Pra quê você quer três reais?

André Alcântara
Vórtex
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9 min readMay 12, 2020

É pra comprar jogo, né?

Sábado é dia de feira na minha cidade, Canindé de São Francisco, no alto sertão de Sergipe. Faz um calor danado. Pelo menos era essa a minha impressão quando criança. O sol parecia estar mais perto da cidade, sabe? E toda aquela gente zanzando pra lá e pra cá só acentuava essa sensação. Mas eu amava sábados. Era nesse dia que recebia o ingresso que iria prover a minha alegria pelos próximos sete dias. Um jogo de PlayStation 2 ou um DVD com um punhado de episódios de Naruto. Com — muita — sorte, os dois.

Aparentemente, nada demais. Mas, para o meu eu de 11 anos, eram o sentido de viver. E minha mãe abriu a porta. Às 7h e poucas de um calorento dia no sertão do ano de 2011, tinha início a minha odisseia semanal pelo ticket da felicidade.

“A pessoa sai, deixa tudo pronto pra você encher o rabo e nem os pratos tem coragem de lavar. Dá vontade de passar sua cara aqui. Sei não, viu? Sei não”, falou minha mãe da cozinha, onde descarregava as infindáveis bolsas plásticas que havia trazido sozinha por uma distância razoável sob um sol tão quente quanto uma brasa. A mãe solo brasileira média não tem um dia de paz. É foda. Eu deveria ter lavado os pratos, mas aos sábados passava Krypto, o Supercão no SBT. Silêncio.

A estratégia sempre era deixar o furacão passar. Demorava, mas passava. “Mas será possível que nem a cama você ajeitou, André? Deus, me dê paciência. Eu já tô enfezada, viu?” Silêncio. Sem dizer nada e de cabeça baixa, fui tomar banho. “Tá mudo é?” Ficar mudo era a melhor opção, sempre. Acho que comprar um jogo nunca foi tão difícil. E então o furacão passou, e me aproximei cautelosamente.

“Mainha, a senhora tem três reais sobrando?”, perguntei, já sabendo o que ela falaria a seguir. “E aqui em casa lá sobra dinheiro, menino? Pra quê você quer três reais? É pra comprar jogo, né?”, repetiu ela a fala de todos os sábados. “Você já tem muito jogo já.” Era chegada a hora da apelação: “vá, mainha, eu não pedi nada à senhora a semana toda. E essa semana ainda foi semana de prova. A senhora viu que eu estudei…”

Dinheiro na mão. O primeiro ato da odisseia havia se concretizado. Da cozinha, uma voz retumbante chegava até o portão com força: “agora cuidado na rua, viu? Compre seu negócio e venha direto pra casa”. Segui.

“Geyvisson! Ô Geyvisson! Geyvisson!”, gritava eu enquanto batia à porta de Geyvisson, que morava depois de duas três casas da minha. Colega de escola e parceiro de hobby. “Diga aí”, falou ele ao abrir a quadrada janela de vidro da porta de ferro. “Ei, véi, bora ali comprar um jogo comigo, lá na feira. Tu pode?”, perguntei de prontidão.

“Ô véi, posso não. Mainha foi na feira com painho. Tô cuidando de Geninho aqui.” Quase nunca Geyvisson podia. Era compreensível alguém não querer sair sob o sol implacável de uma cidade do sertão sem uma grande necessidade ou motivação por trás, ainda que estivéssemos acostumados com esse algoz tão presente no nosso cotidiano. “Ah, beleza então. Deixe, vou sozinho mesmo.”

Na metade do caminho minha pele queimava feito brasa. Sentia o chão fervendo sob a sola dos meus chinelos. Minha cidade normalmente é quente, mas aos sábados fazia um esforço adicional. Passando por um grupo de bodes presos à uma placa sinalizando que ali era proibido estacionar e por uma porção de garotos de 12 anos que levavam compras de senhoras de idade em carrinhos de mão com adesivos eleitorais, avistei a banca de Edmundo.

O loiro homem baixo de pele queimada pelo sol era uma figura mítica dos videogames na cidade. Ele ostentava a principal locadora de Canindé — locais em que se paga x valor por y quantidade de horas de “jogatina”. Durante anos manteve de pé uma locadora na cidade. E não era uma locadora comum. Ao contrário de seus pares de atividade, nunca se esquecia de comprar novos jogos para colocar à disposição das tantas crianças e adolescentes que sacudiam moedas nos bolsos ao chegar na locadora (ou somente videogame, como são conhecidas em Sergipe).

No interior, definimos algo como novo a partir de uma perspectiva temporal própria — devido a fatores econômicos principalmente (pouquíssimos têm o que é considerado novidade no mundo distante da capital). É claro que estou falando a partir da minha própria experiência morando em um dos diversos interiores do Brasi (engana-se inteiramente quem acha que não são marcados por enormes diferenças).

Se não tínhamos tido contato anteriormente com algo, esse algo é — obviamente — novo. Para muitos, era como se os PlayStation 3 e Xbox 360 que Edmundo disponibiliza no ano de 2012, um ano antes da chegada do PlayStation 4 e do Xbox One, tivessem sido lançados há somente dias. Vale lembrar que ele foi um dos únicos na cidade a possuí-los. Quando fechou suas portas, o PlayStation 2 voltou à sua posição hegemônica. E sim, ele continua a ser completamente dominante, mesmo 20 anos após seu lançamento.

Edmundo vendia os melhores jogos. Ele tinha uma variedade avassaladora de títulos (apesar de eu sempre preterir as supostas obras-primas do PS2 por produções que eu posteriormente iria descobrir que eram rotuladas como obscuras ou apenas de má qualidade). Eu não dava a mínima para capas de jogos como Kingdom Hearts, Metal Gear Solid, Final Fantasy ou Silent Hill. Até cheguei a levar alguns desses pra casa, mas odiei todos — em especial Metal Gear Solid 3: Snake Eater (eu e meu irmão mais velho literalmente quebramos o disco do jogo porque não sabíamos o que fazer na suposta obra-prima de Hideo Kojima).

“E aí, Edmundo”, esse era o início do ritual. Depois, ia para a parte de trás da banca de madeira e lona, que ficava bem ao lado da entrada do mercado municipal de venda de carnes (que, pra mim, sempre foi uma espécie de mini experiência de como é o inferno). Passaria alguns minutos prostrado ali, explorando a biblioteca de capas de games, formadas por: DVD, saquinho de plástico e a imagem da capa original do jogo impressa em papel A4.

Suor escorrendo pelo rosto. Forte barulho por todos os lados. Uma iminente briga entre bêbados em um bar próximo. À minha frente, Tony Hawk’s Downhill Jam, spin-off da popular série de jogos de skate que é basicamente um game de corrida de skate em que você pode criar seu próprio personagem. Não sei exatamente o que me chamou a atenção. Talvez tivesse ouvido o nome Tony Hawk associado a skate em algum momento no colégio. Naquela época começava a me interessar por skate.

Ao fundo, feira livre de Canindé de São Francisco, Sergipe (2019), por André Alcântara

“Edmundo, aqui, ói, os três reais. Se não pegar posso vir trocar, né?”, perguntei, entregando a nota de 2 reais e duas moedas de 50 centavos. “Pode, contanto que não teja arranhado, pode. Dê logo uma olhada aí”, pediu ele enquanto já voltava a atenção a um cliente que pedia um CD de brega. Tirei o jogo da bolsinha preta de plástico e abri o saquinho, lacrado com uma cola própria. Analisei o DVD de azul translúcido. Tudo — aparentemente — ok. Sem arranhões, manchas ou mesmo poeira. “Tá massa. Valeu.”

Todo sábado, o temor era de o jogo não funcionar e eu precisar refazer todo aquele caminho castigador. Às vezes, alguns feirantes e vendedores eram resistentes à troca. Paulista e Baixinho não ficavam contentes quando voltava com o jogo em mãos afirmando que não havia funcionando. “Pegou não” era a última coisa que eles queriam ouvir. Compreensível, já que o negócio não era o mais lucrativo do mundo. Uma vez precisei ir acompanhado do meu irmão mais velho, que passa uma imagem no mínimo intimidadora, pra que Baixinho trocasse o jogo que eu comprara e que não funcionou. Não ofereceu nenhuma resistência.

Felizmente, Edmundo era bastante flexível. Porém, nesse caso não foi necessário. Com o suor pingando pelo queixo e corpo quente feito fogo, a tela inicial do PlayStation 2, ali, na TV de tubo de 21 polegadas, não mentia: o jogo funcionava. Respirei aliviado. Segundos antes, parecia que o mundo tinha parado de girar e o tempo, congelado. O ticket da felicidade havia sido conquistado, enfim. Agora era torcer pra que não travasse no meio do caminho (pra terminar Resident Evil 4 precisei comprá-lo umas 4 vezes porque o jogo sempre apresentava algum tipo de erro durante a experiência).

Toda essa história, que não se trata de uma narrativa exatamente fiel a um dia específico da minha vida — e sim um retalho de memórias relacionadas a comprar jogos aos sábados — , revela duas coisas: a relação com o videogame que se tem no interior (no meu, especificamente, ainda que tenha aspectos em comum com outras localidades) e a importância dos feirantes e vendedores de jogos (muitos também donos de locadoras) para jovens como eu.

A ideia de relação para com videogame que se tem difundida na mídia de modo geral é completamente míope. Videogames são elitistas. Consoles são caros. Jogos são caros. Em países como o Brasil, quem quer ter acesso a eles precisa dar um jeito. E em cidades como a minha, não é dada nem a oportunidade de se fazer o caminho “legal”.

Até hoje não há lojas vendendo jogos ou consoles originais. Nem a possibilidade de ter era nos oferecida. É a partir disso e de fatores locais históricos, econômicos, sociais e culturais que se dá a relação com jogos em diversas localidades do Brasil. A região sudeste, que controla até hoje os principais veículos e grupos de mídia relacionado a jogos, nos fez enxergar a relação com videogames como algo homogêneo. Na verdade, trata-se de algo profundamente heterogêneo — também dentro dessa mesma região, diga-se de passagem.

Uma das poucas locadoras que sobrevivem em Canindé (2019), por André Alcântara

É curioso observar como muitas vezes a relação com videogames em diversas localidades está completamente alheia ao o que um grupo da elite do setor acredita que é a coisa principal do momento. Quando ia a uma banca de jogos na feira livre não tinha informação sobre quais eram os consoles de última geração nem quais eram os títulos supostamente mais jogados do mundo na época.

Era como se a lógica de consumo imediato de tudo o que é novo para indústria, que ostenta esse status numa piscadela e na outra já o perde, simplesmente não me atingisse. (É importante lembrar que essa lógica é, propositalmente ou não, reforçada pelos veículos de games, já que, durante anos, foram o principal meio de comunicação da indústria dos videogames com o público.) Os tentáculos dessa estrutura não me possuíram, deixando um vácuo ocupado por uma lógica paralela, que, ao seu modo, dava acesso ao que nos era sistematicamente negado.

E a partir dessa lógica que surge da ausência de interesse da indústria de ocupar um determinado espaço, que obviamente não inibiria de maneira absoluta esse sistema alternativo, nasce uma rede econômica e repleta de relações sociais das mais diversas ordens — atravessadas por fatores locais de naturezas diversas. Tudo isso por conta do videogame. Não pelo mercado “oficial” do qual faz parte — que por sua vez existe porque videogames são da maneira que são — , mas por agentes que, de forma não proposital, tornam o acesso muito mais democrático a algo que considero essencial ao nosso arcabouço cultural.

E lógicas dentro de outras lógicas acabam por surgir também. Lembro-me perfeitamente da época em que eu e alguns colegas de turmas começamos a jogar games de Pokémon via emulador de celular no colégio (especificamente Ruby e Fire Red). As batalhas e trocas de monstrinhos eram feitas via um recurso do emulador que utilizava Bluetooth para fazer a conexão entre os dispositivos. Antes, jogávamos em casa, no computador, impossibilitados de qualquer tipo de interação dentro do jogo. Uma lógica criada a partir de uma outra lógica. Com certeza essa não era a forma que a Game Freak ou a Nintendo imaginava que uma pessoa acessaria seus jogos, mas esse era o único modo pelo qual podia fazê-lo.

Se não fosse por isso, provavelmente você não estaria lendo este texto. Se não fosse por feirantes de jogos e por donos de locadoras, meu interesse por videogames definitivamente não seria o mesmo. E apesar de estarem à margem da legalidade — e por muitas vezes a ultrapassando — , são personagens essenciais para entendermos a cultura nacional de videogame e por termos uma forte presença da mídia no país, que concentra um de seus maiores públicos.

Destaco que não estou declarando defesa cega e absoluta à pirataria. Porém, é através dela que podemos fazer preservação histórica digital, por exemplo, ou ainda permitir que milhares de pessoas tenham acesso ao que simplesmente lhe foi negado a possibilidade de experienciar. Se jogos eletrônicos são o que são no Brasil, independente da perversidade mercadológica nascida em contexto de capitalismo tardio, é à pirataria e aos agentes “democratizantes” do videogame que devem agradecer em primeiro lugar.

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