Coisas que não foram feitas para mim

Priscila Regis
UXMP
Published in
4 min readJun 10, 2021

(Um pequeno recorte étnico-racial da necessidade do design inclusivo)

Não é de hoje que eu percebo isso, mas só agora eu resolvi escrever sobre. Talvez a escrita seja reflexo de ter assistido a série A Vida e a História de Madam C.J. Walker na Netflix + Webinar no trabalho com a Djamila Ribeiro sobre Racismo Estrutural + Aula sobre desenho Universal no Curso de Formação na Mergo + Todas as minhas vivências e experiências de viver em um país ainda racista e preconceituoso, tudo junto e misturado. Ou talvez seja só a necessidade de “falar” mesmo.

Quando criança eu nunca encontrei bonecas da minha cor, com os cabelos crespos ou cacheados, nas prateleiras faltavam cremes que fossem específicos para o meu cabelo, é mais difícil encontrar clínicas especializadas nas especificidades da pele negra, eu entrava em lojas e logo era preterida em relação a outros clientes e demorou um pouco até eu entender o porquê.

Mas lendo esse trecho com certeza você, se for pessoa branca, vai logo pensar “ai, Priscila, mas nem é tão assim, isso e aquilo mudou” ou então, vai achar que estou exagerando, pois “não é possível que esse tipo de coisa aconteceu assim” e eu vou te dizer que eu sei e que realmente muita coisa mudou, mas vamos e convenhamos, ainda tem muuuuuuuita coisa a ser transformada, só que, muitas vezes, da nossa bolha é difícil de enxergar. Mas a verdade é que por mais que tenhamos alguns avanços em algumas áreas, o racismo estrutural está aí e ainda tem muita coisa para mudar nesse mundão de meu Deus e é sobre isso que eu vim refletir hoje. Escrever para desabafar tudo que eu senti explodir em mim nesses últimos dias, por mais que eu já tenha vivido diversas situações assim a vida inteira.

Já pensou se fosse o contrário? Uma jovem branca olhando para prateleiras onde só têm bonecas pretas. A foto de Chris Buck para a Oprah Magazine faz essa crítica

No mês passado eu comecei um curso de formação em UX Design pela Mergo e desde então muitas coisas começaram a fazer sentido para mim, em especial a terceira aula. Tivemos a aula de Desenho Universal, em que aprendemos acerca da necessidade de criar produtos/serviços que sejam inclusivos, alcançando o maior número de pessoas possíveis.

Na última sexta-feira, eu fui acompanhar meu namorado em uma loja especializada em bicicletas, na intenção de buscar um capacete para ele. Como no momento estou usando tranças box braids eu pensei: “ah, nem vou pegar o meu hoje, deixa para quando eu estiver sem” — pois como o capacete precisa ser do tamanho correto da cabeça e as tranças eu utilizo raramente, imaginei que o ideal seria comprar quando eu estivesse com o cabelo natural. Qual foi a minha surpresa, quando meu namorado perguntou se haveria algum capacete que servisse para mim e o vendedor disse “para ela não tem nenhum que sirva, mas para a outra menina tem” — se referindo a nossa sobrinha, que ~adivinhem só~ tem cabelo liso.

Naquele momento eu fiquei chocada, pois se antes eu achava que poderia escolher usar algo ou não, senti uma leve rasteira de que na verdade nem testar eu podia, não havia nada para mim ali. Não serve para quem usa tranças, algo que para mim é uma opção de mudança, mas que para muitas pessoas é o seu natural. E assim, subitamente fui levada à aula da professora Aline Santos e lembrei da importância das criações que também alcançam os grupos minorizados e do quanto o mercado ainda é escasso do design inclusivo.

Durante a aula eu também havia me lembrado que me inscrevi em uma academia com natação, mas para achar uma touca que me sirva, eu precisei procurar na internet uma touca específica para cabelos crespos, pois em uma grande loja do ramo esportivo eu não encontrei nenhuma, por maior variedade que lá tivesse de materiais, cores e tamanhos, nada ali era feito para mim e para os outros 54% da população negra no Brasil.

Fiquei pensando em como é normalizado o fato de ir em uma loja e não encontrar algo que se adeque a todas as etnias e no quanto muitas coisas são criadas apenas para um grupo específico e os outros que se adequem/virem/desistam de fazer tal coisa. Em todo o tempo eu só conseguia pensar no quanto a aula da Aline era necessária e deveria ser vista por todas as pessoas possíveis pois, quem sabe assim, no longo prazo tenhamos criações que pensem na diversidade de pessoas que existem no mundo.

Eu sei que muitas startups hoje estão olhando para essas e outras necessidades, o povo preto tem conseguido, dia após dia, avanços sólidos, mesmo em meio a tantas desigualdades a que somos expostos. Prova disso é que logo me lembrei do post que a Karen Santos fez sobre um capacete especial para pessoas negras, da startup que está criando óculos focados em pessoas negras e tantas outras coisas legais que me dão esperança de um amanhã com opções de compras. Todavia, também noto que todas as criações são da gente para gente, mostrando o quão necessário é que as grandes marcas acordem para o nosso potencial de compra e comecem a incluir os grupos minorizados em seu público alvo para sua gama de produtos e serviços.

Tal como dito na segunda aula, com o tema Empatia para UX, é preciso que, mesmo que algo não seja a nossa necessidade, nós pensemos na diversidade quando estivermos criando algo. Seja para o recorte racial que eu fiz ou paras os demais grupos de diversidade existentes que muitas vezes são colocados como “outros”, mesmo quando muitas vezes representam o maior público quantitativamente. Seguindo os princípios de Design Inclusivo:

Os Princípios do design inclusivo tratam basicamente de colocar as pessoas em primeiro lugar. É sobre projetar produtos pensando em necessidades específicas de pessoas com deficiências permanentes, temporárias, situacionais ou mutáveis de acordo com suas respectivas situações, ou seja, na verdade é projetar pensando em todos nós.

--

--

Priscila Regis
UXMP
Writer for

Baiana vivendo em São Paulo. Designer de Produto Designer Preta. Graduada em Design, Análise e Des. de Sistemas