American Crime Story: The Assassination of Gianni Versace — A dialética de realidades

Guilherme Arraes
Vórtex
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5 min readApr 9, 2018

Tendo como plano de fundo uma Miami caracterizada pela glamourização de estrelas inalcançáveis pelo público, o uso exagerado de blusas regatas e uma fotografia saturada para resgatar memórias saudosistas dos verões norte-americanos, The Assassination of Gianni Versace tem início com o estabelecimento de uma dicotomia entre o algoz e sua vítima.

Com base em um dos acontecimentos definitivos da década de 1990, a segunda temporada da aclamada série idealizada por Scott Alexander e Larry Karaszewski com apoio de Ryan Murphy e Brad Falchuk, dupla dinâmica que vem redefinindo conceitos na televisão norte-americana, encontra inspiração para o desenvolvimento de sua trama com no livro Vulgar Flavors, de Maureen Orth, além de contar com a inspiração criativa e poética dos roteiristas para o melhor detalhamento dos eventos retratados.

A relação dicotômica entre os personagens tem como base a personificação de Gianni, logo nas primeiras cenas, como o artista que tentava emular uma espécie de renascentismo moderno por meio da moda, que acorda rodeado pela presença do dourado, seja pela roupa que veste ou pela própria arquitetura de sua residência. Enquanto isso, assolado pela sua decrepitude física causada por uma possível doença sexualmente transmissível (a série dá a entender que tanto Gianni quanto seu assassino eram portadores do vírus HIV, apesar da análise de presença do vírus na autópsia do corpo de Cunanan ter dado negativa), Andrew Cunanan grita em meio ao mar por se dar conta do caráter ordinário de sua vida, pautada por uma idealização exacerbada da figura do estilista.

Ao mesmo tempo tão parecidos em decorrência da exclusão promovida por uma sociedade assumidamente homofóbica, e diferentes pelo estrelato e o ordinário, Gianni Versace e Andrew Cunanan, em uma análise estrita de suas realidades, representam um jogo dialético que somente Platão poderia explicar.

Conforme o pensamento desenvolvimento pelo filósofo Platão, a realidade humana seria composta por dois planos: o mundo sensível e o mundo inteligível. Por meio dessa diferenciação, o filósofo põe fim ao conflito entre dois pensadores anteriores, Heráclito e Parmênides, ao considerar que ambos estavam certos. Para Platão, a realidade que vivemos, chamada de mundo das coisas (sensível), seria de caráter fluído por ser apenas uma emulação de uma realidade superior, chamada de mundo das ideias (inteligível).

Ao adotar uma forma que rompe com a convencionalidade narrativa de séries de natureza documental com elementos ficcionais, começando por aquilo que seria o desfecho da trama e retrocedendo aos seus eventos motivadores, observamos a construção de um passado conturbado na criação de Cunanan, que tinha como base um caráter essencialmente protetivo. Para ele, o seu destino era ser considerado alguém especial, que fugiria do mero ordinário e conquistaria grandes feitos.

Aplicando o pensamento platônico na relação de Andrew Cunanan e Gianni Versace, o assassino poderia ser explicado com base no mundo das coisas. Andrew, em decorrência de seu senso de grandeza produtor de histórias fantasiosas, consegue emular múltiplas realidades para impressionar todos ao seu redor, mas que consistem apenas em chegar ao mesmo status de seu ídolo, Versace, que seria o mundo inteligível.

Entretanto, ao observar que suas histórias faraônicas começam a ser descobertas, o jovem michê começa seus assassinatos por causa de ciúmes entre Jeff Trail e David Madson, melhor amigo e ex-relacionamento de Andrew, respectivamente. Cunanan percebe que tais atos poderiam trazer para si a atenção tão desejada. Na busca da fuga da normalidade, da qual era tão avesso, ele busca inciar uma onda de terror pelo território norte-americano, em um plano característico da megalomania.

Só que Andrew não levou em consideração dois elementos primordiais: a) suas vítimas, quando trazidas ao conhecimento amplo do público após a morte de Gianni Versace, sensibilizaram os Estados Unidos e criaram um sentimento contrário ao assassino; b) a sociedade dos anos 1990 era assolada pela homofobia, então nem mesmo o FBI, apesar de elencá-lo como um dos principais procurados em solo americano antes do assassinato de Versace, tinha interesse de resolver a problemática de um serial killer gay que matava vítimas homossexuais.

Dessa forma, as vítimas de Andrew Cunanan são, em algum ponto, pessoas que o próprio gostaria de ter sido, pessoas que ele tentava desesperadamente emular. Sua primeira vítima, o ex-oficial da marinha Jeff Trail, possuía relação estável com a família e sua morte fomentou o combate à homofobia no meio militar dos EUA. Sua segunda vítima, alegada como o grande amor de sua vida, David Madson, possuía carreira promissora no meio da arquitetura e também mantinha relação estável com a família. No caso da terceira vítima, o milionário Lee Miglin, há a presença da construção de um legado em seu nome na cidade de Chicago. No caso da quarta vítima, William Reese, é notória a relação estável com a família. Por último, mas não menos importante, o estilista Gianni Versace nada mais é do que o símbolo máximo venerado como entidade quase que divina por Andrew, possuidor de extensa fama no meio midiático, sendo homossexual assumido publicamente, apesar de não ter sido isento de pronunciamentos contrários à sua imagem pela revelação de tal fato.

Cunanan, apesar de ser meio condutor da narrativa, é apenas mero personagem secundário de seus atos, sendo ofuscado por todos. Funcionando como o estopim para que os casos antecessores fossem levados ao conhecimento geral, Versace é o elemento agregador de realidades inteligíveis que Andrew invejava em suas vítimas: homossexual bem sucedido, com relação familiar estável, milionário e com um legado que marcou a história da moda para todo o sempre.

E ao contemplar essa relação multifacetada e complexa por perguntas que só poderão ser respondidas pela interpretação do público, The Assassination of GiannI Versace, apresentando uma história caracterizada pela sordidez oriunda de uma mente influenciada pelo narcisismo e pelo preconceito, consegue demonstrar com beleza sua genialidade.

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Guilherme Arraes
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Sofre constantemente com decepções por criar expectativas muito rápido.