Aline Alli
VAGALUMES NO BREU
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3 min readApr 29, 2021

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O coração de uma baleia azul pesa aproximadamente 600 quilos. O coração humano, aproximadamente 340 gramas. O coração da Nina estava pesando precisamente uma tonelada. Fazia frio, ela estava deitada de braços e pernas escancarados como se tivesse acabado de espernear, mas apenas chorava. Chorava ouvindo Não Vá Ainda. Talvez só Zélia Duncan pudesse entender do peso do seu peito. O peso que tinha as declarações de amor não ditas. O peso que tinha o seu amor não dito. Não dizer é guardar o ar das palavras pra dentro. Fica difícil respirar. O ar dentro da gente começa a pesar. E se espalha pelo corpo. Amor espaçoso: tomou seu ventre, tripas, pensamento. Tão espaçoso de nem caber no sono, já não dormia. De nem caber na mesa de jantar, só comia bananas, fruta fácil, de difícil já bastava a sua rotina. Nina estava amando e mesmo com o mundo acabando, ela só sentia dor de amor.

Eu nunca mais comi polvo. Cê sabia que ele tem três corações?

~~~~~~~Se eu tivesse três corações, os três seriam seus.~~~~~~~

Não. Não sabia.

Sempre parecia caber uma declaração piegas de amor depois de qualquer coisa que Ana dissesse. Mas as declarações de amor de Nina eram sempre abortadas. Não como uma carta desistida e amassada jogada no lixo. Mas como um risco em cada palavra, que olhando bem ainda dava pra ler.

Nina fechava os olhos a repetir Ana falando sobre animais marinhos como se voltando uma cena de um filme. Não qualquer filme. O filme preferido. Como se voltando a cena preferida do filme preferido. A cada repetição ela decupava o corpo da amada.

Primeiro as mãos: pequenas, unhas curtas, expressivas, sempre quentes, que sabiam grafitar.

Depois os olhos: castanhos claros, brilhantes de paixão, enormes.

E então a boca: lábios generosos, língua subversiva que Nina queria tanto sentir em si.

A cada repetição ela inventava uma nova declaração que nunca sairia de sua boca.

Eu nunca mais comi polvo. Cê sabia que ele tem três corações?

~~Me interessam mais os oito tentáculos se você disser sim pra mim.~~

~~~~~~~Uau! Se a gente se juntar, teremos dois.~~~~~~~

Patética.

Não havia espaço para mais nada dentro de Nina, Ana ocupava tudo. Até o estômago. Disse não para a batata frita oferecida, não para o chocolate que ganhou da Rita, não para o queijo quente que poderia ser feito em cinco minutos, não para a pizza com borda de catupiry que poderia comprar com seu cupom de desconto. Jejum assustador. As tentações de antes já não apeteciam, ela estava cheia. Cheia como a lua, por dentro. Minguante por fora. Nina emagrecida. Ana notou. Nina desconversou falando que o culpado era o trabalho, a vida, o trabalho-vida. Ana acreditou porque elas não conseguiam alimentar todas as bocas urgentes de comida, por mais que trabalhassem e isso tirava sua fome também, ela disse.

Nina olhava Ana falar sobre política enquanto faminta de outra fome. Achava tão bonito o jeito que ela falava. A mente de Nina se ocupava das faíscas que saíam dela, não das palavras. Ana estranhou Nina estar sorrindo enquanto ela falava das dores do mundo e do sentimento de impotência que sentia.

Um estranhamento revelador.

Nina, hoje você tá com a cabeça voando.

~~~~~~~Quem me dera voar com você~~~~~~~

Desculpa.

Nina pediu desculpas e virou as costas como quem tem pressa. Mas mesmo que quisesse, não conseguiria andar rápido. Ela estava com o corpo amarrado por um fio invisível ao redor de Ana.

Ana seguiu Nina como quem ama. Ou foi o fio que a puxou. Nina sentiu aquela força atrás de si e suspirou. Ar pra fora virou ventania.

O vento balançou os cabelos de Ana e seus olhos brilharam faíscas. Dedos quentes no ombro de Nina que apassarinhou. Ana tateou aquelas penas coloridas e tentou segurar a ave delicadamente com as duas mãos, mas num golpe de vôo, Nina-colibri foi direto bebericar sua saliva.

O coração de um beija-flor pesa aproximadamente um grama, parece pouco, mas é precisamente vinte por cento do peso do seu corpo.

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