Sempre mais do que deveria

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7 min readOct 11, 2021

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Será que a saúde mental LGBTQIA+ deve ser tratada de forma diferente?

Arte: Magui

Talvez o autocontrole seja a palavra certa para definir a saúde mental LGBTQIA+ que, às vezes, se pensarmos bem, poderia ser inserida como uma nova soft skill do Linkedin.

O tema da saúde mental muitas vezes se limita as temáticas do suicídio, porém as raízes são bem mais profundas. Vale lembrar que o suicídio é uma consequência da falta de prevenção de vários problemas psquiátricos e psicológicos.

Ao lermos matérias em noticiários ou ao escutarmos podcasts, é comum a apresentação de histórias de inúmeras pessoas com síndromes e problemas pela sobrecarga de trabalho e estudo, por exemplo. No entanto, na realidade LGBTQIA+ sempre existe algo a mais.

É como se ao longo do dia estivéssemos segurando uma caixa do autocontrole, e o final do expediente representasse a liberdade de voltarmos para nossa bolha para sermos quem somos. Então, guardamos a caixa e tudo fica bem. Retiramos uma fantasia que utilizamos durante um período de horas e depois ficamos em um conforto só nosso.

Isso faz parte da realidade de pessoas LGBTQIA+. Em uma entrevista de emprego, por exemplo, precisamos pensar se o entrevistador irá aceitar nossa identidade e se isso é tranquilo para a empresa, caso haja uma contratação. Se formos parar para refletir, existem tantas outras situações que vivemos que apenas um dia falando sobre isso seria pouco.

Como eu escrevi anteriormente, é tudo muito mais profundo e intenso. Muitas vezes nossos lares, locais de estudo e trabalho não oferecem o melhor suporte para sermos quem somos, e o curativo parece que sempre tem que ser trocado.

Uma vivência diferente

Quando li o texto do Alex Gaeta, redator da Valejo, PFF2 não é a nossa única máscara, foi como se alguém tivesse puxado aquele fio do novelo de lã que é a saúde mental LGBTQIA+. Eu vi ali um pontapé inicial para pensar sobre essa temática.

O Diagnóstico LGBT+ na pandemia elaborado pelo coletivo #VoteLGBT apresentou mais uma vez um panorama crescente dos problemas relacionados à saúde mental durante a pandemia no ano de 2021, que continuou e agravou a vida de nós, LGBTQIA+.

Sair na rua, ir ao mercado, socializar sempre gerou um medo e uma ansiedade maior para mulheres e pessoas LGBTQIA+. Contudo, parece que agora, qualquer pequeno acontecimento pode ser o gatilho para a ansiedade e paranoia.

Sim, existem algumas situações que são extremamente reais e acontecem conosco cotidianamente, mas outras têm raízes em problemas pontuais que vivenciamos em nossa vida pessoal e nos geram um medo agressivo e paranoico.

Arte: Magui

Vou dar um exemplo da minha própria vivência. No início da pandemia, eu fui assaltada e isso me causou um trauma que me persegue até hoje. Foi perto da minha casa em um local que tinha um fluxo considerável de pessoas, em um bairro residencial.

Não tive ajuda de nenhuma pessoa que passava por lá e, até meus parentes com quem convivo, não me deram o suporte necessário. Queria meus pais e meus amigos próximos naquele momento, porém não era possível.

Desde então desenvolvi bruxismo, tenho muita ansiedade em andar em ruas perto da minha casa e ficar próxima de homens, mesmo daqueles que eu conheço, pois fico pensando se alguma coisa vai desencadear um ato violento.

Obviamente que várias situações auxiliam para minha ansiedade e angústia, mas estar parte do tempo em um estado de alerta constante é uma situação extremamente desconfortável.

Essa vivência é apenas um recorte entre tantos. Existem várias outras que, assim como a minha, auxiliam para que a nossa saúde mental fique ainda mais debilitada.

Isso é o que explica Caroline, mulher trans, e uma das entrevistadas no Box do Diagnóstico LGBT na pandemia. Em seu relato, ela explica como é difícil essa nova forma de socialização que a pandemia trouxe. Quando ela sai de casa se sente um pouco mais livre, mesmo com preconceito, mas muitas de suas amigas tem um medo maior que é a violência.

Voltar a socializar aos poucos é um desafio para todes, mas principalmente para quem é LGBTQIA+, pois vivemos na incerteza: se antes, que as pessoas socializavam diariamente e ainda assim eram preconceituosas, será que a situação só piorou?

A resposta pode ser “sim”, “não”, “depende”, pode ser qualquer coisa na verdade. O que complica tudo é que temos que vivenciar isso cara a cara, gaguejar, suar frio e sentir insegurança até ter uma resposta concreta.

Não é fonte do Wikipedia

Ainda falando mais sobre o Diagnóstico LGBT na pandemia, é triste ler como tudo se potencializou nesses dois últimos anos. Com o afastamento das nossas redes de apoio, tudo fica mais sombrio e parece que voltar ao normal é uma saída árdua.

Uma pesquisa da FIOCRUZ e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul deste ano constatou que 55,19% das pessoas LGBTQIA+ entrevistadas declararam que a saúde mental está pior do que no ano passado.

E como eu já mencionei, o suicídio é apenas uma das questões referentes à saúde mental, existe um oceano de problemas que decidimos não tratar.

Não falamos abertamente sobre ter sintomas de depressão e ansiedade, apenas dizemos “tenho depressão e ansiedade” e ponto final, como se o debate e a troca de experiências acabasse ali, o que é um equívoco.

Outra questão extremamente delicada é achar um profissional que saiba lidar com as nossas vivências LGBTQIA+. Esse é um processo árduo, que muitos não têm a sorte.

Eu, por exemplo, consigo falar abertamente sobre a minha sexualidade e identidade de gênero para minha terapeuta, porém vejo alguns amigos meus lutando para conversar sobre as mesmas coisas abertamente.

Um psicólogo é um profissional que deve nos ajudar, mas por que temos medo? Mais uma vez caímos no desespero contínuo de achar que mesmo que haja um código de ética e vários estudos, ainda assim o profissional pode agir contra seu paciente.

Mais um pedaço do novelo

Em um vídeo do canal do Youtube Vita Alegre com a participação especial de Rita Von Hunty, a temática da saúde mental LGBTQIA+ foi a pauta, e uma coisa da qual fui relembrada é que ser LGBTQIA+ sempre vai ser difícil à primeira vista.

Me perguntei a razão e percebi que muitas das nossas questões emocionais e psicológicas são desgastadas porque vivemos em locais que nos reprimem e que não foram feitos pensando em nós. Isso gera mais uma vez o sussurro que ressoa em nossas mentes: não quero você aqui.

Caímos no autocontrole para tentar nos encaixar mais e mais em locais diversos e o desgaste só se intensifica e nos persegue. Acabamos criando mais uma personalidade para nos proteger de situações que podem vir a acontecer e parece que nossa energia é sugada mais uma vez.

Às vezes, dá vontade de perguntar a outra pessoa não LGBTQIA+ como é essa sensação de não ter uma caixa de pandora pronta para abrir, pois parece uma realidade inalcançável.

Arte: Magui

E são nessas vivências ininterruptas de autocontrole que vemos o quanto temos a necessidade de um espaço para tratar nossos sentimentos e emoções com um profissional, no entanto normalmente quem mais precisa não tem o acesso para tratar sua saúde mental.

Em um dos relatos do #VoteLGBT, é ressaltado como é escasso o ambiente de apoio psicológico para população LGBTQIA+ no Brasil.

Obviamente que algumas vezes temos momentos bons em meio a esses turbilhões de emoções. Com a internet sendo um dos principais meios de interação, muitas pessoas começaram a interagir e encontrar outras que possuíam realidades similares e uma rede de apoio diferente começou a ser formada.

É claro que é totalmente diferente da realidade fora da pandemia, porém essas novas interações compensaram algumas ausências que tivemos ao longo de muitos meses e ajudaram, de alguma forma, como um novo apoio.

Como uma nota de rodapé

A saúde mental LGBTQIA+ é um novelo de lã que temos que desenrolar para que mais pessoas tenham conhecimento de como lidar com seus sentimentos, emoções e desafios.

Essa necessidade de falar abertamente da saúde mental LGBTQIA+ não vem apenas de uma crescente vontade nossa, mas também deve ser feita por uma comunidade externa que, na maioria das vezes, nem sequer questiona como é a vivência LGBTQIA+, pois é fato que muitas das nossas questões ligadas aos problemas emocionais advém do externo que não nos aceita.

Referências

Vou deixar aqui alguns contatos de profissionais e redes de apoio que tem um enfoque na comunidade LGBTQIA+.

  • Projeto Colorir-Ser: coletivo de psicólogues destinado a ouvir aqueles que se identificam como mulheres e a comunidade LGBTQIAP+.
  • Acolhe LGBTQIA+: é uma plataforma que conecta pessoas LGBT+ que precisam de acolhimento psicológico com profissionais que podem ajudá-las de forma voluntária.
  • Clínica Social Casa 1: local que oferta processos psicoterápicos continuados e plantões de escuta, além de fornecer atendimentos psiquiátricos, nutricionais e terapias complementares.
  • Psico.lgbt: atendimento psicológico online e com valor social.
  • Transpsic: atendimento psicológico online.
  • Psicoterapia.lgbt: atendimento psicológico online.

Escrito por: Giulia Pietra

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