas concorrentes (Currículo para Elas, Programas de Treinee, Mentora, Inboarding, Programa Vencer, Projeto Cruzando Histórias, Tem Saída), para analisarmos e entendermos a forma de estruturação das suas funcionalidades. Mapeamos alguns serviços e funções que estavam presentes nas plataformas, sendo:

  1. Público alvo específico
  2. Serviço gratuito
  3. Formulários para inscrições
  4. Avaliação curricular
  5. Treinamentos/mentoria
Benchmark desenvolvido durante o projeto

Objetivos de negócio

Com o intuito de auxiliar no processo de melhorias dentro das empresas e mercado da tecnologia relacionadas a diversidade, focamos no aumento significativo das contratações de mulheres negras e pardas. Minimizando os prejuízos causados por essa dívida histórica. De acordo com as informações pontuamos os seguintes objetivos:

  1. Aumento ou equiparação no número de mulheres negras e pardas contratadas por exemplos de tecnologia;
  2. Aumento ou equiparação no números de mulheres negras e pardas com cargos de liderança nas empresas;
  3. Aumento ou equiparação no números de ações sobre diversidade dentro das empresas;

Ideação

Partimos para a etapa da ideação onde colocamos as ideias, que foram embasadas com a pesquisa, no papel. Utilizamos o método do crazy 8’s com o intuito de explorarmos o máximo de ideias possíveis. E realizamos uma votação para definirmos, de acordo com o objetivo do projeto, a solução que deveríamos abordar. Seguindo com o intuito de estruturar as empresas para receber essas profissionais do âmbito da tecnologia, escolhemos soluções que trabalham:

  1. Formação para as empresas e funcionários relacionados a temática diversidade;
  2. Certificação e analise de nivelação dessas empresas, com relação a diversidade;
Dinâmica de crazy 8’s desenvolvida durante o projeto

Priorização de funcionalidade

Logo após, fizemos um board de funcionalidades priorizadas para visualizarmos e definirmos, de acordo com a plataforma que queríamos criar: “O que é?”, “O que não é?”,O que faz?” e “O que não faz?”

E assim criamos uma matriz de impacto/esforço com o objetivo de avaliarmos quais as soluções de prioridade nesse universo de possibilidades. Com a matriz, definimos que iríamos priorizar as seguintes funcionalidades dentro da plataforma: certificação, o formulário de cadastro com informações da empresa para analise de níveis.

Matriz de priorização desenvolvida durante o projeto

Análises das Certificações

Para entendermos como funciona as certificações fizemos um outro benchmarking, dessa vez focado na visualização das etapas de uma certificação. Escolhemos três empresas concorrentes, sendo elas:

  • Certificação Guia de rodas — é um programa que reconhece as melhores práticas de acessibilidade. Ela se baseia na premissa de que acessibilidade deve ser vista como um exercício contínuo e no conceito de que “ambientes acessíveis” são compostos pela estrutura física e pelas pessoas.
  • Selo Paulista da Diversidade — é uma certificação dada a organizações públicas, privadas e da sociedade civil. Com objetivo de estimular essas organizações a inserir este assunto na sua gestão de recursos humanos
  • Sistema EDGE, Excellence in Design for Greater Efficiencies — é um programa de certificação de edificações desenvolvido pelo IFC, membro do Grupo Banco Mundial; Visa otimizar a eficiência em recursos do projeto e desmistificar a construção sustentável.

ESG

Nessa etapa tivemos um contato mais profundo com o tema ESG -Environmental, Social and Governance*, que é usado em algumas empresas como base para criar métricas, basear e direcionar boas práticas dentro dos temas relacionados, tornando-se critério de análise usado em um modelo de investimento.

As aplicação de sustentabilidade, governança corporativa e impacto social na perspectiva financeira, porém com ressalvas, pois dentro dessa lógica, não basta somente ações com reflorestamento, parte do olhar estratégico precisa estar alinhado com propósitos. Acrescentando também um tom mais proativo do que reativo, principalmente por parte da liderança dessas empresas. O posicionamento precisa estar alinhado com preocupações e posicionamentos reais sobre pilares ambientais, sociais e de governança.

A partir do pilar social, enxergamos ainda mais a relevância do tema do projeto, e o impacto que o alinhamento de ações de Diversidade, Inclusão e Equidade de Gênero podem gerar positivamente.

A certificação da Negritar

Após analisarmos como era feito o processo de certificar no mercado, criamos a nossa estrutura de certificação. Com o objetivo de avaliarmos as conduta com relação a contratação de funcionárias negras e pardas. Como funciona:

Etapas da certificação desenvolvidas durante o projeto
  1. A empresa faz o primeiro contato com a Negritar;
  2. A empresa passa por um formulário com questões relacionadas aos seus contratados em que será informado o seu nivelamento;
  3. A empresa passará por uma comprovação de dados:
    - Entrevista online com os colaboradores + Primeira análise de relatórios;
  4. A empresa recebe a visita de auditoria, para análise dos documentos que basearam os relatórios, análise da comunicação disponível em ambientes de grande circulação, e a possibilidade de criar pessoalmente um ambiente seguro para colaboradores que queiram conversar, possam agregar pontos relevantes sobre temáticas que possam interferir em índices de diversidade;
  5. A empresa recebe a certificação;
  6. E, de acordo com o seu nível, tem acesso a treinamentos online/presencial;

Wireframe

Para a criação do wireframe, debatemos coletivamente sobre as funcionalidades da plataforma, de acordo com os objetivos do projeto e o que foi definido nas etapas anteriores. Criamos no Miro, a primeira versão e partimos para validação com duas empresas com pessoas de recursos humanos da ramo de tecnologia.

Wireframes criadas na plataforma Miro para guiar e validar os protótipos nos primeiros testes da plataforma Negritar

Saímos dos dois testes com feedbacks importantes, a solução foi apontada como muito útil para as empresas buscando trabalhar diversidade, faltava algo atrativo para empresas tradicionais e foi observado também, pontos de melhoria em usabilidade, mesmo com a conclusão das tarefas por parte das pessoas que realizaram o teste. O teste demonstrado como uma das etapas da certificação foi considerado simples e os serviços de formação foram apontados como desejáveis.

Fluxo definido

Fluxo desenvolvido durante o projeto

Style Guide

Chegando nas etapas finais desse processo é a hora de definirmos as cores, tipografia e estilo e assim aplicar ao nosso protótipo de alta fidelidade.

Cores

Definimos quatro principais cores: Laranja, Roxo e Cinza, essa combinação desperta um sentimento vibrante e conversa diretamente com a público da tecnologia.

Tipografia

Utilizamos a mistura das tipografias Poppins e Roboto. Os tamanho foram definidos através da legibilidade e leiturabilidade. Definindo o peso tipográfico distintos para textos e títulos, assim como para botões.

Botões e Ícones

Criamos botões primários e secundários tendo como foco os momentos da interação do usuário. Os ícones foram pensados no estilo line art, com o intuito de suavizar a plataforma.

Protótipo

O protótipo de média fidelidade foi criado com base na construção do wireframe. Com essa plataforma buscamos oferecer uma forma das empresas se analisarem com relação a diversidade no âmbito corporativo e aplicar conhecimentos adquiridos para combater, no cotidiano, o racismo estrutural de forma eficaz.

Mockup dos protótipos da plataforma

Acesso ao protótipo de alta fidelidade

O prazo do projeto impossibilitou a realização de testes de usabilidade nesta etapa.

Conclusões e aprendizados

A Negritar foi um projeto que mexeu em muitas camadas pessoais, como disse Fernanda Paixão: “Escutar e projetar uma problemática que é a realidade de todas do grupo, por vezes foi dolorosa e por outro lado a representatividade é muito significativa, pois lidamos com dores conhecida por nós”, e colocou para jogo a capacidade de trabalhar sem viés.

No âmbito profissional também foi extremamente potente, pois em todas as etapas algo novo era testado ou discutido como possibilidade e foi fundamental confiar nos processos e métodos para concluirmos e entregarmos um projeto que realmente fosse útil, com valor e propósito pensado em pessoas.

Foi um período de trabalho colaborativo, troca de conhecimento e aprendizado intenso, agradeço a sorte de ter ao meu lado mulheres tão maravilhosas e potentes como Edilene, Fernanda e Neide. Além de suporte e apoio da Valéria Reis, Ligia Oliveira, Joyce Rocha, Renata Bastos e equipe da Zup Innovation. Além, é claro, da Karen Santos com a UX para Minas Pretas que possibilitou nossos encontros.

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