The Neon Demon — Quando a morbidez do desejo fala mais alto

Guilherme Arraes
Vórtex
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4 min readFeb 11, 2018

Nicolas Winding Refn, ou NWR, como é comumente chamado, viu sua carreira ascender surpreendentemente após o grande sucesso de Drive, filme lançado em 2011 e protagonizado por Ryan Gosling. Apesar de ter encabeçado outros projetos anteriormente, como Valhalla Rising e a trilogia Pusher, nenhum deles chegou a alcançar tamanha repercussão. Chamado de visionário e se tornando uma das promessas de Hollywood, NWR se tornou um dos queridinhos da indústria e da crítica, gerando altas expectativas para seu futuro projeto.

Eis que surge Only God Forgives, odiado por muitos e amado por outros tantos. Repetindo a dobradinha com Gosling e trazendo de volta Cliff Martinez, responsável pela trilha sonora de Drive, era de se esperar que o projeto de NWR fosse um sucesso. Transvestido por uma vendetta pelas ruas de Bangkok, Refn abandona a preocupação com um roteiro amarrado para fornecer uma trama carregada por simbolismos, tendo enfoque no preciosismo estético, característica de sua obra. Amplamente esperado na 66ª edição do Festival de Cannes, foi recebido com vaias, além de receber duras críticas pelo público durante a exibição.

Em 2016, seu novo projeto (primeiro do diretor a ter uma protagonista feminina) tornou a receber o misto de vaias e aplausos na 69º edição do Festival de Cannes. Entretanto, os ataques à The Neon Demon, assim como Only God Forgives, não diminuem a potência estética e narrativa da obra. Oferecendo uma crítica ácida aos padrões de beleza estabelecidos pela indústria da moda, NWR utiliza de recursos considerados profanos para retratar os desejos reprimidos de um universo ditado por regras que repreendem o uso do corpo humano.

The Neon Demon aborda a carreira de Jesse (Elle Fanning), uma garota de 16 anos que acaba de chegar em Los Angeles para tentar seguir a carreira de modelo. Possuidora de uma beleza natural estonteante e de uma ingenuidade cativante, é meteórica a sua ascensão no meio. Ao lidar com o ego inflado e a prepotência das modelos do meio e interesses ocultos, esses representados pela personagem Ruby (Jena Malone), a garota começará a perceber a tênue linha entre deslumbre e estranheza.

Com um processo de metamorfose iniciado por sua ingressão no mundo estético da moda, a personagem de Fanning busca quebrar a ingenuidade oriunda de seu sonho artístico para ser aceita dentro do grupo social das modelos. Entretanto, o incômodo da mesma com a superficialidade das garotas acaba sendo perceptível pela vacilação em respostas aos questionamentos sobre sua vida. Em meio a conversas sobre assuntos tão divergentes, como plásticas e sexo, Jesse demonstra um lado dissimulado para emular uma vida que nunca teve.

Contudo, NWR não restringe a falsidade das personagens apenas ao campo das conversas, fornecendo uma crítica ao culto exacerbado pela perfeição corporal. Segundo a fala de certo personagem, beleza não é tudo. Beleza é apenas a única coisa que importa. Os preenchimentos faciais, as lipoaspirações para a eliminação de gorduras localizadas, a implantação de silicone, o uso de botóx, enfim, qualquer plástica deforma a beleza natural. Dentro desse cenário individualista, a efemeridade da beleza não pode ser remediada com processos para revitalização estética. A beleza, em última instância, seria algo singular, alcançado apenas por uma seleta minoria.

E por sorte, Jesse está dentro dessa minoria. Ao tomar conhecimento da intensa admiração obtida ao longo de sua carreira, a personagem transfigura-se no demônio de neon que incita os desejos mais profanos dos que a cercam, revelando a sua verdadeira face monstruosa. Sua beleza angelical, quase que divina, esconde uma dualidade maquiavélica inconsciente, exalada naturalmente de forma sobrenatural.

A antropofagia remonta aos tempos do primeiro contato estabelecido pelos europeus e os habitantes do Novo Mundo. Processo ritualístico consistido na ingestão de carne humana para a obtenção de força e virilidade para a reprodução de descendentes férteis, a prática do canibalismo se renova para uma estética voltada ao século XXI ao ser estilizada por Refn, que busca estabelecer um paralelo com a crença de outrora. Visto como símbolo sagrado, aqui o corpo serve como meio purificador e fonte de beleza plena.

Diante da visão de corpo intocável, a futilidade estabelecida pela busca extremamente idealizada de um corpo perfeito em detrimento das realizações individuais dentro do mundo da moda acaba por estabelecer uma concepção ditatorial baseada em regras oriundas de uma concepção de uso e desuso, reforçando a crítica diante uma lamentável tendência de mercado que prioriza a beleza obtida pela resignação.

Em um projeto controverso, Nicolas Winding Refn apresenta uma dura crítica aos padrões estabelecidos pelo mundo da moda e pelo fetichismo sórdido com os profissionais do meio, vistos como mercadoria descartável. Permeando pelos campos dos desejos incutidos na carne humana, o diretor fornece uma visão repugnante sobre a busca de um padrão idealizado de corpo, nos mostrando que a beleza pode ser podre e nefasta.

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Guilherme Arraes
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Sofre constantemente com decepções por criar expectativas muito rápido.