Não é doença, escolha ou fase

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9 min readOct 29, 2021

Ser assexual não é uma questão de opinião ou opção

Ums figura humana e de seu cerebro está saindo uma nuvem com céu estrelado.
Arte: Magui

Nos últimos anos, observamos cada vez mais representatividade de pessoas LGBTQIA+ em espaços sociais e de poder — ainda que um grande caminho precise ser percorrido para que a discriminação e a homofobia sejam superadas.

Entretanto, algumas identidades continuam sendo extremamente apagadas, sofrendo ataques e invalidações, até da própria comunidade.

A assexualidade é uma dessas identidades.

O espectro assexual

O termo correto a se usar é esse: assexual — ou ace (pronuncia-se “eice”). Contudo, muitas pessoas ainda usam assexuado para se referir a essa orientação sexual, porém esse termo é considerado ofensivo.

Assexuado é usado para seres que não se reproduzem a partir do encontro de gametas.

Assim como se usa o sufixo –al para outras orientações LGBTQIA+, deve-se usar o mesmo para a assexualidade.

Além disso, assexual é um termo guarda-chuva que engloba várias identidades organizadas dentro de um espectro. As mais comuns são: assexual estrito, demissexual e grayssexual.

Assexual estrito é a pessoa que não sente atração sexual em nenhuma circunstância, independente de gênero.

Os demissexuais (demi) podem sentir atração sexual apenas quando desenvolvem forte conexão emocional com a outra pessoa.

Grayssexual (gray-a) designa pessoas que sentem atração sexual em circunstâncias específicas, não necessariamente por vínculo emocional. Elas se identificam com a chamada “área cinza” entre a assexualidade e a allossexualidade.

Existem outras identidades nesse espectro.

Por exemplo, cupiossexuais são pessoas que apesar de não sentirem atração sexual, possuem desejo de uma vida sexual ativa.

Frayssexuais, ao contrário dos demissexuais, só sentem atração sexual quando uma conexão emocional não está envolvida.

Há quem não se insere no espectro de maneira fixa: o assexual fluído. Essas pessoas têm uma orientação que flui dentro do espectro assexual — podem se identificar como demi em determinado momento e como ace estrito em outro, por exemplo.

As pessoas que se localizam fora da assexualidade são chamadas de allossexuais, ou apenas allo — aquelas que sentem atração sexual constantemente ou sem condicionais.

Assexualidade não é igual a falta de libido (ligado a questão hormonal), celibato ou abstinência sexual (ambas escolhas a serem feitas). É uma orientação sexual como a homossexualidade, bissexualidade, heterossexualidade…

Não é uma escolha, um desequilíbrio corporal ou uma fase.

É importante conhecer, respeitar e validar a existência dessas identidades ainda tão ignoradas pelos allo — sendo eles membros da comunidade LGBTQIA+ ou não.

Nem toda atração é sexual

É comum ligarmos todo tipo de atração com a sexualidade e a atração sexual.

A realidade é que existem vários tipos diferentes de atração, que podem ou não se sobrepor.

O AVEN (Asexual Visibility and Education Network — Rede de Educação e Visibilidade Assexual) enumera três, além da sexual.

  • Estética: relaciona-se com a aparência do outro, sem necessariamente envolver sentimentos sexuais ou românticos.
  • Sensual: acontece quando há desejo de se envolver em contatos físicos que não são sexuais ou não levam ao sexo (abraços, beijos, toques).
  • Romântica: desejo de se relacionar romanticamente com outra pessoa. Ou seja, estar apaixonado ou sentir amor romântico por outrem.

Especialmente quando o assunto é atração sexual versus atração romântica, há muita confusão — costuma-se tratar as duas coisas como interdependentes.

Assexuais podem sentir qualquer uma das atrações citadas, mesmo sem que a sexual esteja presente.

Ao vivermos em uma sociedade hiperssexualizada, muitas vezes não conseguimos conceber um relacionamento amoroso onde o sexo não é o principal ou algo considerado essencial. Vemos as relações sexuais como o ápice do relacionamento e até um pressuposto para que ele comece.

Apesar de a maioria dos allossexuais (não-assexuais) vivenciarem a atração romântica em conjunto com a sexual, isso pode não acontecer.

Chamamos de arromânticos as pessoas que não experienciam atração romântica, ou sentem de forma condicional.

A arromanticidade segue a mesma lógica do espectro assexual — arromânticos estritos, demirromânticos, grayrromânticos, e por aí vai.

Isso não quer dizer que essas pessoas não sentem amor.

Lembre-se: existem vários tipos de amor, não apenas o romântico.

Importante destacar que uma sobreposição de identidades é possível.

Uma pessoa pode se identificar como…

  • assexual e arromântico (chamados de aro-ace);
  • heterossexual e arromântico;
  • assexual e heterromântico (atraída por pessoas do sexo oposto);
  • assexual e birromântico;

… e qualquer outra combinação entre sexualidade e romanticidade.

Era uma vez…

Muitos mitos acerca da assexualidade circulam por aí. Bora quebrar alguns deles?

1. Assexuais não sentem amor

Principalmente no que tange aos assexuais estritos há inúmeros estereótipos: vistos como menos humanos, máquinas, doentes, e tantos outros pensamentos extremamente problemáticos (e equivocados).

Assim como você pode fazer sexo sem amar o parceiro, você pode amar romanticamente e não desejar se envolver de forma sexual.

2. Assexuais não gostam ou não participam de relações sexuais

Esse é um dos mitos mais comuns. As pessoas relacionam automaticamente não ter atração sexual com não gostar de sexo.

Essa associação nem sempre é verdadeira.

Segundo o AVEN, assexuais possuem diferentes atitudes pessoais em relação ao sexo:

  • Favorável — inclinação positiva em se comprometer com um parceiro sexual, abertura para explorar meios de aproveitar relações sexuais física e emocionalmente, potencial preferência em dar prazer do que receber. Assexuais favoráveis podem gostar das sensações do sexo (por vários motivos diferentes), mesmo que não sinta necessidade de se envolver em relações sexuais.
  • Indiferente — pode estar disposto em se comprometer com algumas atividades ocasionalmente; não gosta muito do sexo de uma maneira física ou emocional, mas não se sente aflito ao pensar sobre; pode estar disposto a dar prazer, mas não encontra intimidade no ato.
  • Aversão ou Repulsão — angústia ou reação negativa forte ao pensamento de se envolver em relações sexuais. O uso do termo aversão ou repulsão depende do grau de reatividade.

3. A famosa pergunta: como saber se você nunca experimentou?

Ou sua semelhante “você apenas não encontrou a pessoa certa”.

É uma lógica que busca reafirmar um status de inevitabilidade para a atração sexual — todo ser humano vive e no mesmo grau.

Parecido com o pensamento de que mulheres lésbicas só se atraem pelo mesmo gênero porque não experimentaram sexo com homens ou não encontraram aquele que as “satisfizessem”. Ou ter a certeza de que eventualmente o desejo vai aparecer.

Da mesma forma que homossexuais sabem por quem são atraídos, assexuais sabem que não experienciam a atração sexual ou não da mesma forma que os allo.

Não é questão de opinião ou escolha.

Algumas pessoas se descobriram ace após relações sexuais, mas isso não configura uma regra.

4. Assexuais não se relacionam com não-assexuais

Como falei anteriormente, atração sexual e romântica são duas coisas diferentes. É comum para assexuais desejarem construir um relacionamento romântico e, em vários casos, o parceiro é allossexual.

Para que a dinâmica funcione, a chave é a mesma de qualquer relacionamento: comunicação.

É preciso ser honesto, falar sobre seus limites, sobre o que é aceitável ou não, para chegarem a um acordo que funcione para os dois.

(Bom lembrar que nem todo relacionamento é monogâmico e existem pessoas que se sentem confortáveis — e até preferem — em terem relacionamentos abertos ou poliamorosos)

Construção do senso de comunidade

Um pensamento circula pela cabeça de quase toda pessoa que está questionando sobre ser ace: será que tem algo de errado comigo?

Para onde miramos o olhar vemos referências pautadas no sexo: nas propagandas, nos filmes e séries, nas conversas entre amigos, nas piadas, na música, na literatura… em todas as esferas sociais.

É fácil pensar que tudo gira em torno do sexo e que as relações fortes e saudáveis têm nele uma de suas maiores bases — o que parece se confirmar, de novo, em todas as referências sociais que obtemos ao longo da vida.

Você começa a se perguntar se é o único que se sente assim. E é muito difícil se abrir com alguém quando não se sabe se a pessoa inserida nesse turbilhão cultural, pautado na erotização, irá entender.

É aí que entra uma das ferramentas mais importantes para a construção do senso de comunidade assexual: a internet.

Dado a dificuldade de conhecer alguém próximo que se identifique como ace, o papel das redes sociais, grupos da internet, blogs e sites possuem um papel fundamental no autoconhecimento, na autoaceitação e na visibilidade.

O AVEN foi fundado em 2002 e ainda é a maior fonte de informação sobre assexualidade no mundo. Ele possui um fórum com mais de cem mil membros.

No Brasil, o Cakelovers é um ótimo meio para quem deseja aprender mais sobre assexualidade/arromanticidade e se conectar com pessoas da comunidade — eles possuem perfil no Instagram e no Twitter.

Isso a Globo não mostra

A representatividade de assexuais e arromânticos na mídia, principalmente a de massa, é quase inexistente.

Quando aparece um personagem aro-ace em produtos audiovisuais, há grandes chances de serem usados para atacar, reforçar estereótipos ou desvalidar a assexualidade.

Alguns exemplos emblemáticos:

  • Data, de Star Trek, foi caracterizado como não tendo desejo sexual. Mas ele é, literalmente, um androide (uma máquina).
  • Várias pessoas afirmam que quase todos os doutores de Doctor Who são assexuais. Sendo que eles são de outra espécie, tornando perfeitamente plausível que não sintam atração sexual por humanos.
  • Outra ocorrência comum são os vilões/sociopatas, que podem não mostrar interesse algum em sexo ou usá-lo apenas para atingir um objetivo — geralmente também se presume que são arromânticos. Dexter durante as primeiras temporadas, Hannibal Lecter, um sociopata canibal, Voldermort,que todo mundo despreza e é descrito diversas vezes como incapaz de ter sentimentos bons, e a lista continua…
  • No episódio 9 da oitava temporada de Dr. House, intitulado “Better Half”, House faz uma aposta com o Dr.Wilson de que o paciente e sua esposa estão mentindo sobre serem assexuais.

Acontece que o paciente tinha um tumor no cérebro que o impedia de sentir atração sexual e sua esposa estava mentindo apenas para fazê-lo feliz (não dá para ficar pior, realmente).

A representatividade sensível nos produtos da mídia é essencial para a construção de um senso de pertencimento e a destruição da noção da assexualidade como patológica.

Poucos produtos retratam pessoas do espectro com maior responsabilidade. A maior parte dos exemplos são estrangeiros, visto que a discussão e representação dessa orientação no Brasil é ainda menos presente.

O personagem mais conhecido no audiovisual é Todd Chavez, de “BoJack Horseman”.

Ele diz com todas as letras a sua orientação, passa pela experiência de se assumir para os amigos, vai a um encontro de pessoas do espectro, entra em um relacionamento e começa um processo de conhecimento e aceitação.

Há até diálogos com outros personagens que são muito educativos, inclusive sobre atração romântica.

Na literatura, um exemplo legal é a personagem Tash — de “Tash e Tolstói”, escrito por Kathryn Ormsbee.

Há a construção de um retrato muito real das inseguranças e possíveis experiências que pessoas assexuais românticos podem passar. O mais incrível é que não é um livro sobre assexualidade, é um livro sobre amizade, autodescoberta, autoaceitação e realização de sonhos.

Ela é antes de tudo uma amante da literatura e uma futura cineasta, que acontece de ser assexual e lidar com questões consequentes disso.

Arte: Magui

Para além da ficção, precisamos ouvir o que as pessoas reais que se identificam com alguma parte do espectro assexual têm para falar e abrir espaço para essas narrativas.

O Cup é assexual, agênero e produz conteúdo informativo e divertido no Instagram e no YouTube acerca de gênero, sexualidade e representatividade.

No Tik Tok, o perfil acedadadvice faz um trabalho incrível na educação sobre espectro ace, microidentidades e dúvidas gerais sobre o assunto.

A asexualmemes produz vídeos muito didáticos no Tik Tok e esclarece dúvidas comuns de pessoas assexuais ou allossexuais que querem entender sobre a orientação.

Esses produtores de conteúdo se engajam na tarefa de divulgar conhecimento sobre assexualidade e tornar essa “orientação invisível” cada vez mais visível.

E para não passar em branco, toda última semana de outubro comemora-se a Semana da Visibilidade Assexual. Esse é um momento para falarmos sobre isso.

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Escrito por: Natacha Moreira

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