a estrutura óssea
entrou na sala com passos tão leves que, se não fosse o peso do seu olhar, eu juro que ela poderia voar. ainda bem que mantenho as janelas fechadas. não que eu não queira que eles voem, mas primeiro é preciso garantir que as asas se curem.
ela tinha uma saboneteira bonita de ver, mas deve ser ruim de tocar. sua estrutura óssea anunciava dureza sob uma fina camada de pele. parecia que não sentia prazer em comer, que tipo de pessoa não sente prazer em comer ? sentou no divã em vez de deitar, esse tipo de pessoa. e me olhou. eu disse o de praxe. não sei quando eu me tornei essa que diz o de praxe. ela me interrompeu.
escuta, eu só preciso falar com alguém. vai ser você que eu vou falar. eu vou morrer. eu sei que todo mundo vai morrer. mas eu sei que vou e sei que vai ser logo. eu tô doente. e eu nem como salsichas. aliás o que eu fiz? dá pra te falar nesses 50 minutos tudo que eu já fiz e ainda sobra tempo pra ficar em silêncio.
só então ela respirou. respirações curtas, mas se demorou na repetição delas. não estava ofegante, era como se o peito estivesse fechado e o ar só fizesse a metade do caminho porque esbarra num muro enorme.
eu nunca tive coragem de ir no escorrega, pra você ver o tipo de pessoa que eu sou.
ela me respondeu de que tipo era sem saber que eu tinha feito essa pergunta. balancei a cabeça afirmativamente, mais para mim do que para ela.
eu sou esse tipo de pessoa, a que nunca escorregou, a que nunca viveu. e agora, passo todo o meu tempo me lembrando de todas as minhas recusas. de tudo que eu disse não. eu disse pouquíssimos adeus, porque eu dizia não antes de ter. quando se tem quase nada, quase nada se tem a perder. eu vou morrer. e é logo. e o que vai ficar de meu aqui? o que eu fiz com a minha vida? eu nem falo palavrão, além de tudo. e tem uma imagem que fica indo e vindo, a imagem da Clarissa.
a pausa comprida que ela deu foi para imaginar Clarissa. ela imaginou tão forte que eu quase pude ver também. Clarissa brilhava, tinha fogo ali. quem era Clarissa? a telepatia se deu novamente, ela me respondeu.
Clarissa foi. Clarissa era. eu amei Clarissa. eu não me dei conta quando foi que comecei a amar além. até que um dia ela pegou minha mão e levou até sua boca. uma boca cheia de carne. boca de mulher. parecia inofensivo, mas eu tremi. de repente ela estava em chamas. soltou meus dedos e chegou tão perto como nunca. ela tinha um cheiro que mais ninguém tem. e eu fugi. foi isso. foi ali, precisamente ali, que eu tive a minha grande chance de viver. de tocar não só com a ponta dos dedos. e eu fugi. isso fica repetindo, repetindo, repetindo. desde o dia que recebi a carta da morte.
ela se levantou, veio até mim e colocou a mão na minha boca, depois na dela, e, expandindo o peito, abriu a janela. respirou.